Depois de suas reflexões culposas, Quaritch sentiu um líquido amargo tocar seus lábios e passar por sua garganta. A partir de então, não sentiu mais nada, apenas mergulhando em sono profundo.
Varang dispensou os curandeiros e ficou com o marido, em vigília, esperando que ele acordasse, até sentir o cansaço da espera no próprio corpo. Ele então abriu os olhos lentamente, vendo-a ao lado dele. Percebendo que Miles estava desperto, ela se levantou num impulso de uma vez, observando cada aspecto dele.
-Varang... - Miles murmurou e a esposa colocou uma mão firme em seu peito.
-Não se levante nem faça esforço - ela ordenou com a voz cansada.
-Está bem - ele concordou - só me faça um favor em troca.
-Do que precisa? - ela estava disposta a fazer o que fosse necessário.
-Não quero que derrame suas lágrimas por mim - ele pediu categoricamente, ainda sentindo o corpo fraco.
-O que? Não, esse é um pedido que eu não poderia aceitar - ela explicou de imediato, um tanto indignada com a atitude - por que me pediria tal coisa?
-Eu vi o que minhas ações provocaram em você - ele declarou - eu sou um homem que não merece lágrimas sinceras de ninguém, se me conhecesse não choraria por mim.
-Eu conheço quem você é pra mim - ela segurou uma das mãos dele - e eu sei que meu coração ficaria partido se você morresse.
-Pelo bem ou pelo mal, eu ainda estou aqui - ele disse em tom de desdém, nada disposto a reconhecer seu valor no momento.
-Quem é você, Miles Quaritch? Me conte agora - questionou Varang, disposta a ouvir a história toda.
-Aí é que está, princesa - ele suspirou - eu tive duas vidas, eu não sei se essa de agora é uma continuação dela ou uma nova vida.
-Explique - ela exigiu com toda autoridade que podia colocar em uma única palavra.
-Eu era um ser humano, um homem com a aparência do povo do céu - sentindo-se derrotado, Miles escolheu contar sua história - eu era o guerreiro líder, eu fiz tudo que me mandaram, destruí o lar dos Omatikaya, matei com todo prazer, apenas querendo conquistar o que eu acreditava ser o futuro do meu povo; eu fui morto, o antigo eu foi morto pela esposa de Toruk Makto, mas o povo do céu me trouxe de volta à vida, querem que eu o mate, era pra isso que eu vivia, mas agora eu encontrei você, encontrei seu povo e não posso negar a conexão profunda que eu tenho com você.
Aqui, o recombinante fez uma pausa e tocou o rosto da esposa, observando os olhos comovidos dela.
-Você me pergunta quem eu sou, Varang, nem eu mesmo tenho essa resposta - ele voltou a falar - nem eu mesmo esperava encontrar a vida que eu tenho com você, vivendo como um do seu povo.
-Eu entendo - ela assentiu - mas a vida que quer viver está em suas mãos agora, você decide o que quer, mas se eu posso pedir, eu imploro, me escolha, escolha o que nós temos, escolha a nós porque eu amo você.
Varang tomou uma das mãos dele e a colocou sobre seu coração latente, Quaritch pôde sentir a forte pulsação, muito parecida com a dele.
-Eu tive algo parecido com isso antes, muito tempo atrás - ele confessou, lembrando-se de Paz - mas com você é diferente, é tudo mais intenso, eu quero que as coisas sejam certas com você, Varang, eu também amo você.
Ela não hesitou em beijá-lo, completando o momento. Ambos sentiram o conforto de suas palavras e a gratidão de estarem juntos, vivos e terem um ao outro.
Varang se deitou ao lado dele, se agarrando ao seu torso, prendendo-se em seus braços. Adormeceram juntos, e a companhia um do outro fez com que Quaritch se tranquilizasse e focasse na sua recuperação.
As responsabilidades de Varang como olo'eyktan a chamaram para fora de sua cabana e, enquanto ela as atendia, seu marido focava-se em se recuperar.
Quando Miles conseguiu se pôr de pé outra vez, ainda sentia o espírito pesado e melancólico, no entanto, parte dele se sentia aliviado por ao menos ser capaz de abrir o coração, admitir suas falhas e fraquezas, junto aos sentimentos que não podia negar.
Varang notou a mudança em seu humor, o que a incomodou e a fez agir depressa para remediar isso. Ela o fez ter o jantar e então o convidou para uma caminhada. Miles estranhou o convite, chegando a estreitar os olhos e as orelhas ficando em pé, em alerta.
-Não há com o que se preocupar, eu jamais ofereceria perigo a você - ela procurou acalmá-lo, acariciando seu braço - confia em mim, não confia?
-Confio, na maioria das vezes - ele foi sincero, sabendo que a esposa podia ser traiçoeira quando queria.
-Então venha, não nos faça nos demorar mais aqui - ela sorriu na sua forma típica, o puxando pelo pulso.
Miles agarrou a mão dela com firmeza, e então a seguiu para onde quer que fosse que Varang pretendia levá-lo.
Era como um milagre encontrar um lugar iluminado pela bioluminescência entre tantas cavernas e vulcões tingidos por fumaça e fuligem, mas Varang conhecia bem aquele lugar.
-Como encontrou isso aqui? - Miles questionou, depois de passar pela passagem de ramos bioluminescentes, com as mãos estendidas sem acreditar na beleza do lugar.
-Eu vinha até aqui quando era mais nova, encontrei-o nas minhas próprias explorações - ela explicou, dando um sorriso, rodopiando no próprio eixo de tanta alegria - queria compartilhá-lo apenas com meu marido e é isso que estou fazendo agora.
-Obrigado, é realmente um lindo lugar - ele concordou, enquanto se sentou no chão para apreciar a beleza à sua volta, incluindo a de Varang.
Os olhos atentos de Quaritch sobre ela acenderam nela a vontade de dançar, numa demonstração de interesse pelo marido. Ela passou por ele, andando com passos precisos, erguendo os joelhos no que ele conseguiu deduzir como passos de dança. Varang arrancou um dos ramos da entrada do lugar.
Os pés dela deslizaram e se ergueram do chão em rapidez, enquanto os braços se moviam de forma sinuosa. Varang girou no próprio eixo, mantendo a cabeça erguida e abaixada algumas vezes seguidas.
Voltou à frente de Quaritch, rodopiando o ramo ao longo do espaço em volta dela, até se aproximar dele, rodopiando o ramo ao redor dele, numa espécie de transe, como se criasse um mundo e um ambiente apenas para os dois. Varang deixou que o ramo arrancado repousasse em torno do pescoço dele.
Quando tudo ficou em silêncio, ela aproveitou o momento de quietude e se sentou na frente dele, segurando uma de suas mãos, tocando a palma dele com a dela. Varang então se virou e o abraçou forte, o mantendo perto dela. Quaritch depositou beijos delicados em seu rosto.
-Há algo que eu gostaria de fazer - ela disse, olhando para ele - não fiz isso antes porque eu não confiava em você e não o conhecia, mas agora eu sei quem você é, posso me dividir com você - Varang levou as mãos dele até a própria trança - essa é a nossa maneira de se conectar ao mundo, você já a conhece, mas agora, para estarmos unidos mais do que nunca, quero me conectar a você.
-Entendi - Quaritch engoliu em seco, um tanto nervoso.
Sua esposa passou um dedo por seu pescoço, onde viu o músculo se mexendo.
-Isso é muito sério, e não tem volta - ela declarou com toda seriedade - nós estaremos unidos um casal para sempre.
-Colocando nesses termos, soa assustador - ele foi sincero - mas eu não mudei o que eu disse a você, eu te amo, Varang, e aprendi a amar a vida que temos aqui, eu quero me unir pra sempre a você.
Ela então sorriu contente, concordando com ele, beijando seus lábios com toda vontade. Sua trança ainda estava nas mãos de Quaritch quando eles se separaram. Então de bom grado, ele entregou sua trança à esposa, confiando nela.
Sentir as conexões neurais se unindo deu uma pontada forte na mente dele, como tivesse sentido o solavanco de um veículo. Seus olhos se arregalaram, e seus pensamentos se formaram na figura de uma garotinha Na'Vi, chorando, sozinha, tornando-se numa guerreira feroz e então, ele viu de forma muito vívida o seu primeiro encontro com Varang outra vez.
Varang por sua vez, sentindo-se um pouco mais atordoada, devido às lembranças de duas vidas do marido. Ela o viu como um homem do céu muito mais jovem, em meio de um campo de batalha, viu como ele ganhou as cicatrizes no rosto que costumava ter, as poderosas garras de um nantang encravadas ali.
Viu sua antiga amada, e depois, a figura que mais chamou sua atenção em tudo aquilo, um garoto humano com modos na'vi, a maneira desolada como Miles o chamou de filho e o garoto o abandonou. A imagem então se transformou para os momentos agradáveis que passaram juntos.
Sentindo que as lembranças de Miles eram essas também, Varang apenas se deixou levar pelo momento. Sentou-se em seu colo, beijando-o e o segurando pelo pescoço. Seus questionamentos sobre a identidade do garoto poderiam esperar.
