Aquele assunto estava enlouquecendo Koenma. Depois da visita ao seu pai, ele buscava com afinco compreender o que seu patriarca tentou lhe dizer naquela conversa enigmática.
Primeiro, buscava descobrir quem era Roan. Aquele nome que ele nunca ouviu antes, mas que com certeza não foi dito por acaso. Seja lá quem fosse, Enma queria que o filho o encontrasse. Porém, até o momento o líder espiritual não tinha obtido sucesso algum. No Reikai ninguém sabia de nada. Sequer tinham ouvido falar dessa pessoa. Mas, se Roan não era alguém do Mundo Espiritual, de onde seu pai o conhecia? Onde o encontrava? Era certo que Koenma não estava a par de todas as amizades do pai, mas mesmo as pessoas mais próximas a ele se encontravam na mesma situação. Todos os seus colegas se mostravam indiferentes diante do nome citado, como se não significasse nada. Seria uma identidade falsa?
Koenma pesquisou então em todas as listas do Reikai. Seja lá quem fosse, Roan deveria estar registrado em alguma delas. Todas as pessoas possuíam uma ficha detalhada com o seu nascimento, características físicas, comportamentais e principais conquistas. Porém, ele nada encontrou além de inúmeras fichas de humanos comuns, sem algo oferecer ao Mundo Espiritual. Somente um amontoado de informações infrutíferas.
Ele estava exausto de tanto procurar. Então, passou a concentrar as suas energias na outra questão levantada por seu pai: o destino dos komorebi traçado pelo nascimento de Kiara. Pelo que Enma havia dito, quando ela nasceu, condenou todo o seu povo sem saber. Do que seu pai sabia que ele não sabia? O que ele não podia lhe falar? Pelo tom que usou, parecia até que alguém havia ordenado que ele ficasse calado, mantendo segredo. Teria sido uma ameaça? Não, não poderia. Ninguém seria capaz de ameaça-lo. Enma era supremo naquele mundo, Koenma sabia disso mais do que ninguém. Então ele teria feito favor a alguém? Koenma também descartou a hipótese. Seu pai não era muito de fazer favores.
Naquela semana, Koenma verificou o arquivo de nascimento de Kiara diversas vezes. Ele leu e releu cada parágrafo, procurando qualquer anormalidade ou divergência que lhe desse uma pista de que algo estava errado. Mas não tinha nada de estranho ali. Então, ele procurou por acontecimentos marcantes ao redor do mundo na mesma data e ano em que ela veio a vida, mas, mais uma vez, não encontrou nada. Por desencargo de consciência, verificou o arquivo de previsões do Reikai, mesmo sabendo que seria inútil. O método usado por eles não possuía grande acurácia e permitia que o Reikai apenas conseguisse prever pequenos eventos relacionados à vida de uma pessoa. No caso de Kiara, era uma página em branco.
Botan estava realmente preocupada. Há dias que Koenma estava recluso em sua sala, ignorando a todos ao seu redor. Suas funções estavam sendo delegadas para terceiros, uma vez que ele mesmo já não dava tanta importância a elas. A guia espiritual estava nervosa com os comentários que ouvia no corredor do Reikai e ainda mais nervosa com as possíveis consequências de tudo aquilo. Mas jamais pensou em contestar Koenma. Ela sabia bem que havia algum motivo forte por trás de seu comportamento misterioso e retraído daqueles últimos dias. Então, ao invés de contrariá-lo, preferiu ajudá-lo a encontrar o que quer que estivesse procurando naquele amontoado de arquivos que ele verificava todos os dias.
Sempre que podia, o ajudava a buscar incongruências nos documentos referentes à Kiara, mesmo sabendo que seria inútil. O Reikai era muito sistemático em suas funções e raramente cometia erros. O que estava escrito nos arquivos era inquestionável, quase uma verdade absoluta. E se não havia nada de errado em nenhum deles, de nada adiantaria continuar procurando.
"Mas se Enma estivesse tentando esconder alguma coisa, ele teria que deixar esses papéis em ordem, pra manter as aparências. Qualquer um que fosse conferir, veria que esses arquivos estariam fora de suspeita", ela pensou, fechando o caderno que trazia consigo.
— Senhor Koenma, e se estivermos procurando no lugar errado?
Sentado de frente pra ela, ele apenas elevou o olhar, mantendo aberta uma enciclopédia do Reikai sobre sua mesa bagunçada.
— Como assim, Botan?
— Acho que nunca vamos encontrar nada nessas pastas. Se o senhor Enma quis omitir alguma informação, ele não deixaria assim à vista, não é?
— Bom, é verdade. Mas é a única opção que temos. Onde mais poderíamos procurar por provas de que existe algo de errado com o nascimento de Kiara?
— Talvez na seção de arquivos cancelados?
Koenma se levantou, incrédulo consigo mesmo por ter se esquecido completamente daquela seção do Reikai. Geralmente, quando havia alguma coisa errada com um dos documentos do Mundo Espiritual, ele era cancelado mediante aprovação prévia do líder espiritual e substituído pelo arquivo correto em seguida. Por segurança, os documentos eram preservados em uma seção restrita e separada das demais, caso uma nova revisão fosse necessária em algum caso específico.
— Poderia ser…— ele ponderou — Mas quando Kiara nasceu eu mesmo já estava assumindo o lugar do meu pai. Não exercia todas as suas funções, mas já lidava com os arquivos cancelados. Se me lembro bem, todos os documentos que assinei eram triviais.
— É, eu sei, m-mas…— ela gaguejou, um pouco insegura —…p-peço perdão pelo atrevimento, senhor Koenma, mas o senhor Enma sabia esconder o que lhe convinha. Ele mesmo poderia ter interceptado algum arquivo antes de passar por você. Ai, eu não deveria dizer uma coisa dessas…m-me desculpe…mas é que eu não me esqueço de tudo o que descobrimos…
Koenma desligou-se do mundo, refletindo sobre o que tinha acabado de escutar, enquanto Botan continuava a recriminar o seu próprio comportamento.
Mas ela estava certa. Enma era sujo e imoral. Um verdadeiro criminoso. Se quisesse, daria um jeito de esconder de todos o mais obscuros dos segredos, até mesmo de seu próprio filho.
— Como sou idiota! Não sei porque insisto em usar a lógica quando se trata do meu pai, sendo que ele mesmo já mostrou o seu verdadeiro caráter. Por que ainda insisto em dar um voto de confiança a ele? Ainda bem que tenho você aqui pra me trazer de volta à realidade, Botan. Vamos logo conferir a seção de cancelamentos.
Os dois deixaram a sala de Koenma e se dirigiram até o acervo de documentos descartados. Ali, dentre prateleiras empoeiradas daquele lugar esquecido, encontraram uma pasta referente aos komorebi. Para a surpresa dos dois, de fato existia um arquivo com o nome de Kiara, redigido no dia de seu nascimento. O conteúdo, porém, estava ilegível.
Por cima do texto feito pelo Reikai, havia mais de um carimbo escrito "CANCELADO" e, para cada um deles, existia uma assinatura de Enma Dai-Oh, aprovando o cancelamento daquela página. Koenma achou ridículo. Um arquivo cancelado recebia apenas um carimbo, sem nem ao menos interferir na leitura do documento. Na verdade, era obrigação do Mundo Espiritual garantir que cada anotação permanecesse intacta, então aquele garrancho feito na página de Kiara havia sido proposital. Enma realmente queria esconder alguma coisa. Mas o quê?
Inutilmente, Koenma tentou decifrar o que o texto dizia, por meio das poucas letras que ainda estavam legíveis por baixo da tinta dos carimbos.
"Prob…te…nas…D…pre…ent…B…nat"
Por mais que tentasse, ele não conseguia contextualizar aquelas palavras cortadas, tornando impossível a compreensão do texto.
— Isso é inútil, Botan. Não dá pra entender o que tá escrito. O meu pai fez com o quis nessa maldita página! Obviamente ninguém o contestou. Quem seria tão idiota?
— Senhor Koenma, mas e isso aqui?
Koenma percebeu então que Botan lia um outro arquivo. De cenho franzido, ela transparecia o quão confusa estava e, quando passou o documento para Koenma, ele logo compreendeu o porquê. O arquivo constava o nome "Lucy Mikami", mãe de Kiara. Também continha um carimbo de "cancelado", aprovado por seu pai, porém, sem ocultar a previsão que estava abaixo dele. A mensagem era clara: Em 15 de outubro, no ano de sua primeira gravidez, Lucy teria um parto complicado, cujo resultado seria o nascimento de um bebê natimorto. Em outras palavras, Kiara nasceria morta.
Suas mãos tremiam involuntariamente e ele quase deixou a pasta cair no chão. O líder espiritual novamente checou o arquivo ilegível de Kiara, deparando-se mais uma vez com a palavra "nat" cortada pela metade. "Natimorto". Agora aquilo fazia sentido.
— O que isso significa, senhor Koenma? — Botan perguntou ainda sem entender — O documento sugere mesmo o que estou pensando? Kiara nasceu sem vida? Não pode ser. Ela está viva.
— E-Eu não sei responder, Botan. Isso não é possível. Deve ter algum engano aqui.
Repassando os olhos pela folha do caderno, ele notou então uma assinatura diferente da de seu pai, parcialmente encoberta pelos carimbos.
— Reconhece essa assinatura, Botan?
— Está incompleta, mas parece ser a letra da Nanami. Tenho quase certeza que é!
Nanami era uma das mais antigas guias espirituais do Reikai, o que deixava as coisas ainda mais complicadas. O trabalho das guias espirituais era conduzir as almas dos humanos mortos até o Reikai, portanto, a presença delas indicava a morte. Ao buscarem uma nova alma, assinavam o relatório de óbito para ser entregue aos seus superiores. Se a assinatura de Nanami estava no documento de Kiara, não restavam dúvidas: a primogênita de Lucy Mikami nasceu morta.
— Essa conta não bate — Koenma fechou o arquivo — Se Kiara nasceu morta, quem é essa que nós conhecemos?! Preciso encontrar Nanami. Ela vai ter que me explicar agora mesmo o que está acontecendo!
Koenma saiu apressado dali, sem esperar Botan. Nervosa, a Guia Espiritual o seguiu e, tentando não chamar muita atenção quando o puxou pelo braço, o obrigou a parar em frente à porta de sua sala.
— Não vai encontrar Nanami, senhor Koenma!
— Por que não?
— Ela já não aparece aqui tem uns cinco dias. E ainda não conseguimos localizá-la. O senhor não ficou sabendo, porque estava muito ocupado. Eu preferi nem falar nada, pra não te atrapalhar. Eu não tinha ideia de que ela podia ter alguma relação com tudo isso…
— Você só pode estar de brincadeira, Botan! Ela desapareceu?!
— Sim.
— Justo agora? Que conveniente! Nesse caso, não me resta outra alternativa a não ser falar novamente com o meu pai. Dessa vez, vou ser mais firme. Vou esfregar esse documento na cara dele e ele vai ser obrigado a me contar tudo!
Koenma forçou a maçaneta da porta de sua sala, mas ela não se abriu. Ele a puxou novamente, fazendo mais força na segunda vez. Porém, novamente nada aconteceu. Estava trancada, até mesmo para ele.
— Que porcaria é essa, agora?! O que significa isso? — ele exclamou furioso, forçando a tranca.
— Senhor Koenma…— Botan o cutucou no ombro, chamando-o de maneira sútil.
O comandante do Reikai então se virou, dando de cara com Ootake, líder do esquadrão de defesa do Mundo Espiritual, e Gakuto, um dos responsáveis por fiscalizar o funcionamento de cada setor daquele mundo. Gakuto trazia consigo uma carta fechada, com o selo do Mundo Espiritual. Koenma engoliu em seco, pois no fundo já sabia o que aquilo significava. Discretamente ele tomou cuidado para não deixar em evidência a ficha cancelada de Kiara que trazia consigo, passando-a para Botan pelas costas.
— A decisão foi tomada, Koenma — Gakuto lhe entregou a carta, esperando pacientemente que ele a abrisse — Todos nós concordamos em assembleia que você não está apto para comandar o Reikai no momento. Essa é a sua notificação de afastamento temporário. Você deve deixar o Mundo Espiritual agora mesmo.
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KURAMA POV
Quando a batalha terminou, os nossos descuidos ficaram evidentes. Havia muitas camadas no ataque que precisariam ser cuidadosamente estudadas para que não repetíssemos os mesmos erros. Tivemos perdas. Muitas. Boa parte do nosso exército não estava preparada para lidar com o inimigo, fosse por falta de experiência ou por falta de força. Muitos dos que não morreram, ficaram gravemente feridos. Ao menos Gandara permanecia intacta e, Chiharu, em segurança. Não foi fácil trazê-la para cá, mas Shura e eu evitamos os danos ao tanque que a mantinha em estado de recuperação.
Na ala médica do centro hospitalar de Gandara, os corpos enfileirados dos nossos aliados derrotados agora estavam cobertos para preservar as suas privacidades após a morte. Os que continuavam vivos, permaneciam em tratamento. Tentei ajudar como pude, com fitoterápicos potentes do Makai, e também cuidei dos meus próprios ferimentos, tentando amenizar a gravidade da situação.
— Você deveria descansar — enquanto preparava uma solução cicatrizante, Yomi entrou no cômodo, dirigindo-se a mim — Não precisa agir como se não estivesse ferido.
— Estou melhor do que a maioria aqui.
— O que não significa que está bem. Precisa repousar.
— Agradeço a preocupação, mas não tenho tempo pra isso, Yomi. Você sabe tanto quanto eu da urgência em pensarmos como agir daqui pra frente. Não é seguro manter Kiara aqui, mas Chiharu não tem opção. Pelo menos enquanto Mukuro não reerguer a fortaleza móvel, precisaremos contar só com a tecnologia de Gandara.
— Nossa tecnologia é mais do que suficiente pra recuperação daquela menina. Quanto à garota humana, receio que também não encontre lugar melhor do que aqui para mantê-la em segurança.
— Você sabe que não é assim tão simples. Com os reinos de Mukuro e de Raizen invadidos, é óbvio pra qualquer um que ela estará aqui em Gandara. Eles vão continuar atacando até que consigam colocar as mãos nela. Por quanto tempo mais o seu país vai aguentar? Não conhecemos todos os truques do inimigo. Não conhecemos nada sobre ele. Por mais força que tenhamos, uma hora Gandara também vai sucumbir.
— Mas se ela não ficar aqui, vai para onde? O mundo humano é ainda menos seguro, Kurama. Youkais conseguem invadi-lo livremente. A não ser que conheça um lugar secreto e indetectável para mantê-la escondida.
— Talvez tenha um lugar…— respondi, tentando não revelar muito o que estava pensando naquele momento.
— Talvez?
— Preciso investigar melhor a possibilidade.
— Suponho que não queira revelar a localização pra ninguém. Isso é a sua cara.
— Não é que não confie em você, mas não seria conveniente. Quanto menos gente souber, melhor. Temos um tipo de espião entre nós. Tem ideia de quem pode ser?
— Não. Mas tenho ideia de quem não pode ser. Confio em todos os membros de Gandara. Todos são fiéis a mim.
— Todos é muita gente. Alguém pode estar te enganando.
— Se tivesse, eu saberia. Monitoro as emoções de todos eles e também tenho um excelente sistema de vigilância. Melhor direcionar as suas suspeitas para outro lugar. O exército de Mukuro aumentou bastante nos últimos anos e alguns novatos me parecem bem insatisfeitos com as condições impostas por ela.
— Pode ser que esteja certo, mas de qualquer maneira melhor termos bastante cuidado com algumas informações. Logo Yusuke e Hiei devem retornar com Kuwabara, Kiara e Yukina, e aí vemos exatamente para onde levá-la. Temos que conversar todos juntos, de forma bem reservada.
— Concordo. Eles estão a caminho, pelo que me foi reportado. Entrarão no meu território por uma rota diferente, mais segura e pouco conhecida. Enquanto esperamos, queria que me esclarecesse um pouco mais sobre isso aqui.
Observei Yomi se aproximar de uma maca específica, onde um longo pano branco cobria o cadáver que estava ali. Ele arrastou o tecido para o lado, revelando o que queria me mostrar.
Apesar de desfigurado e despedaçado, reconheci de imediato o demônio sem consciência que atacava qualquer pessoa que cruzasse o seu caminho. O demônio que Shura disse ter matado com extrema facilidade no campo de batalha, enquanto Yusuke não conseguiu detê-lo naquela ilha quando o encontramos pela primeira vez. Aquilo não fazia sentido algum. O que eu estava deixando passar?
— Esse youkai é o causador da maior parte dos danos ao meu exército. Muitos dos meus soldados ficaram agonizando depois de terem entrado em contato com ele. Eles não estão respondendo a nenhum tratamento.
— É uma situação complicada. Esse demônio produz uma espécie de veneno que se espalha rapidamente pelo corpo do infectado. Já tínhamos visto os efeitos antes, mas ainda não conseguimos achar uma cura. Na ocasião somente Kiara conseguiu resolver o problema.
— É, lembro de terem comentado a respeito. Realmente curioso, não é?
— Temos que mantê-los vivos até que ela chegue para ajudá-los.
Yomi se virou de costas, andando em direção ao que parecia ser uma mesa com instrumentos cirúrgicos. O observei abrir uma gaveta de metal para retirar de lá uma seringa estéril. Ele abriu a embalagem, encaixando uma longa agulha de precisão no bico.
— O que vai fazer? — perguntei, enquanto ele terminava de ajustar perfeitamente o material, mesmo sendo incapaz de enxergar absolutamente nada.
Ele então se dirigiu aos restos do cadáver na maca e inseriu a agulha no espécime, puxando o êmbolo em seguida para aspirar o que parecia ser um líquido espesso e escuro de aparência coagulada.
— Vou estudar o veneno para entender como ele funciona. Não posso depender de uma humana para salvar o meu exército. Isso é muito perigoso, eu mesmo poderia ter sido contaminado. Além disso, entender as propriedades desse tipo de arma é algo muito benéfico. Posso tentar produzi-lo artificialmente e usá-lo também.
Ele disse "arma"? Sorri involuntariamente. Como não tinha previsto que aquilo aconteceria? Eu já devia saber que Yomi jamais desperdiçaria a chance de se beneficiar de um recurso como aquele.
— Ou seja, você vai fortalecer o seu exército usando os artifícios fornecidos pelos seus oponentes.
— Não é justo que somente eles tenham esse trunfo, não acha?
Não tive chance de responder. Pelas caixas de som instaladas em todos os cômodos de Gandara, um alarme de invasão ressoou em volume máximo. Yomi reagiu antes de mim, guardando a seringa em segurança para então deixar o hospital e seguir apressado em direção ao centro de comando. Eu o segui e corremos até chegarmos a sala de segurança, onde as câmeras que ainda estavam intactas após a batalha mostravam imagens fornecidas dos territórios vizinhos de Gandara.
Em frente ao país se encontrava um batalhão. Enfileirados, os homens e mulheres presentes usavam o mesmo uniforme azul e portavam armas de fogo.
— Quem são eles? — Yomi questionou — Posso sentir que não são iguais aos youkais que estavam aqui antes. Não parecem ter vindo em busca de problemas, mas também não possuem uma presença muito afável.
O batalhão seguiu em frente, adentrando o território pertencente a Gandara. No meio do grupo, com uma postura um tanto oprimida, estava Koenma. Sabia que tinha algo errado e que aquela visita anormal não podia significar coisa boa, mas, se Koenma estava junto, também não podia significar um conflito. Podia?
— Senhor, eles estão se aproximando. Devo acionar os canhões de emergência? — o subordinado de Yomi que monitorava as câmeras perguntou com as mãos em cima do teclado do computador que utilizava, esperando a ordem para seguir em frente.
— Espera! — protestei antes que Yomi desse o comando — Eles são do Reikai. Koenma está com eles.
Yomi hesitou.
— Mas o que membros do Reikai vieram fazer aqui?
— Não tenho ideia, pra ser sincero.
— Você confia neles ou devemos nos preocupar com essa visita?
Ponderei, ainda os encarando pela imagem transmitida pela câmera de segurança. A verdade é que não tinha motivos para confiar, principalmente levando em conta as marcas do meu passado. Afinal, o homem que anos atrás havia sido designado para me matar estava ali. Foi por causa dele que tive que assumir uma forma humana e mudar toda a minha vida. Tirando Koenma, nenhum deles era confiável.
— Melhor deixar que entrem. Vamos ver o que querem.
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KURAMA POF
KIARA POV
Queria poder dizer que ao chegar em Gandara as coisas começaram a melhorar, mas não foi bem isso o que aconteceu. Na verdade, a situação desandou ainda mais depois que coloquei os pés naquele lugar. Apesar de tudo que já tínhamos enfrentado, logo percebi que estava bem longe de ter um minuto de paz. Ao menos, Shura foi o primeiro a me receber, trazendo a melhor notícia que podia me dar.
— Consegui! — ele disse com orgulho — Eu trouxe ela pra cá, aquela menina no tanque.
— É sério? — perguntei com tanta emoção que senti meus olhos se encherem de lágrimas. Minha única esperança de encontrar Kazuki não havia sido perdida — Chiharu ainda está viva?
— Claro. Pode ficar despreocupada. Quando ela acordar, farei com que mostre onde o seu irmão está. Isso vai ser moleza pra mim.
Naquela hora, eu sorri tão espontaneamente que até estranhei a sensação. Acho que fazia tempo que não sorria. Não sei bem o que deu em mim, mas abracei com força aquele menino mimado que tinha acabado de fazer meu dia e o agradeci. Ele pareceu incomodado quando o soltei, meio sem graça e envergonhado.
"Não precisa agradecer, sua idiota", foi o que ele respondeu. Eu não liguei pro insulto, estava feliz demais pra me importar. Mas a felicidade durou pouco tempo. Evaporou como água em instantes quando Yomi apareceu acompanhado de um grupo de gente estranha que se intitulava "O esquadrão de defesa do Mundo Espiritual". Ele nos levou para um cômodo reservado com aquele que parecia o chefe do esquadrão. O homem era alto, tinha uma pose de rei e um olhar duro e incisivo. Seus companheiros ficaram do lado de fora, à contragosto.
Dentro da sala também estavam Koenma e Kurama, ambos com cara de poucos amigos. Agiam como se algo ruim estivesse prestes a acontecer. Então, os quatro — Hiei, Kurama, Yusuke e Kuwabara — se entreolharam, como se pudessem conversar em silêncio. Analisando a expressão que faziam, não me restavam dúvidas:
Com certeza algo de ruim estava prestes a acontecer.
— Enfim nos conhecemos — o líder do esquadrão de defesa do Mundo Espiritual quebrou o gelo — Você deve ser Kiara. Estava ansioso para encontrá-la. Eu me chamo Ootake.
Com um sorriso forçado, ele deu um passo em minha direção e automaticamente recuei.
— Dispensamos apresentações — Yusuke disse — Já sabemos quem você é. Se me lembro bem, você já tentou me matar.
— O que o esquadrão de defesa do Reikai está fazendo aqui, hein Koenma? — Kuwabara perguntou — O que isso significa?
— Koenma não atende mais como líder do Reikai — foi Ootake quem respondeu. O sorriso falso de antes já tinha sumido de seu rosto — Se ele está aqui foi porque teimou em nos seguir. Estou assumindo o posto de líder, enquanto a situação não é normalizada.
— Isso é verdade? — Kazuma questionou sem acreditar — Não é possível! O que aconteceu?!
— Fique calmo, Kuwabara. É apenas um afastamento provisório do cargo. Devo voltar em breve.
Apesar de ter dito aquilo, Koenma não parecia ter confiança alguma nas próprias palavras. Ootake o relanceou com desdém e revirou os olhos.
— Vou direto ao ponto — ele disse — O Reikai determinou novamente o fechamento da barreira entre o Makai e o Ningenkai, devido aos ataques enfurecidos de youkais descontrolados no Mundos dos Humanos. Ataques esses que foram ignorados completamente por meses e que nada foi feito para resolvê-los.
Seus olhos novamente caíram sobre Koenma que, por algum motivo, parecia completamente vulnerável. Ele nem sequer tentou se defender da acusação. Já parecia ter admitido a culpa.
— Não pode fazer isso — eu respondi então — Tem humanos aqui no Makai. Não pode nos impedir de voltar pro nosso mundo.
— Acho que você não compreendeu. Eu estou aqui justamente pra levar vocês dois de volta pra lá antes que a barreira seja erguida. O lugar de vocês dois…— ele alternou o indicador entre mim e Kazuma —…não é aqui. Vocês são humanos e precisam voltar.
— Eles não podem ir com você — Yusuke interveio — Estão feridos demais. Não consegue ver? Acabaram de chegar de uma viagem longa e precisam de cuidados médicos.
— Yusuke está certo. Nos deixe cuidar deles primeiro — Kurama disse — Eles podem te acompanhar depois disso.
— Acham que sou assim tão idiota? — Ootake aumentou o tom em sua voz — Sei que só querem ganhar tempo, mas não vou permitir. Se o problema são ferimentos, fique tranquilo que isso o Mundo Espiritual pode solucionar num instante. Além disso… — ele me olhou da cabeça aos pés, me analisando sem pressa. Incomodada, me encolhi cruzando os braços — Essa aqui me parece estar perfeitamente bem.
Inspirei fundo, tentando me acalmar antes de respondê-lo.
— Sinto muito, mas eu não vou. Você deve estar mal informado, mas saiba que aqui no Makai também existe outro humano além de nós dois. Não saio daqui sem o meu irmão.
— Já estou ciente dessa situação. O Reikai não vai abandonar nenhuma pessoa no Makai. Já estamos nos mobilizando para encontrá-lo. Enquanto isso, levaremos vocês de volta. Desde já a lei deve ser cumprida. Nenhum humano deve permanecer no Makai e nenhum youkai deve permanecer no Mundo humano. Peço que cooperem.
— Vai fazer o que se a gente não cooperar? — Yusuke perguntou, desafiando.
— Não acho que convém a vocês entrar em outro conflito. Acabaram de sair de um com muitas perdas, pelo que posso ver. Nesse momento, todo o Reikai está à espreita e, se tentarem qualquer coisa contra qualquer um de nós, iniciarão uma nova guerra. Gandara parece ser o único abrigo que restou a vocês. Por mais que consigam sobreviver a um novo embate, esse lugar também será destruído.
Fiquei tensa naquela hora. A respiração de Yusuke era agitada e furiosa, e temi que ele fizesse alguma idiotice. Gandara não podia sofrer danos, pois seria o fim de Chiharu. Não tínhamos mais para onde levá-la. Pro meu alívio, Yomi soube conduzir a situação. Ele colocou a mão no ombro de Yusuke, como se pedisse calma.
— Me diga uma coisa — ele disse então — O que pretende fazer com as fendas dimensionais entre o Makai e o Ningenkai? Não importa se fechará a barreira entre os dois mundos. As distorções dimensionais existem aos montes. Acha que resolverá o problema somente selando a barreira principal?
— As fendas estão instáveis agora porque a barreira ainda não foi erguida. Com o tempo, pelas fendas só passarão youkais inofensivos. Sugiro que nenhum de vocês tente ir pro Mundo dos Humanos, pois serão presos. Nem mesmo vocês — ele indicou Yusuke e Kurama — Não importa que tenham vivido como humanos ou que tenham família por lá. Na verdade não passam de youkais.
— Seu merda…— Yusuke disse, alterando a postura ao se aproximar de Ootake.
Yomi o deteve, se colocando entre os dois e Ootake se virou pra mim e Kuwabara em seguida.
— Vamos?
Eu não respondi e também não me mexi. Não tinha certeza se devia obedecer. Quer dizer, eu sabia que seria o correto para evitar um novo problema, mas, ao mesmo tempo, não queria.
— Acredite em mim, Kiara — ele disse, ao perceber o meu impasse — Você vai querer vir comigo. Existe algo que preciso te contar. Sobre você. Algo que talvez te dê uma pista do porquê tem sido perseguida por esses youkais.
— Do que está falando, Ootake? — Koenma questionou incomodado — Contar o quê?
Algo na expressão de Koenma me deixou curiosa. Não que ele soubesse do que se tratava, mas era como se também quisesse me dizer alguma coisa.
— Contarei a ela quando sairmos daqui — ele respondeu.
— Pode falar agora. Não tenho nada pra esconder deles — respondi.
— Não será possível contar aqui, pois não basta lhe contar. Você não acreditaria nas minhas palavras. Preciso te mostrar.
Suspirei cansada. Àquela altura do campeonato eu já acreditava que aquilo não passava de um blefe para que eu aceitasse logo a proposta de ir embora dali. Olhei para Kuwabara e ele balançou a cabeça discretamente, indicando para prosseguirmos de uma vez.
E foi assim que cheguei aqui, numa base do Reikai localizada no Mundo dos Humanos. Um local que o Mundo Espiritual usava para resolver assuntos relacionados aos vivos. Escoltados pelo esquadrão de defesa, fomos encaminhamos para uma sala que mais parecia um escritório. Uma mesa retangular dividia uma cadeira de couro estofada de três outros assentos mais simples, ocupados por Kuwabara, Koenma — que insistiu em estar conosco e por algum motivo Ootake permitiu — e eu.
Ootake nos deixou esperando ali sozinhos por mais de uma hora, como se estivesse nos cansando de propósito. Quando enfim chegou, se sentou do lado oposto ao nosso, acomodado em seu trono como se fosse alguém realmente muito importante.
— Queria te fazer algumas perguntas — ele se dirigiu a mim — Tudo bem pra você?
— Sobre o quê? Tudo que eu tinha para dizer ao Reikai, eu já disse ao Koenma.
— Estou fazendo uma investigação mais aprofundada — ele me respondeu com um sorriso irônico no rosto e ao meu lado Koenma resmungou alguma coisa.
— Eu não tenho nada mais a acrescentar — dei de ombros — Qualquer coisa que pergunte, a resposta vai ser a mesma que dei a Koenma.
— Preciso que coopere comigo, Kiara. Só quero te ajudar.
— Quer mesmo? Então conta logo o porquê me trouxe pra cá. Eu só vim porque você disse que tinha algo pra me mostrar. Por que não mostra logo o que é? Por acaso estava mentindo?
Ele recostou na cadeira e desviou o olhar para longe.
— Não, não estava. Eu posso te mostrar, o problema é que acho que você não vai gostar.
— Conta logo o que é! Para com essa enrolação — Kuwabara exigiu, irritado — Estamos com pressa!
— Para ir aonde? — Ootake perguntou — Vocês estão proibidos de sair desse mundo. Além disso, você…— ele olhou diretamente para Kazuma —…está sob nossa custódia a partir de agora.
— Como é que é?!
— Estamos tentando erguer a barreira entre os dois mundos e fechar todas as passagens ilegais. Não podemos deixar a solta o homem capaz de destruir nossos planos.
— Que absurdo! — Koenma gritou, batendo a palma da mão na mesa — Pretende prender uma pessoa que não fez absolutamente nada?!
— Não vou prendê-lo. Só vou mantê-lo aqui até que possamos pensar numa forma de tornar a barreira resistente àquela espada dimensional.
— Isso é ridículo! — falei, desejando poder esbofetear aquele imbecil — Por isso nos trouxe aqui? Me usou como isca pra trazer o Kuwabara junto?!
— Claro que não. Até porque você também ficará sob nossa custódia. Sua vida está em perigo, então não deve sair ainda.
Me recusei a continuar ouvindo aquele absurdo e levantei da cadeira num pulo. Koenma e Kuwabara fizeram o mesmo.
— Vamos embora — Koenma falou — Esse homem enlouqueceu.
— Totalmente! Vamos dar no pé! Eu não aguento mais olhar pra cara desse sujeito — Kazuma respondeu.
Juntos, demos as costas para ele e fomos em direção a porta. Somente quando ouvi o som das rodas da cadeira sendo arrastadas no chão vindo por trás de nós, me virei novamente.
— Espere!
Ootake estava de pé, com o braço erguido em minha direção e empunhando uma espécie de revólver. Uma arma de fogo com o gatilho já acionado. O som do tiro foi alto e a fisgada em meu peito foi excruciante.
Na mesma hora, a minha visão virou um enorme borrão e aquela arma foi a última coisa que eu vi.
Após o disparo, Koenma ficou mudo. Não acreditava no que estava vendo. O tiro certeiro e inesperado o tinha pego completamente desprevenido. Quando um filete de sangue vermelho vivo tornou-se visível na camisa branca de Kiara, Kuwabara gritou e ela foi ao chão.
Koenma a acompanhou, caindo de joelhos para amparar a queda.
— Maldito! Eu vou te matar! — Kuwabara tentou avançar em direção a Ootake, porém dois seguranças entraram no cômodo e o agarram por trás para imobiliza-lo. Incapaz de conjurar a espada dimensional, um terceiro segurança se aproveitou do momento, o golpeando no tórax. Ao perder o fôlego, Kuwabara cuspiu coágulos de sangue no chão e os agentes do Mundo Espiritual o prensaram contra o piso, amarrando as suas mãos e pernas para impedir qualquer movimento.
Koenma segurava Kiara nos braços. A mancha vermelha em seu peito aumentava de tamanho e seus olhos se fecharam quando ela perdeu a consciência. As mãos dele tremiam ao tentar conter o sangue que extravasava da ferida, mas era inútil.
Kuwabara se contorcia no chão, obrigando os homens a utilizar a violência para mantê-lo em silêncio. A cada protesto, ele recebia um golpe e Koenma assistia a cena desesperado. Perdido como rato em um labirinto, estava dividido entre ajudar Kazuma ou a garota. Chacoalhou Kiara, chamando-a com batidas leves em seu rosto, mas ela já não reagia. Iniciou então uma massagem cardíaca, tentando remediar o inevitável. Em ritmo constante, ele tentava fazer com que o coração dela continuasse batendo, recusando-se a aceitar o que tinha acontecido bem diante de seus olhos.
Ainda assim, ele sabia que aquilo era inútil e que qualquer esforço seria desperdício de tempo, pois Kiara morreu no instante em que a bala atingiu o seu coração.
