Não há vermelho na sua paleta

Capítulo 15: O véu se rasga

Todos eles acordam no meio da tarde, tontos e desnorteados, e os ninkens são dispensados.

Há uma sensação de fragilidade insconsciente nas arestas, de algo recém recuperado, a cola ainda fresca nos cacos quebrados e reunidos.

Em silêncio, após um banho, os meninos se concentram em desenhar os papéis bomba enquanto Kakashi encapa os fios elétricos expostos da iluminação e os esconde nos canos embutidos no teto.

Há uma dedicação paternal do sensei em fazer aqueles cômodos estranhos parecerem um lugar minimamente habitável. Kakashi faz um bom trabalho da maneira que pode, carregando a cada momento a sensação de que ele finalmente acertou o primeiro passo.

Os meninos – seus meninos – são o que lhe resta de precioso, e por enquanto ele teria que se virar com isso.

Kakashi fica com eles até que escurece. Ele parte deixando a promessa de que voltará no dia seguinte. Uma jonin de óculos e sardas o cumprimenta na porta, guardando a casa ao lado de fora e assumindo o posto de vigia. Ela mantém a postura e profissionalismo, não olhando uma segunda vez para os garotos antes de fechar a porta.

Eles, finalmente sozinhos, se entreolham antes de desviarem. Sem Kakashi como um mediador, o véu que os separa retorna como uma fina película intransponível.

As mãos de Naruto e Sasuke já estão cansadas, os dedos doloridos e os olhos embaçando de esforço. Ainda faltam algumas dezenas de papéis-bomba em branco sobre a mesa, então eles apenas continuam, um após o outro.

De cabeça baixa e se concentrando e não borrar nenhuma parte, Naruto sente o sentimento pegajoso de Kurama retornar, o ronco de sua respiração invadir sua mente e as grades de sua prisão tremerem com seu despertar.

O efeito do remédio passou.

O que você está fazendo, jinchuruki?, a voz da kyuubi o atinge, levemente amarga, escorregando para seus ouvidos como lodo.

Naruto, apesar disso, não consegue esconder sua surpresa quando não há nenhum insulto em particular, nenhuma tentativa de fazê-lo romper o selo, nenhuma promessa psicótica e injetada de ódio. É quase estranho demais que ela não esteja aos gritos. Ela sempre começa gritando.

Naruto hesita, o impulso de ir na cozinha e pegar seu remédio se ativa como um sinal de alerta.

O que você acha?, Naruto devolve, mantendo uma distância segura das grades, onde as garras da raposa não possam alcançá-lo. O olho esquerdo da besta o encara, as veias na esclera pintam o branco de vermelho. O pelo de sua nuca estava eriçado e é apenas por isso que o Uzumaki sabe que a raposa está irritada.

Alguma coisa insignificante, bufou, esforçando-se na tentativa de conversa. A primeira. A água ondulou com seu sopro, formando uma onda que chegou a canela de Naruto. Ela parece prestes a explodir, e ele sabe que seu teatro não vai durar.

Kakashi-sensei se importa comigo, Naruto a ignorou, no entanto. Você disse que não. Eu quase acreditei em você.

Uma manobra para controlá-lo como o escravo que você é, Kurama arreganha os dentes e estala a mandíbula em uma espécie de ameaça, eles brilham como marfim. Nunca confie em humanos ou não viverá muito.

Naruto rola os olhos, desprezando seu conselho. Ele está muito ciente de que é perigoso provocar a besta. Ainda assim, ele não resiste ao ir um passo em sua direção. Que a kyuubi se foda.

Se eu sou um escravo, o que isso faz de você?, o Uzumaki anda até o outro lado da sala, encostando-se nas paredes frias. O que isso faz de você, ein, sua raposa estúpida?

O chakra dela vibra, terrível. É nojento e nauseante.

Jinchuuriki!, a raposa brade, as garras aparecendo e arranhando o piso, destruindo tudo que toca. Naruto sabe que estará tudo restaurado na manhã seguinte. Eu vou comê-lo, um dia, parte a parte. E eu vou gostar de te enviar para o mesmo lugar que mandei o Quarto Hokage. Você não tem ideia de quem sou.

Eu sei que essa é a verdadeira você, Naruto fecha o rosto em mágoa. Não importa o que você tente, você não vai me mudar.

Você já mudou, moleque.

Em um movimento súbito, Naruto apenas se levanta da mesa, deixando os papéis-bomba por um momento, ignorando o olhar perscrutador de Sasuke. Ele vai até a cozinha, abrindo o pote de medicamentos quase com raiva.

Jinchuuriki, Kurama rosna em um aviso, mostrando suas presas e antecipando o entorpecimento em seu cativeiro a cada vez que o garoto consumia aquelas drogas.

Meu nome é Naruto, filha da puta, e engole o comprimido, fechando os olhos.

Quando ele retorna, Sasuke está lhe encarando. Ele parou de escrever nos papéis e seu pincel está suspenso no ar.

— Diga alguma coisa para ele — Sakura diz em seus ouvidos, preocupada e alerta.

Sasuke só quer se encolher e se esconder na privacidade do quarto. Ele se retém ali porque, provavelmente, Sakura não ficaria satisfeita se ele decidisse abandonar Naruto sozinho, não depois de tudo que ela presenciou e da evidente palidez em seu rosto agora. Uma parte dele, no fim das contas, também quer fazer algo além de ser um mero observador.

— Você está bem? — Sasuke pergunta.

Naruto ergue os olhos, ele quase parece surpreso.

— É a raposa. Ela fala demais.

Raposa? — Sakura pergunta.

Sasuke bate os dedos sobre a mesa, em sequência. [Eu te explico depois.] E para Naruto, ele diz, ao mesmo tempo:

— Eu sempre achei que ela fosse uma besta enlouquecida, sem inteligência. Uma massa de destruição, como nas histórias — Sua voz era um pouco mais que um sussurro. Eram histórias que ele ouviu de Itachi. Sasuke imediatamente suprimiu sua voz e as memórias de seu rosto. Não há cascas de maçã desta vez.

— Ela é astuta e traiçoeira. — Naruto não conseguiu esconder sua tristeza: — Quando eu estou com ela, tudo que há é ódio, e tanto chakra que a sala parece cheia. É um poder... sem fim.

Sasuke baixa os olhos, riscando no papel.

— Talvez seja injusto chamá-la de besta se ela parece tão humana.

Esse pensamento recai sobre Naruto por longos minutos. Se agarra a ele mesmo quando eles terminam os papéis e não há mais nada a ser feito. O Uzumaki remexe os dedos. Há uma bolha de um calo se formando na curva de seu indicador e Naruto a esfrega sem perceber.

Quando ele vê Sasuke afastar a cadeira para se levantar, o Uzumaki puxa assunto, um pico de ansiedade atingindo-o:

— Você parece melhor. — Naruto arrisca, mesmo que as olheiras ainda estivessem ali e a palidez não o tivesse abandonado completamente, é verdade.

Sakura, vindo de algum lugar atrás dele, concorda: — Talvez seja porque vocês dormiram profundamente, por bastante tempo.

As bochechas de Naruto estão um pouco mais coradas, seus lábios rachados parecem mais úmidos e, mesmo que seus olhos azuis ainda tenham um frio brilho acinzentado, há uma chama neles que não pôde ser completamente apagada pelas palavras de Kurama.

— Você também — o Uchiha devolve, embora a única coisa que ele absorva e realmente preste atenção agora seja na voz de Sakura, o resto é nebuloso e estranho quando, terminada sua tarefa, ele sente que precisa ficar sozinho com ela para lhe dar as explicações que lhe deve.

Naruto percebe, é claro, seu distanciamento. O menino sente seu coração se apertar quando isso significa que ficará sozinho. Mesmo que seja Sasuke, o Uzumaki espera que ele fique. A ideia de voltar para seu quarto, sozinho, o aterroriza. As paredes parecem se fechar ao seu redor, tudo o sufoca, e mesmo que não haja a voz da kyuubi graças aos remédios, seus próprios pensamentos fazem bem o trabalho de carrasco.

Havia sido suportável com Kakashi ali. Ele quase se sentiu parte de algo de novo.

— Será que você — Naruto engole em seco, em retrospectiva e hesitação. Ele recomeça, humildemente: — Será que você me ensinaria a cozinhar?

Sasuke separa os lábios, que parecem colados quando pergunta, numa sugestão implícita:

— Você quer aprender isso comigo?

Por quê?

Ele nunca pensou que Naruto ia querer algo dele. Indo mais longe, Sasuke nunca pensou que pudesse ser necessário. As trocas que eles já tiveram sempre foram no calor da batalha e em situações de vida ou morte, em momentos em que o impulso poderia ser culpado e sua vulnerabilidade ficaria esquecida na confusão.

Eles nunca abertamente declararam que precisavam de algo um do outro sob qualquer aspecto. E Sasuke sente uma pedra atingi-lo junto com a percepção de que havia uma maturidade inerente à Naruto, que independe de qualquer atitude tola que ele possa ter. Ele nunca tinha percebido isso antes;

Aquele garoto que um dia ele chamou de covarde não tinha medo de ceder, de ser e perdoar.

— Não diga ao Kakashi-sensei …mas você cozinha melhor. — Sasuke vê o canto da boca do Uzumaki subir em um meio sorriso tímido, vindo brevemente, como se ele ainda precisasse ensaiar algo que sempre lhe foi tão fácil.

O Uchiha junta os papéis bombas e os organiza em cinco pilhas distintas, sem uma resposta para dar imediatamente.

— É uma boa ideia, Sasuke-kun. — Sakura diz.

— Eu não conheço muitos pratos — Sasuke cautelosamente interpõe, para ela e para Naruto.

— Eu posso te ensinar. — Há um timbre empolgado que o Uchiha não ouvia há muito tempo, desde o exame chunin, para ser honesto, quando eles ainda eram tão inocentes e ignorantes.

— Eu não preciso de muita coisa, só o básico — Naruto acrescenta rapidamente. — Eu só não quero ser um fardo. Quer dizer, eu sei fazer rámens instantâneos, mas eles não vão nos deixar sair para comprar e o sensei só trouxe esse monte de vegetais e carnes e… eu não saberia o que fazer com isso. Mas se isso for difícil, eu posso pedir ao Kakas–

Sasuke o interrompeu, no entanto.

Mesmo que seu laço com Naruto pareça mais tênue e frágil do que nunca, Sasuke se sente incapaz de dizer não a ele, não quando o olha e vê sua própria culpa projetada.

— Tudo bem.

Ele sente o vínculo com Sakura se encher e afogá-lo com uma persistente satisfação, que atinge seu núcleo e o esmaga imerecidamente.


O relógio marca dez da noite.

Sasuke dá explicações simples a Naruto quanto à comida. Temperos, tipo de cozimento, a maneira correta de grelhar o salmão. Sakura participa em seus ouvidos, ela dicas que facilitam seu trabalho e conhece uma combinação melhor dos ingredientes, dizendo qual delas seria mais nutritiva e saborosa.

Sasuke gostaria de saber como ela sabia de cor essas curiosidades que ninguém realmente prestava atenção.

— Fica mais saboroso com pimenta sancho — ela acrescenta quando Sasuke mexe um molho que vão usar no dia seguinte. — Tenho certeza que Kakashi-sensei usou no almoço, então tem nos armários.

— Não vai ficar apimentado? — ele pergunta, esquecendo-se por um segundo de onde estava. A familiaridade da cena apenas aquece seu coração, brevemente.

— Não, Sasuke-kun, apenas vai trazer calor ao prato.

Naruto, picando cebolinhas, volta-se para o Uchiha:

— O que disse?

— Nada — Sasuke diz e acrescenta a pimenta até que Sakura indique que já está bom. Ele oferece ao Uzumaki. — Depois prove isso.

— Bom demais — Naruto prova mais uma colher, só para ter certeza.

O nome de Sakura, guardado em suas bocas, não foi pronunciado. Eles não trocam palavras sobre isso, e Naruto lhe entrega as cebolinhas picadas, hesitando antes de se afastar para a bancada.

De costas e muito baixinho, ele pergunta:

— Eu achei que o Kakashi-sensei desprezava a gente.

Sasuke verifica o ponto do arroz, enquanto pensa. Ele tinha absoluta certeza que este era um fato adquirido e imutável. Certeza absoluta, até hoje.

— Ele deve ter, no começo.

— É — Naruto suspira. — Será que Iruka-sensei e Jiraiya me odeiam?

— Não sei sobre o Iruka — Sasuke diz. — Mas Jiraiya ainda quer treinar você.

— Eu não sei o que pensar sobre isso. Costumava ser divertido estar com ele, um pouco irritante, mas era bom. Agora… — Naruto esfregou os olhos, a cebola branca que ele picava começando a irritar e formar lágrimas nos cantos. — Isso deve arder assim?

— Diga a ele para molhá-la, vai aliviar.

— Você tem que ir molhando.

Naruto obedeceu, franzindo o nariz conforme jogava água nas mãos e na cebola, esperando por alívio que veio aos poucos, seus olhos lacrimejando e ardendo.

No fim, ele fez um bom trabalho, reduzindo as camadas a uma pequena massa triturada.

O Uzumaki olhou para o brasão nas costas de Sasuke e para a seriedade persistente em seu rosto.

— Você não tem raiva de mim, Sasuke?

O Uchiha ergueu o rosto, sem se virar para ele. Ele conseguia sentir a curiosidade e apreensão de Sakura. Não havia muito o que dizer além da verdade. Com certeza, havia muito ódio dentro de Sasuke, mas ele corria apenas uma direção.

— Não.

— Por quê?

— Eu me pergunto o mesmo sobre você.

— Eu achei que eu deveria, no começo. Mas não era isso que eu sentia no fim do dia. Mas eu estava um pouco rancoroso, talvez. — Naruto admite. Os meninos não se olham. — Eu achei que eu te entendia, porque você não tinha ninguém, como eu. Mas… é diferente sentir falta do que você nunca teve e perder algo que já era seu. É... simplesmente diferente.

Sasuke apertou os olhos, apoiando-se na pia. O selo, que até então parecia adormecido, queima a simples ideia de pensar em seus familiares e em Sakura. Mas mais profundamente e muito mais afiado vem a realização de que aconteceu uma ruptura.

Ele foi compreendido.

O Uchiha permaneceu em silêncio, seus pés descalços criam raízes no carvalho vermelho do chão, porque ele mal se mexe. Sakura também não disse sequer uma palavra, mas ele ainda pode sentir aquela ternura e todo o amor que ela tem por eles quase transbordar e agitar o vínculo.

Sasuke não entende como ela pode tão irrestritamente se sentir assim depois de tudo que ele fez.

O ódio consome muita energia de uma pessoa como eu. Ele se lembra das palavras dela. Se lembra de como ela é cortês mesmo em dizer que não pode dá-los seu perdão e, ainda assim, amá-los mesmo que ela os tenha visto como realmente são: todas as suas fraquezas, suas partes feias, o que é podre e indesejável.

Eles não amavam a si mesmos, mas Sakura nem sequer parecia se importar.

A comida desce mais facilmente durante o jantar. Sakura sussurra que está ansiosa para saber o que eles acharam.

Na segunda prova, Naruto funga, lágrimas caindo dentro da tigela de arroz enquanto ele enche a boca com mais e mais, sem terminar de mastigar e engolir o resto.

— É a raposa? — Sasuke pergunta, mas Naruto sacode a cabeça, engolindo e secando o rosto.

— Esse tempero… parece o dela.

O Uzumaki sorri, timidamente, quando ele se lembra dos bolinhos de arroz de Sakura.

E ele quase quer rir ao lembrar do rosto frustrado quando ele comeu todos eles em segundos, ciumento e infantil quando ela disse que os do canto são para o Sasuke-kun. Os malditos estavam tão obviamente mais recheados que sua raiva impulsiva simplesmente foi mais forte que ele.

Naruto esperou por um soco ou ser xingado, mas Sakura apenas recolheu os potinhos vazios em silêncio. Sasuke parecia obviamente mais chateado do que ele gostaria de admitir por não ter comido nada. O treinamento foi um caos, o time sem sintonia, e Kakashi os dispensou mais cedo.

No dia seguinte, para sua total surpresa, Sakura voltou com mais bolinhos e o rosto meio corado, dizendo que tinha colocado alguns extras, porque ele só podia estar com muita fome para ter feito aquilo ontem. Macarrão industrializado não sustenta ninguém, então te perdoo dessa vez, não coma os do Sasuke-kun e do Kakashi-sensei. Eu fiz para todos.

Sasuke entende quando o sabor escorrega na língua. É quase como se Sakura tivesse preparado com as próprias mãos.

Ele imita Naruto quase imediatamente, misturando arroz e peixe, comendo familiaridade e dias que não voltam.

— Você tem razão — Sasuke diz, de boca cheia, suavemente. Os dedos de Sakura apertam seu ombro e ele sabe que ela está emocionada, sem conseguir dizer mais nada.

— Caramba, — Naruto funga, enxugando a umidade nas mangas do casaco — caramba.

Naquela noite, Naruto e Sasuke comem do donburi especial de Haruno Sakura.


[...]

LyrahVL: Oláaa! Ah, fiquei tão feliz quanto você por ter me encontrado! Realmente, não é uma temática fácil de achar. Um dos motivos que eu inventei de escrever essa fanfic foi justo por isso, porque não encontrava e queria muito explorar esse universo. Muito obrigada e espero que goste da leitura.