01 – Xangô Begins.

Muito tempo atrás, havia um reino chamado de Oió. Ele era situado onde hoje se encontra a nação africana da Nigéria. Grande parte do seu território era ocupado por uma floresta com uma variada gama de árvores. Cedro e mogno estavam entre elas. Cipós pendiam das copas, formando teias naturais. O chão era coberto por uma camada espessa de folhas e galhos caídos. Havia uma variada fauna, a maioria sobre as árvores. Eram facilmente encontrados macacos e certos tipos de pássaros coloridos.

O palácio ficava no centro do assentamento, ele possuía cores claras e sua arquitetura dava preferência a formas arredondadas. Em um dos cômodos ficava o quarto do rei e da rainha, Oraniã e Torossi, respectivamente. O monarca quando acordou não encontrou sua esposa deitada ao seu lado, mas não era com ela que ele estava preocupado naquele momento. Oraniã vestiu uma roupa simples para alguém do seu nível e foi atrás do paradeiro de seu filho. - Onde está o príncipe?! Há dias que não o vejo! - Gritou o rei assim que pôs os pés em um dos corredores do palácio. Ele era dono do lugar, ninguém o repreenderia por sua falta de educação.

Tendo o cuidado de não cruzar o seu olhar com o do rei, uma das criadas falou com ele. - O príncipe ainda não voltou ao palácio, majestade. Ele ainda se ocupa com sua caçada. Informantes disseram que ele está convicto de só regressar quando obter êxito.

- Mas que gênio difícil! Eu não sei de quem ele puxou! - O rei demonstrava raiva, mas havia nele uma pontada de orgulho. Ter um filho desobediente era um preço aceitável em troca de um corajoso.

XXX

O exército estava todo montado a cavalo. Os arqueiros iam logo atrás, sendo protegidos pelos lanceiros que ficavam na dianteira. Ninguém repreenderia o príncipe se ele optasse por comandar a sua tropa de uma posição mais segura. Mas Xangô não agia assim. Faminto por novas aventuras e batalhas, ele sempre desafiava o perigo de frente, com o seu machado duplo, o Oxé, em mãos.

O rugido da fera denunciou sua localização. O monstro bípede tinha pernas longas e robustas, mas seus braços eram diminutos e sem serventia. Ele media uns doze metros de comprimento e, até o quadril, seis metros de altura. Sua aparência era reptiliana e, entre o povo do Oió, ele era conhecido como… - O mokolé! - Gritou um dos soldados. Aviso inútil, já que a criatura já estava a vista de todos.

Alguns soldados se aproximaram do monstro e um deles foi morto após ser abocanhado. Os arqueiros disparavam suas flechas para minar a resistência do mokolé enquanto os lanceiros tentavam guiar a criatura, através de estocadas, até um ponto onde ela estaria cercada e não conseguiria fugir.

Um círculo de lanceiros foi formado. Dentro dele haviam apenas duas almas vivas, o monstro e o príncipe. Tudo acontecia de acordo com a estratégia de Xangô. Ele se colocou com o seu machado em posição ofensiva e esperou pela primeira investida do animal. O mokolé, furioso por causa dos seus ferimentos, atacou sem ponderação. Ao colocar sua boca próxima ao chão, a criatura deixou o seu pescoço desprotegido. Xangô gingou para a direita e assim que a fera se tornou mais vulnerável, ele aplicou um golpe de cima para baixo que decapitou a criatura.

Xangô e seus homens regressaram ao reino de Oió e receberam muitas honrarias. Rosas eram atiradas aos seus pés ao mesmo tempo que o som de aplausos e bençãos ecoavam pelas ruas. O príncipe decidiu exibir a cabeça do monstro em uma carroça, para provar a todos o seu feito. Apesar da população em peso estar impressionada, havia uma pessoa que não compartilhava de toda aquela euforia.

- Não viverei por muito mais tempo. - Disse o rei. - Você já deveria adquirir mais responsabilidades.

- Dadá é o sucessor direto. Não vejo motivo para me ocupar com mais preocupações. - Xangô estava se referindo ao seu irmão mais velho, Dadá Ajacá.

- O seu irmão tem um bom coração, mas temo que ele não tem o temperamento certo para a liderança.

XXX

O príncipe tinha o hábito de se banhar em um rio que ficava próximo do palácio. Aquele seria um banho como qualquer outro, se não fosse a presença de uma bela figura. Atrás de uma moita, Xangô assistiu à moça se lavar. Por ela ter uma beleza escultural, Xangô ficou decidido que a queria como esposa. Para não assustá-la com uma aproximação atrapalhada, o príncipe se afastou e fingiu que não a havia percebido. Ele começou a cantar para se fazer presente e logo sua voz melodiosa chegou aos ouvidos do seu alvo.

A jovem saiu da água e tratou logo de se vestir. - Quem está aí?! - Gritou. Como quem não queria nada, Xangô se aproximou e apresentou-se.

- É um belo dia, não é? - Perguntou o príncipe. - Por favor, não queria atrapalhá-la.

A jovem não demorou muito a notar o poder de presença incomum daquele homem. Ela disse o seu nome, Oxum, e ele revelou o seu. O interesse que Oxum passou a nutrir pelo jovem não era só por sua natureza real. Xangô demonstrava ter o domínio de assuntos que eram muito caros para ela. Além de se mostrar ser versado tanto no canto quando na dança.

Em menos de um mês os dois contraíram matrimônio. Porém Xangô não se conteve por aí. Em poucos anos ele conheceu e se casou com mais duas mulheres, Iansã e Obá. A cultura da região permitia esse tipo de relação poligâmica.

O rei Oraniã acreditou que a vida conjugal ocupada afastaria o príncipe de suas aventuras, mas estava errado. Certa noite, enquanto dormia no quarto de Iansã, Xangô adormeceu e teve um sonho incomum e realista. Ele se viu deitado na cama, como se o seu espírito tivesse descolado do seu corpo e começasse a subir. Xangô atravessou o teto do palácio e se elevou até o Céu. Ele não sabia como, mas estava ciente que tinha deixado o plano da matéria (o Ayê) e adentrado no espiritual (o Orum)

Um homem vestido todo de branco e com a presença de um gigante começou a falar. Para Xangô era óbvio que aquela era uma representação de Oxalá, o criador do mundo. - O vosso destino está muito além de uma coroa de latão. Seu lugar é entre o povo do Céu.

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Montando o seu cavalo favorito, batizado por ele com o nome de Betserai, Xangô foi guiado por uma força etérea até uma região distante do seu reino. O clima confortável pouco a pouco foi dando lugar a um árido e quente. Era a primeira vez que o príncipe havia cruzado a floresta de Oió para adentrar o Deserto de Chade. Essa região fica no norte da Nigéria, fazendo parte da região do Sahel.

A preocupação com sua estadia no deserto fez com que Xangô baixasse a guarda. Se a flecha endereçada para a sua cabeça não errasse o alvo aquela jornada acabaria precocemente. O príncipe pulou de sua montaria e apanhou o seu machado. Mais flechas foram disparadas na sua direção, porém, prontamente ele rebateu todas.

Percebendo que não teriam êxito em uma batalha à distância, os inimigos saíram dos seus esconderijos. Era como se brotassem da areia. Quatro homens cobertos de preto e portando espadas curvas. Assim que pôs os olhos nos guerreiros, por causa dos símbolos que ostentavam, Xangô percebeu que eles eram mercenários ashanti.

A primeira investida do ashanti mais próximo foi bloqueada pelo cabo do machado de Xangô. Com um movimento de arco, Xangô conseguiu atordoar o seu oponente acertando sua orelha direita. Os próximos foram uma dupla em um ataque conjunto. Esses deram mais trabalho, mas, depois de terem braços e pernas decepados, deixaram de oferecer perigo. O último, ciente de que não podia vencer, tentou fugir. Sem perdão, Xangô arremessou sua arma e atingiu o medroso pelas costas.

Só havia sobrado um ashanti vivo e foi com este que o príncipe foi falar. - Quem enviou vocês?

- Você tem muito azar de ficar no caminho dele. Ele é a Aranha! - De modo grotesco, o mercenário virou o próprio pescoço até quebrá-lo. Xangô, que nunca tinha visto alguém fazer algo parecido assim antes, largou o cadáver e tratou de ficar o mais longe possível dele.

XXX

O deserto estava testando Xangô. O seu cavalo há muito morrera. O sol castigava a sua pele e a sede sua garganta. Há alguns dias a sua cabaça já tinha esvaziado, mesmo assim ele a checava de vez em quando. Na esperança de que algum deus misericordioso se ocupasse em enchê-la de água. O príncipe temeu que o seu fim seria por inanição, sem glória. Até que viu uma dádiva que a primeira vista pensou se tratar de uma miragem.

O prato continha cinco acarajés grandes e ao seu lado uma quartinha mediana contendo água. Desesperado, sem nem ponderar como aqueles presentes foram deixados ali, Xangô tratou de comer e beber o mais rápido possível. No início a sensação de barriga se enchendo era muito boa, porém, ele começou a sentir um ardor estranho na língua. Após cheirar as iguarias disponibilizadas para ele, o príncipe percebeu que haviam colocado nelas muita pimenta.

O queimor só crescia e logo, literalmente, Xangô começou a cuspir fogo. Uma risada zombeteira, que parecia não ter dono, se fez presente. Como não estava acostumado a ser ridicularizado, logo o príncipe se enfureceu. - Quem está aí?! Apareça, covarde!

Assim como a outra entidade que lhe apareceu em sonho, aquela tinha uma figura imponente e gigante. O fato dela surgir em um momento desperto serviu para deixar a ocasião ainda mais memorável. - Exu? - Assim que percebeu que havia cometido a garfe de maldizer o mensageiro dos deuses, Xangô se ajoelhou e o saudou.

XXX

Com o objetivo de fugir do sol escaldante, Xangô entrou em uma caverna. Ele sentou e encostou suas costas na parede para descansar. Estava quase pegando no sono, quando ouviu um som ritmado. Aquela melodia não era musical, mais parecia resultado de um trabalho repetitivo. Mais curioso do que cansado, o príncipe foi pesquisar qual era a origem daquele som. Não muito longe da entrada, um homem vestido de verde e preto usava um martelo de ferreiro para moldar uma espada. O chão de sua pequena oficina era tomada por armas brancas de vários tipos. - Vai ficar me olhando com essa cara de bobo o dia inteiro ou vai dizer o que quer?

- Estou numa jornada guiada pelo próprio Oxalá! - Disse Xangô, sem perceber o quão aquilo soava esquisito. Devido à sua posição real ele não estava acostumado em ter suas frases questionadas. - Por algum motivo fui guiado até aqui.

- Interessante… - Disse o ferreiro. Parecia, por um momento, que ele não sabia o que dizer a seguir. - Essa sua arma. Posso vê-la? - Com relutância Xangô entregou ao homem desconhecido seu Oxé. O príncipe dificilmente se afastava de seu machado. O ferreiro o analisou brevemente pra depois dar um diagnóstico que pegou Xangô desprevenido. - O material é de baixa qualidade. As lâminas são pesadas demais e cortantes de menos. Uma porcaria de ferro.

- Como ousa?!

O ferreiro pôs o Oxé sobre sua bigorna e martelou ele duas vezes. Na primeira porrada o machado trincou, na segunda ele começou a esfarelar. Xangô ficou sem saber o que falar. - Consigo tornar o seu machado imbatível. Só preciso de um dia e uma noite. - O príncipe ficou no canto da oficina assistindo o ferreiro trabalhar. Em certo ponto, seus olhos começaram a pesar e ele ficou prestes a cair no sono. Poucos segundos antes de dormir, o guerreiro conseguiu ver a real forma daquele metalúrgico. O homem se tornou um gigante e ele derramou sobre o machado tipos de metais só encontrados nas estrelas. O seu nome era Ogum, o orixá ferreiro.

Quando Xangô acordou, Ogum já tinha terminado o seu machado. O guerreiro pegou sua arma e começou a testá-la. Ela estava muito mais leve e suas lâminas estavam mais brilhantes do que nunca. - Essa arma não é para mim. Parece divina.

- Oxalá o escolheu para ser o orixá do fogo e do trovão. Resta saber se está apto para ser o orixá da justiça também.

- O que quer dizer?

- Sinto muito, mas, assim que você saiu do seu reino, o seu pai faleceu. O seu irmão, Dadá, assumiu o trono, mas ele se provou ser muito fraco para o cargo. O reino de Oió foi tomado por uma força estrangeira.

- Eu demorei quatro meses para chegar aqui! Não tenho como voltar a tempo.

- Tem sim! Você é o dono dos trovões agora.

Xangô saiu da caverna e olhou para os céus. Uma energia que ele não percebia antes se tornou palpável. Acima das nuvens, cargas elétricas se chocavam. Aproveitando-se desse evento natural, o guerreiro apontou sua arma para cima e fez com que um raio caísse sobre ele. A descarga elétrica o puxou pelo braço e o arremessou para cima e para frente. Por ser capaz de acessar uma rota que era invisível aos meros mortais, Xangô chegou em seu reino em poucos minutos.

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O palácio de Oió estava dominado pelos homens vestidos de negro, os mesmos que tentaram matar o príncipe semanas atrás. Em outros tempos, Xangô tentaria uma abordagem mais furtiva. Mas, agora que ele era detentor de poderes dos orixás, ele estava mais destemido do que nunca. Havia um quarteto parado no portão, fazendo guarda. Xangô se livrou deles só com uma das suas baforadas de dragão. Não tiveram tempo nem de gritar de dor, logo os seus corpos foram calcinados e se tornaram cinzas.

Para entrar no palácio, Xangô chutou o grosso portão de entrada com tanta força que ele tombou. Do outro lado, esperando por ele, estava um pequeno exército de mercenários. Com lanças e flechas eles atacaram o príncipe a distância. Sem se preocupar em desviar dos golpes, as armas se torciam ou quebravam quando tocavam sua agora resistente pele. O novo orixá abriu os seus braços e fez com que eletricidade invadisse o cômodo. Naquela investida Xangô matou mais pessoas do que antes em sua vida inteira.

Com o exército derrotado, Xangô entrou na sala do rei. Para a sua surpresa o seu pai, Oraniã, estava sentado no trono. O príncipe correu para abraçá-lo, mas, assim que o tocou, o corpo dele foi apodrecendo até virar um cadáver pútrido. Pela primeira vez desde muito tempo o príncipe sentiu vontade de chorar. Sua tristeza logo se tornou raiva assim que ele descobriu quem foi o autor daquela brincadeira de mau gosto. O rei usurpador de Oió era andrógeno. O seu corpo era o de um humano comum, mas sua armadura negra tinha três pares de adereços que pareciam braços extras.

Xangô correu na direção do seu adversário já preparando um ataque devastador com o seu machado. O deus aranha nem tentou se defender. O príncipe começou sentindo uma série de teias invisíveis grudarem em seu corpo. Antes que percebesse já estava preso. - Me diga o seu nome! - Gritou o orixá. - Quero saber qual é a alcunha do ser mais ardiloso que eu já enfrentei.

O deus meio homem meio mulher respondeu que era conhecido como Anansi, a Aranha. Cometendo o erro de achar que Xangô estava indefeso, a divindade ashanti mordeu o pescoço dele e começou a sugar o seu sangue divino. Tal qual um aracnídeo faria com um animal predado. O príncipe iorubá escancarou sua boca e soprou fogo de suas ventas o suficiente para derreter as teias de Anansi e feri-lo. Além de destruir boa parte da sala do trono.

Com metade do rosto chamuscado, agora foi a vez do deus aranha gritar de raiva. Ele pegou um dos braços extras de sua armadura e transformou em espada. Anansi se atirou no príncipe de uma forma que este achou ser imprudente. Achando que daria para se aproveitar da guarda aberta do seu adversário, Xangô preparou uma machadada. O golpe não atingiu nada concreto e para a surpresa do orixá, ele foi ferido no flanco direito.

Não demorou para Xangô perceber a artimanha de Anansi em usar golpes ilusórios. Parecia que cinco deuses aranhas haviam aparecido no cenário. Cada um atacava de um ângulo. Era impossível descobrir qual era o real antes da lâmina do inimigo tocar na pele do príncipe. Xangô não era muito acostumado em raciocinar e pensar com calma, mas entendeu que não venceria aquele embate usando só a sua força bruta.

Xangô percebeu que os seus olhos não seriam de grande ajuda naquela batalha, que só lhe atrapalhariam, então ele os fechou. Se concentrando para usar seus novos poderes de forma mais criativa, o orixá passou a analisar o campo elétrico das coisas ao seu redor. Dessa maneira não faria diferença se o inimigo utilizasse dez ou cem cópias falsas, a eletricidade do seu corpo denunciaria sua localização. Anansi tentou golpear Xangô pelas costas, mas este se virou rapidamente e acertou seu tronco com uma força tamanha que quase o dividiu em dois. Anansi ainda tentou falar alguma praga de maldição, mas já era tarde demais e ele tombou já sem vida.

Preocupado com sua família, Xangô correu pelos corredores do palácio em busca deles. Para a sua alegria estavam todos bem. Encolhidos em um canto do seu quarto. Após abraços e choros veio o alívio. Ainda naquele mesmo dia o povo de Oió recebeu a notícia de que o reino estava novamente em boas mãos.

XXX

As cerimônias de passagem de coroa na África não tinham muita pompa. Assim que recebeu sua coroa de latão, Xangô sentou em seu trono. Estava oficializado, ele havia se transformado no rei de Oió. Nessa posição ele demorou apenas vinte anos, tempo suficiente para que os filhos dele com suas três esposas amadurecessem. Em um certo dia o orixá olhou para o céu e comprovou que havia chegado o momento. - Pai Oxalá, só peço que minhas esposas venham comigo. - Atendendo a esse pedido, o líder daquele panteão abduziu Xangô, Oxum, Iansã e Obá. Seguindo os passos do rei, as três rainhas acabariam por se tornar orixás também. Isso depois de cada uma ter que passar por uma provação similar.

A subida do rei e das rainhas para o Orum foi vista com espanto pela maioria dos palacianos, menos para o jovem Ayodele. Filho de Xangô com Oxum, ele já havia sido advertido que algo assim poderia acontecer a qualquer momento. - Não temam, irmãos e irmãs! Nossos pais deixaram o mundano para serem reverenciados pela eternidade!