02 – O Enigma do Aço.

2015. Em uma escola pública situada em uma cidade pequena do interior da Bahia, um homem de pele morena que parecia ter por volta dos quarenta anos, assistia a uma partida de futebol de turmas ginasiais. Ele não era pai de nenhum estudante, como a maioria dos adultos ali presentes. O que o atraiu àquele lugar foi um latejar na nuca, uma sensação de que deveria estar presente senão perderia algo importante. Aquela tarde estava quente, mesmo assim ele vestia um sobretudo beje. A intenção daquela indumentária era esconder algo que assustaria os presentes.

O sexto sentido do homem de sobretudo subitamente sinalizou que ele deveria se afastar da aglomeração e rumar até uma sala que estava sem alunos e professores por causa do evento da quadra. Chegando lá, ele encontrou um homem louro de terno e seu sentido apurado só faltou explodir sua cabeça. O galego desembainhou uma espada templária e o homem de sobretudo mostrou uma catana adornada com um cabo de marfim.

Lutas de espadas na ficção são bem mais longas do que na realidade. Em tempos antigos, tudo era resolvido com um ou dois golpes, as vezes, em alguns casos, haviam defesas e contragolpes. O homem de sobretudo começou atacando pela direita, mas o seu adversário conseguiu bloquear. O galego tentou uma estocada, mas o homem moreno usou seu próprio braço esquerdo como escudo e acertou o rival no pescoço em um ataque lateral. A espada samurai lacerou a laringe do europeu.

- Como a nossa única ferida real é a decapitação, suportar um pouco de dor em prol de uma vitória é uma tática que você deveria levar em conta. - O homem moreno removeu a espada templária que estava atravessada em seu braço e a jogou no chão. Sua ferida imediatamente começou a se curar. - Pena que essa dica você levará ao túmulo. - Com a mão do braço bom, o homem de sobretudo agarrou sua espada, que ainda estava presa à garganta do seu rival, e aplicou força suficiente para desprender a cabeça do galego.

Respondendo a morte do templário, as luzes da quadra de esportes se apagaram. Lâmpadas começaram a estourar, assim como telas de celulares. Carros estacionados próximos a quadra tiveram seus motores fundidos. Para aumentar a confusão, alguns dos presentes testemunharam um comportamento estranho de raios de energia. Na sala de aula onde houve o combate, o corpo do galego morto se transformou em luz e invadiu o corpo do espadachim campeão.

XXX

- Qual o seu nome? - Em um quarto de hotel, uma conversa era gravada. A aparelhagem usada para registrar a entrevista era antiga, pois era o ano de 1995.

- Ali Kassim.

- Seu português tem um sotaque diferente. Qual sua origem?

- Hoje vocês chamam o lugar onde nasci de Iraque, mas no meu tempo essa área pertencia ao império persa.

- Uma vida tão longa... Você seria algo como um vampiro?

- Não bebo sangue, se é isso que quer saber. - Ali Kassim começou a relatar como eram as coisas no seu tempo. Não lhe foi ensinado a escolher seu próprio rumo, o seu único destino permitido era o de servir ao "deus rei" Xerxes como soldado. Foi em uma tarde ensolarada que Kassim enfrentou sua primeira morte. Combatendo um exército grego de mil homens, Kassim teve seu peito perfurado por uma lança. Era para ele ter morrido, mas não foi isso que aconteceu. - Não entendi por que Aúra-Masda (o deus benevolente dos persas) não me levou. Sem ter ninguém próximo que entendesse minha condição, eu desertei e vaguei por terras distantes.

- Você não envelhece, entendi isso ouvindo sua história, também é resistente à maioria dos ferimentos. Como funciona a sua imortalidade?

- Só posso ser tocado pela morte verdadeira através da decapitação. E mesmo assim só pelas mãos de outro imortal. Já vi um dos nossos ser acometido por uma forte depressão e tentar a morte com uma guilhotina. Sua cabeça voltou ao lugar assim que tiraram o corpo do aparelho.

- E por que um imortal mataria outro? Não seria mais simples viverem eternamente em paz e harmonia?

- Aí entra O Enigma do Aço. Nenhum dos imortais sabe exatamente o que é, mas todos sentem que há um prêmio para aquele que se tornar o último da raça.

XXX

2027. Ali Kassim terminou de assistir à gravação e, antes de desligar o VHS, rebobinou a fita. Ele era um homem antigo e por isso demorava a se adaptar a hábitos modernos. Sua principal morada era um antiquário situado na capital do Rio de Janeiro. Lá ele mantinha guardado tudo o que julgava valer a pena ser deixado como seu legado. A única companhia para a sua solidão era um filho adotivo. Imortais são inférteis e avessos a relacionamentos duradouros. A velhice sempre alcançava seus conjugues e entes queridos.

- O senhor não voltará dessa vez, não é? - Astolfo estava triste. Ele ainda via aquele homem como um pai apesar de tudo. Astolfo parecia ter quase o triplo da idade de Kassim, mas, ele foi adotado quando tinha apenas sete anos. Aos olhares modernos a relação entre os dois seria no mínimo discutível. Ao mesmo tempo em que gozava do privilégio de alguma herança, Astolfo exercia o papel de mordomo. Na ótica de quem tinha mais de dois milênios de nascido, um empregado que "era praticamente da família" era aceitável.

- Estou sentindo a localização dos últimos da minha gente. Só há duas alternativas, ou eu entendo o que é o Enigma do Aço ou finalmente conheço a morte. - Kassim abraçou forte Astolfo e deu um beijo demorado em sua testa. - Cuide de tudo. Com sorte nos revemos no outro lado.

Passar pela alfândega com uma espada samurai seria impossível para a maioria das pessoas, mas Ali Kassim acompanhou o desenvolvimento do sistema aéreo. Ele conhecia todas as suas falhas. Naquela manhã, o imortal persa entrou na área do aeroporto reservada aos funcionários por outro motivo além de esconder sua arma. Ele sentia que havia outro imortal por perto. - Aramis?

O francês já estava com sua espada desembainhada, mas, em demonstração de honra, esperou Kassim sacar a sua. A luta, como de costume, foi breve. Depois de dois golpes, Ali Kassim acertou a mão do francês que segurava a espada e este deixou a arma cair. - Espera! - Gritou Aramis, com a lâmina do seu rival quase encostando o seu pescoço.

- Depois daquele episódio com a guilhotina eu pensei que você ansiava pela morte.

- Eu só estava confuso. Tinha acabado de perder meus três fiéis companheiros.

- Não se preocupe, com sorte vocês vão se reencontrar. - Aramis já estava começando a sentir o frio do aço perfurar sua carne quando um som de tiro ecoou pelo corredor. O atirador usou uma pistola e, demonstrando uma mira sobrenatural, acertou a catana de Ali Kassim, que foi cair a alguns metros de distância. Logo o imortal persa percebeu que o atirador era um igual. - Isso é contra as regras! Só é permitido o uso de armas brancas, é sempre um contra um e só acaba quando uma cabeça rolar no chão!

- Quem inventou essas regras? Pra que elas servem? O que é esse bendito Enigma do Aço? - Começou a falar o imortal norte-africano armado com uma colt. - Me chamo Mansa Musa e, se me der um pouco do seu tempo, posso provar que isso tudo é uma grande besteira.

Ainda no aeroporto, guardada de maneira displicente dada a sua importância, havia uma tabuleta de aspecto antigo. Ali Kassim conseguiu traduzir alguma coisa, mas a maioria dos símbolos cuneiformes pareciam anteriores ao seu tempo. - Há alguma referência ao cristianismo ou eu estou imaginando coisas?

- Resumidamente, aqui é contada qual foi a natureza da maldição que abateu o primeiro assassino da humanidade. Caim, assim que matou o seu irmão, Abel, se tornou o primeiro imortal. Impedido assim de ascender ao Paraíso. - Respondeu Mansa. - Nós somos os filhos dessa maldição. Compelidos a continuar o exemplo de assassinatos do nosso predecessor.

- E o Enigma do Aço?

- O grande prêmio do "último da raça" é ser libertado da imortalidade. Mas, devo lembrar, que esse imortal passará a ser refém das regras que regem o resto da humanidade. Os bons sobem e os maus descem. Não sei quanto a vocês, mas, para me tornar o homem mais rico da história, eu fiz muita coisa que me retira da primeira opção.

Antes de Mansa e Aramis perceberem, Ali Kassim foi tomado por uma grande raiva. Ele passou séculos perseguindo um objetivo, ouvir que deveria abandoná-lo o encheu de fúria. Mais rápido que os reflexos do mosqueteiro francês, Ali desembainhou sua catana e separou sua cabeça do resto do corpo. Aramis estava de costas para ele, mas Ali não se julgava um covarde. Na ótica dele foi Aramis que baixou a guarda.

Enquanto raios vindos sabe-se lá de onde destruíam tudo o que era eletrônico dentro daquela área, Mansa Musa desembainhou sua colt e atirou no imortal persa várias vezes. Armas de fogo não dão cabo de um imortal, mas, somadas com um evento de transferência de energia oriunda de uma decapitação, atrasam e muito. O tempo foi essencial para que o africano fugisse.

XXX

A primeira morte de Mansa Musa se deu no século XIV, em meio a uma batalha contra o império ganês. Ele já era herdeiro de uma grande fortuna, devido ao seu status de imperador do Mali. Daí por diante ele acumulou uma riqueza incalculável. Sem ter a morte como impedimento, o imperador passou séculos juntando investimentos e uma soma aviltante de valores. Seus projetos eram variados, indo de pesquisas arqueológicas até colonização de outros planetas. 2177, a Terra se tornou pequena demais. Mansa não queria se tornar o último de sua raça e, muito menos, ser decapitado. Por causa disso se tornou um dos primeiros colonos marcianos. Porém, o tempo passou. 2523, a viagem interplanetária ainda era custosa, mas não só reservada aos bilionários.

- Deixa eu adivinhar, é a sua primeira estadia fora do nosso planeta mãe, certo? - A nave espacial tinha o formato parecido com o de um boeing de antigamente por puro saudosismo. Não havia necessidade daquela aerodinâmica para voar no espaço. Os funcionários e passageiros não mais precisavam ficar presos por cintos, pois a gravidade artificial já havia sido desenvolvida.

- Vim a trabalho. - Com mais de dois mil anos de idade, poucas coisas impressionavam Ali Kassim. Poder estar tão perto das estrelas, um espaço que quando ele era jovem só podia ser cultuado, era uma delas.

- É a minha segunda vez em Marte. Já estão falando em uma nova colônia em Vênus também. Pena que não tenho dinheiro o suficiente para bancar essa aventura. - O homem que incomodava Ali Kassim tinha um chip de memória implantado em sua têmpora direita. Não tinha como o imortal persa saber, mas, enquanto conversava, o homem ouvia "música clássica". Naquele tempo tão distante, o significado desse termo foi alterado. "Música comercial" se referia a qualquer som criado por inteligência artificial e clássica a qualquer som, mesmo que só com dois acordes, feito por uma pessoa de carne e osso.

Uma grande passagem metálica foi aberta no solo. Graças a atmosfera pouco propicia a vida, a sociedade de Marte foi construída no subterrâneo. Era comum encontrar moradores do planeta, nascidos lá, que nunca viram o céu. A nave estacionou em um dos vários espaçoportos e seus passageiros começaram a desembarcar. Antes de saírem, eles primeiro pegaram suas malas no bagageiro.

- Você é um músico erudito? - Perguntou o parceiro de viagem de Ali Kassim. O guerreiro persa tinha trazido consigo apenas um case antigo (do século XXI) de violão. Dentro dele não havia um instrumento musical, mas sim a ferramenta de sua justiça.

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- Como assim o meu voo para Vênus ainda não está pronto?! Você sabe com quem está falando?! - Mansa Musa sentia Ali Kassim se aproximando. O imortal persa estava cada vez mais próximo e isso era alarmante. Naquela época não era mais necessário usar aparelhos externos como computadores e celulares para acessar a internet. Com hardwares minúsculos, implantados de maneira subcutânea, era possível acessar uma rede de comunicações chamada de Neuronet. Depois de ficar ciente de que seu plano de fuga não era mais viável, Mansa espalhou pela rede neural a imagem de Ali e um valor de sete dígitos por sua cabeça a qualquer mercenário interessado.

Mesmo tendo muito tempo para se acostumar com novidades, Ali Kassim não conseguia aceitar algumas delas. Enquanto andava pelas ruas da metrópole marciana, o guerreiro persa constatava o quanto a humanidade havia mudado. Poucos continuaram sendo homo sapiens. Em um processo chamado transumanismo, a maioria da população editou seus genes ou colocou implantes cibernéticos. Tudo para ter habilidades aprimoradas ou uma maior expectativa de vida. Essas pessoas eram consideradas o próximo passo da evolução e começaram a ser chamadas de homo novíssimas.

Mesmo com a passagem de séculos, alguns tipos de comportamentos não mudavam. Ali Kassim não demorou a perceber que estava sendo seguido. Em um movimento ousado, Ali desapareceu da vista do seu perseguidor. Quando este o viu novamente, Ali já estava o segurando com um mata leão. O persa poderia perguntar o porquê daquela perseguição, mas já sabia a resposta. Sua intuição não estava errada, Mansa Musa seria capaz de gastar toda sua fortuna para se ver livre dele. Ali pegou a arma que estava escondida na jaqueta do mercenário e atirou em sua coluna, matando-o.

Ali Kassim nem precisou andar muito pra ser atacado mais uma vez. O carro flutuante foi guiado com toda a sua velocidade em cima dele. Ali foi atropelado e imprensado contra a parede de um bar. O mercenário responsável pela manobra ficou feliz achando que tinha resolvido o contrato. Para o seu azar, o seu alvo não morria de maneira convencional, Ali se arrastou para fora das ferragens e atirou duas vezes no assassino, uma nas pernas, para deixá-lo de guarda baixa, e uma segunda vez no meio da testa.

Mansa Mussa morava em uma torre subterrânea. A construção era uma gigantesca caixa-forte reservada apenas aos seus bens. Morando no andar de cima, Mansa mais parecia um dragão de conto de fadas. Ele guardava mais ouro do que precisava, mesmo assim não o cedia com facilidade. Recolhido no canto do seu quarto, ele ouvia sons de tiro cada vez mais próximos. Seus guardas estavam tendo dificuldade em parar o avanço de alguma coisa e, pra piorar, o sexto sentido do magnata lhe dizia que seu algoz estava cada vez mais perto.

A porta do quarto foi chutada com força, Ali Kassim ficou diante do homem que passou os últimos séculos perseguindo. - Levante e pegue uma espada! Vamos fazer isso da maneira certa! - Mansa continuou em posição fetal no canto do cômodo. Seu corpo tremia e ele se negava a encarar Ali. O persa achou uma espada com cabo de ouro adornando uma das paredes e a pegou, só para depois a jogar aos pés de Mansa. - Você também consegue sentir que nossa jornada chegou ao fim. Vamos, de pé!

Mansa e Ali ficaram de pé um em frente ao outro. Com suas espadas posicionadas para a batalha. Eles demoraram mais tempo analisando os pontos fortes e as fraquezas um do outro. Quando a luta começou de fato, ela durou apenas o suficiente para que as lâminas se chocassem duas vezes. No terceiro golpe, Ali Kasssim aproveitou uma abertura e com um corte forte de sua catana decapitou o último imortal.

A passagem de energia do decapitado para o vitorioso foi grande. Pela primeira vez Kassim sentiu a eletricidade de uma cidade inteira invadi-lo. Após a experiência, o guerreiro persa foi tomado por sensações que não sentia a séculos. Suas juntas doíam e ele foi acometido por uma forte tontura. Os incômodos eram bem-vindos, pois eram sinais de que, depois de tanto tempo, ele estava realmente vivo. Um imortal não mais.

XXX

2579, Iraque. - Avô, por que não aceita tratamento genético?

- Não, meu bem. Estou sentindo que o meu tempo finalmente chegou ao fim. Além do mais, eu quero partir como um ser cem por cento humano.- Ali Kassim, depois que resolveu o Enigma do Aço, decidiu voltar para a sua terra natal, mesmo ela estando bem diferente de como era no seu tempo. Lá ele encontrou uma mulher que passou a chamar de esposa e com ela teve três filhos. A moça, que agora já era uma senhora de idade, não saia do seu lado. Ela permanecia sentada em uma poltrona.

Ali Kassim estava deitado em uma cama feita para tratamento hospitalar. Porém, ele preferiu passar seus últimos dias em casa. Ali estava na presença de filhos, netos e parentes mais distantes. O persa estava no meio de uma conversa quando de repente uma luz de cima o pegou desprevenido. As dores que o acometiam não eram mais sentidas. Não era um estado similar ao de sua época de imortal. Ali Kassim sorriu quando percebeu que experimentaria um tipo mais sublime de imortalidade. A luz o engoliu e tudo que era material foi deixado para trás.