Muna seguia ao lado de seu irmão ladeada por quatro soldados. Eles seguiam devagar por causa da espessa e úmida neblina da madrugada que dificultava a visibilidade. Trajados com longos casacos e gorros de pele de urso, atravessaram as muralhas de Olmak.
Seu irmão, Tamujin, ia montado num castrado com a compleição indiferente, mas Muna o conhecia bem o suficiente para saber que estava ansioso. Ele não era exceção.
Eram, respectivamente, o quarto príncipe e a primeira princesa de Olmak. Sendo os mais novos, pouco do reino sobrará para dividir com eles. Os três príncipes mais velhos tinham regimentos, títulos e terras e, o mais cobiçado pelos dois, um djinn. Com a maioridade de Tamujin, o rei deu o papel de coronel chefe de um regimento de elite. Meses mais tarde, foi a vez de Muna se condecorada como coronel de seu próprio regimento.
Agora, ambos irmãos, seguiam para as minas Nargabad, ao extremo leste da capital. Faizel Sahin, soberano autocrata de Olmak, dará aos filhos mais novos o comando absoluto das minas que, além da extração de minério, servia como prisão. Seriam enviados para resolver a situação precária, pois próximo às minas havia uma aldeia e metade dos mineradores eram oriundos dela.
Era tudo em prol do reino e a chance de Muna mostrar que, assim como seus irmãos, amava seu povo e país.
— Qual é o nome da aldeia mesmo? — perguntou Tamujin, olhando a irmã de relance. Cavalgava sobre o castrado como um comodante de exército, ereto e fitando o caminho a frente.
— Não tem, pelo que soube. — respondeu Muna.
— Então temos que dar um nome. — Sorriu. — Uma aldeia inteirinha nossa.
— Do rei — corrigiu Muna. Eram ensinados a não chamar o rei de pai em público, apenas na presença do mesmo. — E qual é a graça de ter uma aldeia raquítica, pobre e nem um pouco desenvolvida? A mina ao menos nos garante riquezas.
— As minas têm bandidos — retrucou. — Bem, e quanto a aldeia, podemos dar um jeito. Eles ficarão impressionados quando chegarmos lá.
Muna deu de ombros. Seu irmão mais velho era estatura média e bonito, com os cabelos castanhos desengrenados. Seus olhos eram castanhos e compenetrados.
— Vossa alteza — chamou um dos soldados. —, é melhor cavalgarmos para chegarmos cedo. As estradas para lá são perigosas.
Tamujin olhou para trás, vendo o vulto da muralha e da torre do castelo desaparece através do nevoeiro. Era a primeira vez em que se afastava do lar sem saber quando voltaria: afinal, tudo dependia do sucesso deles para que regressassem com honras e festanças.
— Vamos! — Tamujin gritou, conduzindo o castrado cinza para estrada a frente.
As estradas até Nargabad estavam tranquilas e silenciosas, com um ou dois acampamentos nômades espalhados. Por toda região que passaram, Muna as conhecia bem. Como princesa de Olmak, havia crescido sobre o lombo de um cavalo. Desbravou planícies, visitou cidades, vilas e quartéis general na companhia do pai e dos irmãos. Atravessar tudo aquilo era nostálgico.
Após um dia inteiro de viagem a noite chegou, e Nargabad ainda era distante para os viajantes. Optaram em descansar em meio a uma clareira. Amarram os cavalos nas árvores, acenderam uma fogueira e ajeitaram uns cobertores feito de pele animal para que pudessem deitar com tranquilidade. Isso não era incômodo para o príncipe, tampouco para a princesa. Era da cultura deles viver como nômades.
— Prosseguirmos pela madrugada — decidiu Tamujin. — Se eu estiver certo, ainda há uma grande distância daqui até Nargabad.
— De qualquer forma vamos chegar lá a noite. — Observou Muna. Havia tirado as botas dos pés e mexia os dedos em frente ao fogo crepitante para se aquece. — Deveríamos caçar alguma coisa para comer. Aveia e cereais não vão nos sustenta!
Tamujin deu de ombros. A comida que o rei providenciará para todos era suficiente. Abraçou os joelhos e olhou para o céu estrelado. Embora estivessem em lugar aberto, não conseguia identificar nenhuma das constelações no céu para ter uma orientação. Entretanto, Muna parecia conhecer todas.
— Lá dentro será que tem estrelas? — indagou ele de repente.
Muna o encarou curiosa, primeiramente sem entender e depois deu de ombros.
— Ouvir Batbayar dizer que dar para ver algumas coisas, como planetas e constelações estranhas. — respondeu. — Mas você é um idiota por perguntar isso.
— Que! — espantou ele.
A princesa deu de ombros. Pôs as mãos atrás da cabeça, deitou-se no chão e olhou para o céu.
— Sei que está com medo.
— Não estou, não! — protestou Tamujin.
Muna o olhou de relance e riu.
— Você não consegue esconder nada. Seu rosto é como um livro aberto, é bem fácil saber o que pensa antes mesmo de dizer.
— Pelos menos não fico fingindo que sou um homem — ele retrucou. — É sério! Às vezes não sei quem você está tentando imitar.
Muna se sentou com um pulo e dardejou um olhar furioso ao irmão. Tamujin pouco se importara com a reação dela, pois em sua opinião estava certo. Muna apressou-se para sair dali se deitar de baixo dos cobertores.
Partiram antes do amanhecer.
Chegaram a Nargabad junto com o crepúsculo. Todos tinham frio e fome com a esperança de comer algo quente e suculento naquela noite, mas a visão da aldeia desfez tal possibilidade. Eram três casas pequenas feitas de madeira, telhados de palha e buracos onde deveria haver portas. As três formavam um círculo, tendo no centro uma casa de pedra cinzenta com portas e janelas.
No instante que entraram na aldeia a cavalo, as pessoas, antes temerosa com a visita de estranhos, se aglomeraram ao redor deles. Todos vestiam túnicas remendadas.
Tamujin fez uma breve mesura a eles e foi encarado com curiosidade.
— É este o lugar? — Ele sussurrou ao soldado que aquiesceu. — Não imaginava que fosse assim.
— Espero que consiga dar um jeito — comentou Muna sarcástica
O quarto príncipe fungou. Da casa de alvenaria, saiu um homem baixo, calvo e que andava rápido e desajeitadamente. Vinha ao encontro deles balançando as mãos freneticamente
— Vossas altezas, finalmente chegaram! — disse ele e virou se para as pessoas ao redor, irritado.
— Ei, vocês, os reverenciem, são os nossos príncipes!
Os aldeões o obedeceram e dobraram os joelhos. Muna e Tamujin desmontaram de seus castrados.
O homem fez uma profunda reverência.
— Eu me chamo Gambo, fui encarregado para recebê-los em nossa humilde aldeia.
— É um prazer conhecê-lo — pronunciou Tamujin, olhando tudo minuciosamente. — Por que há tão poucas casas aqui?
— Hm... Vamos entrar primeiro, vossa alteza — sugeriu ele, os guiando para a casa — Devem estar cansados. A viagem até aqui é tão longa, não é. As estradas não são boas. Oh, e seus nobres soldados serão muito bem alojados em minha casa.
Muna olhou com interesse para a casa na qual se dirigiam, curiosa com a boa arquitetura em contraste com as outras.
— Essa casa é sua, senhor Gambo? — Muna indagou.
Ele aquiesceu animado.
— Sim, sim, meu príncipe. Antigamente a casa servia como administração da mina, mas como ficava longe do local eles preferiram construir outra e abandonar essa.
— "Princesa" — corrigiu ela, soerguendo a sobrancelha.
Gambo a olhou espantando e encontrando o erro, corou envergonhado e se prostrou no chão, aos pés de Muna.
— Me perdoe. Me perdoe, adorável princesa, sou velho e doente! A pouca luz me enganou.
Tamujin soltou um riso de escárnio.
— Não se desculpe, as vezes minha irmã gosta de se comparada a um homem.
Muna dardejou um olhar a seu irmão. Escoltados por seus soldados, adentraram na casa. Era ampla e pouco iluminada por velas, deixando parte da residência na penumbra. Uma escada de madeira degastada levava ao segundo andar.
— Mora aqui sozinho, senhor Gambo? — perguntou Tamujin, retirando o gorro da cabeça.
— Não, vossa alteza. Tenho alguns empregados. Sabe, não há emprego aqui além das minas, então algumas mulheres podem trabalhar como empregadas aqui, mas mal tenho dinheiro para dar a elas. Sinceramente, não a muito o que se fazer aqui.
— Espero poder mudar isso — comentou Tamujin educadamente, pois não via forma de mudar alguma coisa.
Gambo os levou para sala de estar, um aposento pequeno e rodeado por cadeira. Muna retirou o gorro, mostrando o cabelo trançado e preso no alto da cabeça. A primeira princesa não tinha nenhum traços femininos, além dos olhos castanhos onde passava kajal para marcá-los. Sua expressão séria e as túnicas sem qualquer forma, dava-lhe a aparência masculina. Todavia, Muna não se importava.
— Amanhã bem cedo o chefe das minas virá buscá-los — informou Gambo. — Ele esteve aqui a manhã toda, mas voltou ao entardecer. As minas não funcionam sem ele.
— E porque não vamos agora à noite? — Tamujin perguntou, sentando na cadeira.
Muna olhou para janela, os aldeões se aglomeravam sobre o vidro para vê-los.
— Não é seguro — respondeu Gambo — O caminho até lá é estreito. Deseje que feche a janela, vossa alteza?
Muna negaceou e sentou na cadeira.
— Pelo que observo, aqui não há gado ou ovelhas — constatou ela. — Como se alimentam?
— Oh, boa pergunta, vossa alteza. Mensalmente um enviado da capital nos traz alimento. É pouco, mas conseguimos sobreviver.
Não tirava os olhos da janela, percebendo o quanto àquelas pessoas eram magras, de rostos secos e olhos fundos.
— Já houve alguma epidemia aqui, por acaso? — ela continuou a perguntar. — Há médicos aqui?
Gambo abriu a boca para respondê-la, mas uma mulher de rosto longo e seco surgiu na divisória da sala para o corredor, anunciando o jantar.
A sala de jantar não era diferente da sala em que estavam; pequena e com móveis rústicos. A comida já estava posta quando entraram.
— Para alguém que falou que recebia pouca comida, isso aqui é um banquete — observou Muna.
Gambo deu algumas risadinhas e puxou a cadeira para ela.
— Sente-se aqui, vossa alteza, por favor. — pediu ele. — E sobre a comida, confesso que queria impressioná-los.
— Não tinha porquê fazer isso. — disse Tamujin. — é muita coisa para só seis pessoas, contando com nossos soldados.
— Será que as pessoas lá fora recebem a mesma quantidade que você? — Gambo engoliu em seco, e sentou numa das extremidades da mesa.
— Lhe garanto que sim, vossa alteza — disse ele nervoso.
Tamujin e Muna trocaram breves olhares antes de comer. Sobre a mesa tinha faisão, sopa condimentada, arroz frito, tofu e chá fermentado.
— Senhor Gambo, não respondeu minha pergunta anterior — disse Tamujin. Gambo arqueou as sobrancelhas em dúvida. — Sobre as casas.
— Ah, sim! — exclamou ele. — Por aqui, além das pedras, não há muita coisa para se usar. Aquelas casas foram as únicas que o chefe das minas deixou fazer. Elas abrigam diversas famílias. Sinto mais pena pelas crianças, elas não têm culpam pelos crimes dos pais — arrancou um pedaço do faisão. — É claro que alguns homens que trabalham lá são honestos, mas voltam raramente pra cá.
— Tolice se mudar para cá por causa de um homem — disse Muna, mastigando o arroz frito. — São tolas por amar um condenado e ter filhos com eles.
— Eu não sou uma tola! — vociferou mulher. Muna não perceberá que a mesma mulher que os chamará ainda estava na sala de jantar, até então silenciosa. — Você, como única filha do rei, deveria saber como as leis são ridículas para mães solteiras, viúvas e esposas de presidiários. Vivendo tranquilamente no palácio é fácil falar daqueles que vocês são incapazes de enxergará!
Subitamente, Gambo pôs-se de pé apontando o dedo para a mulher. Tamujin o olhou surpreso.
— Quem você pensa que é, mulher! — gritou ele — é maluca por falta com respeito a sua alteza? Talvez seja mesma tola por viver aqui por causa de um criminoso. Agora saia. Já!
A mulher o fitou com rosto branco, pasmada, e antes de sair dardejou um olhar para Muna.
Assim que saiu, a princesa suspirou.
— Não precisava gritar com ela. — Sua voz era baixa.
Tamujin aquiesceu severo.
— Uma falta de educação sua, Gambo
— Mas ela falou mal de sua majestade — gaguejou.
— Sua majestade pouco se importa com os maldizeres que sai sobre ele. — Refutou.
A princesa de Olmak olhou de relance para o irmão e levantou-se da mesa deixando sobras em seu prato.
— Muna… — começou Tamujin, mas foi interrompido.
— Onde ficam os quartos? — perguntou ela.
Gambo pigarreou.
— É… eu posso levá-la se quiser.
— Não preciso de sua ajuda. É no segundo andar certo?
— Sim. Sim, senhorita. No final do corredor, porta a direita.
Um clima pouco amistoso preencheu a sala de jantar assim que Muna saiu. Gambo pigarreou e voltou a comer, embora o gosto não fosse mais o mesmo. Limpando a boca com um lenço, Tamujin pôs se de pé
— Licença — disse ele, saindo da sala com os soldados em seu encalço
No quarto encontrou Muna debruçada na janela sem as botas de couro e descalça
O aposento era simples, com duas camas de catre, uma cômoda e sobre ela, uma pequena vela.
— Parece que deixamos nosso anfitrião sem jeito — pôs as mãos sobre os ombros da irmã e a sacudiu. — Ei, você está bem?
A princesa aquiesceu e virou-se para o irmão, apoiando as costas na janela
— Fiz certo?
— Ahn? Sobre o quê? — ele sentou no catre e puxou as botas do pé — está ressentida por causa daquela mulher?
— Um pouco, talvez.
Tamujin deitou na cama colocando as mãos atrás da cabeça como travesseiro e cruzou os pés.
— É só pedi desculpas para ela amanhã — sugeriu ele.
— Pra você tudo é tão fácil — comentou ela sentando no catre. — Duvido muito que ela aceite.
Tamujin suspirou pesadamente
— Todos aceitam. Somos filhos do rei, afinal. Agora feche a janela e vá dormir.
Mina não objetou, fechou a janela e voltou para cama. Não estava com sono e passou boa parte da noite pensando na aldeia minúscula, sem estrutura ou saneamento. Elas são tolas, pensou.
O som de casco-de-cavalo anunciou a chegada do chefe da mina. Despertaram bem cedo para o desjejum, calçaram as botas e os gorros, e o encontraram do lado de fora rodeado pela população local.
Ele estava montado em um garrano marrom, trajando uma roupa de inverno com uma longa capa azul presa sobre os ombros. Seu semblante era sério e rosto largo.
— Vossa alteza, esse é Chatai, chefe das minas Nargabad.
O homem desmontou do seu cavalo e fez uma profunda reverência a ambos irmãos.
— É um prazer imensurável está na presença de vossa alteza. — disse ele à Tamujin. Virou-se para Muna. — És bela como realmente dizem, princesa.
Tamujin estrangulou uma risada e Muna deu de ombros.
— Sei o que dizem sobre mim, senhor Chatai. Não precisa inventa.
Ele inclinou a cabeça com a mão no peito.
— Peço perdão se a ofendi de algum modo, alteza. Mas uma flor é sempre uma flor.
Gambo pediu a uma das mulheres que buscasse os castrados do estábulo improvisado. Os soldados montaram e Muna também, entanto Tamujin se juntou ao círculo formado pelos aldeões. Gambo e Chatai o flanquearam.
— Hoje, junto a minha irmã, partiremos para Nargabad com a esperança de trazer melhorias para todos. Nosso amado e sábio rei nos considerou aptos para essa função e não voltaremos até que o desejo de sua majestade de realize: tornar Nargabad um lugar melhor. Peço a ajuda de todos para que isso possa se tornar realidade.
Sons de aclamação e vaias se misturaram entre as mulheres, crianças e idosos. Tamujin ignorou as vaias, pois o som da aprovação lhe agradava mais. Não imaginava como, mas teria de contribuir com aquele lugar de algum jeito.
Montou em seu castrado e deu uma piscadela para a irmã. As pessoas se aglomeraram a sua volta.
— Aprendeu com Ganbaatar a fazer discurso ou com Batbayar?
— Um pouco dos dois. — Segurou as rédeas do castrado. — Mas Batbayar gosta de mentir.
— E você também — comentou Muna, mas Tamujin já estava a sua frente para que pudesse ouvir.
Chatai prosseguiu a galope pela trilha de terra batida, com árvores densas e altas os cobrindo. Alguns aldeões corajosos os seguiam a pé fascinados por terem seus monarcas tão perto e tão distante ao mesmo tempo.
