Esclarecimento: Só reiterando que esta história não me pertence, ela é uma adaptação do livro de mesmo nome, de Merline Lovelace, que foi publicado na série de romances "Clássicos Históricos Especial", da editora Nova Cultural.


Capítulo 8

- O que houve, ateniense ?

Katniss usava os calcanhares para tentar diminuir a violência dos puxões. Seus cabelos escaparam dos cordões e ela bateu na mão dele, tentando se soltar. Como isso não adiantasse e Peeta continuasse a arrastá-la, gritou:

- Você é maluco ? Bebeu vinho demais ? Solte-me !

Os gritos fizeram os servos virem correndo das salas de baixo e se amontoar por cima do corrimão do segundo andar, onde ficaram assistindo a espantosa cena de boca aberta.

A senhora Cassandra saiu da cozinha a tempo de ver o filho conduzir a espartana para o segundo andar e se deter diante de uma das portas de madeira entalhada e pintada de vermelho.

- Peeta ! O que houve ? O que essa mulher fez ?

- Eu ? Não fiz nada ! - exclamou Katniss, furiosa por ser arrastada pela casa inteira - É esse cão vadio que você chama de filho ! Ele está louco, bêbado, ou...

A porta vermelha bateu, cortando a frase de Katniss e deixando os curiosos, engasgados de espanto, por fora dos demais acontecimentos. Peeta soltou-a e voltou-se para colocar a tranca na porta. Ela foi até o meio do quarto espaçoso, a longa túnica amarela enroscando-se nos calcanhares, com o perigo de fazê-la cair. Tratou de afastar os cabelos dos olhos e voltou-se para ele, enfurecida, mas o olhar do capitão a fez conter os impropérios que lhe queimavam a língua. Nunca, nas noites e dias que tinham passado juntos, ela vira uma expressão tão fria e irada nos olhos dele. Nesse momento percebeu o quanto se acostumara à alegre risada provocante e aos bonitos sorrisos dele. Esse homem de rosto fechado, sombrio, com os músculos contraídos, era um desconhecido e, quando ele começou a avançar em sua direção, ela recuou.

- Sim, é melhor recuar mesmo ! - o tom ameaçador fez um arrepio gelado percorrer a espinha de Katniss - Se eu a tocasse agora, iria bater em você.

- Pode tentar, ateniense - provocou ela, erguendo o queixo.

O desafio tornou gelado o já frio azul dos olhos dele. Quando Peeta avançou mais um passo, Katniss assumiu instintivamente a posição de luta.

Essa atitude teve o poder de fazê-lo parar. Respirando pesadamente, avaliou a mulher à sua frente. Os cabelos, com cintilações entre azul e negro ao brilho das chamas, desciam embaraçados pelas costas dela. A túnica escorregara por um ombro e encontrava-se emaranhada nas pernas esguias. Ela mal chegava aos ombros dele, e apesar da falta de estatura, o fogo da batalha flamejava nos grandes olhos cinza. Era uma figurinha ridícula na sua insignificância, mas dava a impressão de ser indomável.

A fúria de Peeta abrandou; ele respirou fundo e forçou-se a relaxar.

Desconfiada, Katniss endireitou o corpo também. Por um momento o silêncio reinou entre eles até que, impaciente como sempre, ela foi a primeira a falar:

- Não deve me ameaçar assim, ateniense, se deseja ter alguma paz em sua casa.

- E você não vai mais, nunca mais, assustar Valerie.

- A criança ? - os olhos de Katniss se arregalaram - Eu a assustei ? Como ?

- Não banque a tola ! Você sabia que aquela história de jogar bebês do penhasco a assustaria.

Ela balançou a cabeça, sinceramente confusa:

- Não pretendia que ela ouvisse, mas, de qualquer forma, não é mentira.

- Sei ! - escarneceu ele

- Eu juro ! Quando uma criança espartana nasce, é apresentada aos velhos. Se decidem que é sadia, ela permanece viva, é criada e bem-tratada. Se não, é jogada num precipício.


Peeta teve que se esforçar para não demonstrar a profunda repulsa que sentiu. Disse a si mesmo que os costumes de muitos outros povos baseavam-se na dura luta pela sobrevivência; que os espartanos sofriam, obrigados a viver num terreno árido, por isso precisavam de crianças fortes e sadias, que assegurassem a continuidade da tribo. E aquela mulher era um produto dessa cruel mas necessária cultura.

O raciocínio lógico já o ajudara a recuperar o controle quando Katniss deu vazão à ira de novo.

- Além disso, por que essa história a assustaria ? A perna fraca da menina é companheira de um espírito também fraco ?

Peeta segurou-a pelos braços e a sacudiu com força.

- Valerie tem apenas cinco anos de idade, mulher desnaturada ! Não deve escutar essas histórias violentas ! É assim que as mulheres espartanas criam seus filhos, com histórias de mortes e sacrifícios ?

De súbito, ele caiu em si e se conteve, as sobrancelhas franzidas, o rosto devastado por uma expressão de intenso sofrimento. As mãos enormes diminuíram a força com que a seguravam, mas não a soltaram.

- Você tem filhos ? - perguntou ele, depois de um momento - Sei que é viúva e que ia se casar de novo. Teve filhos ou filhas com seu primeiro marido ?

- Não é um pouco tarde para me perguntar isso ? - retrucou ela, em tom amargo - Você me tirou da minha casa, da minha família e das minhas terras, sem pensar no que me obrigava a deixar para trás. Agora é que, afinal, digna-se a pensar pela primeira vez na confusão que causou na minha vida ?

- Responda - ordenou ele, sacudindo-a de novo.

- Não lhe direi nada enquanto me tratar deste jeito !

Praguejando, ele a soltou e Katniss recuou, fitando-o com altivez.

- Não tenho filhos - murmurou, por fim - Para minha vergonha...

O nó de tensão no estômago de Peeta se desfez, enquanto ela prosseguia:

- ...apesar de não ser minha culpa. Meu marido tentou com várias escravas que já tinham tido um filho por ano, mas também não conseguiu fazer com que elas gerassem filhos. Tínhamos decidido que ele daria a outro guerreiro o uso de minha cama, para plantar sementes mais férteis em meu útero.

Os olhos de Peeta pareciam dois pires, tal seu espanto, e ela não suportou aquele olhar. Virou-lhe as costas antes de prosseguir:

- Mas meu amo foi atingido por uma lança, em batalha, antes de escolher o guerreiro, e fui devolvida à casa de meu tio.

- Seu marido planejava entregá-la a outro homem ?

O tom de incredulidade na voz dele fez com que ela se voltasse.

- Esse é o nosso costume - explicou, aturdida - Acreditamos que é melhor a mulher ter filhos, mesmo de um homem que não seja seu marido, do que envelhecer como uma árvore que não produziu frutos.

- Se você fosse minha, ninguém iria usá-la além de mim !

Katniss surpreendeu-se com o impressionante tom de posse nas palavras dele. Fitou-o e viu que a raiva sumia dos olhos dele e era substituída por uma expressão indefinível, que fez seu coração se acelerar.

- Mas não sou sua, ateniense - conseguiu dizer, com grande esforço.

- Ainda não.

O coração dela acelerou-se ainda mais diante da implacável certeza dele. Sem notar o que fazia, ela teve que passar a língua pelos lábios que haviam ficado subitamente secos e Peeta acompanhou o movimento com uma intensidade que a fez arrepiar-se.

Quando, tentando abafar um gemido intenso, ele se aproximou, ela já esperava pelo contato; a cabeça dourada dele abaixou-se e Katniss se preparara para sentir os lábios dele nos seus. Mas, certamente, não imaginara o súbito e intenso calor que irrompeu entre os dois, nem as chamas que arderam em seu ventre, devastando-a e amolecendo-lhe os joelhos.

Uma das mãos dele insinuou-se nos cabelos dela e puxou-lhe a cabeça para trás; em seguida, a língua ardente de Peeta tocou-lhe os dentes, experimentando-a, exigindo entrada. Por um breve momento, Katniss deixou-se levar pela ardente paixão. Permaneceu imóvel nos braços dele, recusando-se a suavizar a postura ou retribuir o abraço, apesar do intenso impulso de fazê-lo. Cerrou os lábios para impedi-lo de invadir-lhe a boca, apesar de ter os nervos à flor da pele, de ansiar por abrir-se àquele beijo, por sentir as mãos dele em todo o seu corpo trêmulo.

No momento em que Peeta moveu a cabeça, procurando aprofundar o beijo, ela fechou os olhos para não ver os cabelos dourados que seus dedos ansiavam por acariciar, nem os contornos do rosto que desejava acariciar com os lábios. Os pêlos rijos da barba que começava a despontar rasparam-lhe o rosto, criando deliciosos arrepios que desciam até os dedos dos pés. À medida que o beijo se prolongava, as mãos dele desceram pelo corpo macio, até envolverem as nádegas, e puxou-a contra seu corpo, de forma muito íntima, fazendo-a sentir o quanto estava excitado.

Reunindo as forças, Katniss afastou os lábios dos dele:

- Não faça isso ! - gemeu

- O quê ? Não fazer isso ? - perguntou ele, deslizando a ponta da língua ardente pelo lábio superior dela - Ou isso ?

Inclinou mais a cabeça e beijou-lhe todo o rosto, até alcançar o pescoço suave. Katniss fechou as mãos em punhos para impedir-se de abraçá-lo. As palmas das grandes mãos morenas queimavam-lhe a pele através da roupa, enquanto acariciavam-lhe os quadris e apertavam-na com força contra ele.

- Ateniense, solte-me !

Ela ficou vermelha quando as palavras saíram, porque não foi um grito de comando, como desejava, mas um sussurro cheio de ardor.

- Peeta - murmurou ele, mordiscando os tendões do pescoço dela - Meu nome é Peeta. Diga: Peeta...

Ela mordeu com força os lábios nos quais já não confiava e assim impediu-os de fazer o que ele pedia.

- Diga... - insistiu, a voz rouca de paixão.

O comando suave perdeu-se nas fortes batidas que soaram na porta.

- Peeta ? Está tudo bem ?

A voz ansiosa da senhora Cassandra destruiu a aura sensual que os envolvia. Contendo a custo um doloroso gemido, o capitão endireitou o corpo, com a respiração ofegante.

- Peeta ! Responda, meu filho !

Katniss fitou-o intensamente, viu desejo nas profundezas dos olhos, nesse momento de um intenso e escuro azul, então sentiu a dúvida que se espelhou em seu rosto. Pelos deuses, o que havia de errado com ela ? Como passara da ira furiosa que sentia contra aquele homem para o quase doloroso desejo de enlaçar os braços no forte pescoço bronzeado ? E isso acontecera no pequeno espaço de algumas batidas de coração... meneando a cabeça, chocada, ela libertou-se dos braços que a prendiam.

- É melhor abrir a porta, antes que a senhora sua mãe a derrube - sugeriu, com voz fraca - Sem dúvida, ela deve estar pensando que eu o estrangulei e que agora estou arrancando a carne de seus ossos com os dentes e mastigando-a.

A risada contida que cintilou nos olhos dele causou uma sensação estranhíssima no peito de Katniss, nas vizinhanças de seu coração.

- Está bem - ele se recompôs - Mas não esqueça onde nós paramos, pequena.

Atravessou o quarto e tirou a tranca da porta.

A senhora Cassandra surgiu do outro lado e o criado encontrava-se atrás dela, segurando com os dedos, belicosamente, um bastão de madeira de ponta afiada. Annie olhava, temerosa, escondida atrás da mãe, com ar apreensivo. O que parecia ser o restante da criadagem amontoava-se por trás deles, empurrando-se para ver o que se passava dentro do quarto.

Os olhos ansiosos de Cassandra cravaram-se no filho.

- Você está bem, Peeta ? Ouvimos gritos, depois mais nenhum som veio daqui...

Peeta teve que fazer uma força enorme para não rir do jeito protetor da mãe.

- Eu estou bem, mamãe - sua voz traiçoeiramente trêmula de riso.

- Esta... esta criatura não o feriu ? - quis certificar-se a senhora.

Não confiando no que aconteceria se abrisse a boca, ele apenas fez que não. Tinha um desejo enorme de gargalhar ao ver todos os moradores da casa prontos para socorrer o capitão de um barco de guerra, e veterano de uma série de batalhas, das garras de uma mulher tão pequenina.

Satisfeita por ver que o filho não corria perigo de espécie alguma, a senhora Cassandra lançou um olhar feroz para Katniss:

- Annie me contou o que ela disse de Valerie. Não me admira que você tenha ficado furioso. Bateu nela, filho ?

- Não - respondeu Peeta.

E tratou de esquecer, convenientemente, que era isso o que pretendia fazer quando arrastara-a para o quarto.

A mãe torceu o nariz:

- Devia. Ela merece um bom castigo por ter assustado a criança desse modo. Tenho certeza que um braço forte ou uma vara são coisas que qualquer espartano compreende.

O bom humor de Peeta sumiu. Uma coisa era contemplar a idéia de dominar a indócil nereida; outra, completamente diferente, era ouvir alguém dizer que devia machucá-la. Antes que pudesse encontrar um modo adequado para cumprir a desagradável tarefa de admoestar a mãe, Katniss passou por ele.

A senhora Cassandra ficou branca e recuou um passo.

O porteiro ergueu a arma.

Peeta estendeu a mão para contê-la, mas resolveu que não devia fazê-lo porque Katniss parecia determinada, e não perigosa.

Ela parou a alguns passos da imponente dama ateniense e disse, com respeito, mas sem submissão:

- Peço que me desculpe por causar tamanha consternação em sua casa. Não pretendia assustar a criança, nem atrapalhar seu jantar.

Os olhos da orgulhosa patrícia se estreitaram:

- Está caçoando de mim, menina ?

Katniss sustentou-lhe o olhar, com firmeza:

- Não, senhora. Nossos hábitos são diferentes, mas não sou rude ou insensível a ponto de ser deliberadamente descortês com uma mulher dentro da casa dela. Não quis, mesmo, magoar a criança.

"O problema de mamãe acaba de ser resolvido !" pensou Peeta, ocultando a surpresa.

Cassandra olhou de Katniss para o filho, parecendo não saber como lidar com a jovem mulher pequena e cheia de dignidade que a fitava. De repente, Peeta teve pena da senhora e se aproximou:

- Já é tarde, mãe, e chegamos de viagem hoje. Acabo de descobrir que o cansaço é maior do que minha fome. Desejo-lhe boa noite.

A mãe ficou imóvel, obviamente relutando em deixá-los sozinhos outra vez.

- Boa noite, mãe - insistiu ele.

Beijou-lhe o rosto e a levou para fora do quarto. Voltou, fechou a porta, virou-se e se encostou nela. O desejo feroz que sentia momentos antes, contido pela interrupção da mãe, já não existia. Se antes desejava de forma arrebatadora o corpo daquela mulher, agora sentia o desejo igualmente intenso, e mais sutil, de conhecer-lhe a mente.

- Às vezes você me surpreende, pequena - constatou, fitando-a.

Katniss sacudiu os ombros:

- E você me confunde o tempo todo, ateniense. Nunca sei o que esperar de sua parte. Não entendo por que chega a sentir tanta raiva por causa de uma criança.

Uma veia inchou e pulsou no pescoço de Peeta.

- Ela é especial para mim - respondeu ele, com simplicidade.

Notando que a tensão crescia nele, Katniss ficou profundamente interessada. Por Hera, esse homem era contraditório, um ser muito confuso: ria quando devia ficar bravo, abraçava-a gentilmente quando ela esperava ser atacada, demonstrava uma incontrolável fúria quando achava que alguém perturbara sua filha. Agora o rosto dele lhe dizia, mais claramente do que qualquer palavra, como adorava sua aleijada Valerie, uma criança que qualquer espartano teria vergonha de ter gerado.

Com uma súbita sensação de atordoamento, ela compreendeu que o golfo entre eles era bem mais vasto do que imaginava. Não só estavam em lados opostos de um conflito que poderia acabar com uma, senão as duas, das cidades em que viviam, como também suas filosofias de vida e modo de viver eram tão diferentes que era provável que jamais o compreendesse.

Seus ombros decaíram ao constatar que o homem que a beijara momentos antes era tão estranho agora quanto naquela manhã na praia sagrada de Esparta. Sua garganta se fechou, com uma dor intensa, e sentiu-se assustadoramente sozinha.

- Conte-me do seu encontro com os mais velhos - pediu, em tom calmo, tentando esconder a confusão que havia em sua mente - Quanto tempo devo ficar nesta cidade estranha, longe da minha casa ?

- Por algum tempo. Querem mantê-la como segurança contra um ataque de seu tio.

O estômago dela se contraiu. Não admitiria isso de forma alguma, mas temia que o tio não desse muita importância ao seu destino. Se decidisse atacar, o fato dos atenienses a terem como refém não o deteria. O olhar gelado dele quando a jogara aos pés de Peeta lhe dava essa certeza. Naquela praça varrida pelo vento ela tivera a chance de conquistar os favores do tio e a repelira. Não tinha dúvida de que Naxos a repeliria também. Uma profunda desolação apoderou-se dela.

Peeta viu o rosto bonito escurecer. Então, os últimos tentáculos do desejo se dissiparam e em seu lugar surgiu a necessidade de protegê-la. Podia apenas imaginar a confusão que ela sentia, sozinha numa cidade estranha. Inquieto, afastou o pensamento de que fora ele quem a colocara nessa situação e procurou palavras que aplacassem os medos dela.

" Conforto, a noite pode oferecer
Aos homens mortais.
Escuridão, paixão,
E um doce esquecer".

Ela ergueu a cabeça e a solidão sumiu daqueles olhos lindos. Em seguida, balançou a cabeça, desgostosa:

- Isso está além de minha compreensão. Um guerreiro que faz poesias.

Controlando o desejo de tomá-la outra vez nos braços, Peeta sorriu:

- Sim, e estes versos não são dos melhores... vamos, pequena - ele se aproximou - Vá dormir. Você está mais cansada do que concordaria em admitir.

O corpo dela endireitou-se:

- Não cansada demais a ponto de não acertar você ! Não toque em mim, ateniense.

- Peeta - ele vibrou com a demonstração dela de retorno à disposição combativa - Não toque em mim, Peeta - corrigiu, avançando mais um passo.

- Porco ! - ela recuou - Idiota ! Que os deuses o amaldiçoem se voltar a me tocar !

- Vou fazer mais que isso, minha Tétis. Mas não quando você estiver tremendo de cansaço e com os olhos embaçados pelas tensões do dia.

- Não me chame por esse nome !

O sorriso dele se alargou, quando passava por ela, em direção a uma porta de madeira do outro lado do aposento. Abriu-a e fez um gesto para o interior de um pequeno quarto.

- Vamos, vá para a cama. Outro dia discutiremos como devemos chamar um ao outro.

De novo ela ficou confusa e olhou o quarto espaçoso onde descansara antes de ser chamada para a sala de jantar.

- Eu não vou dormir aqui ?

- Vai, mas não hoje. Este é o meu quarto. Vamos compartilhá-lo quando eu ouvir meu nome dos seus lábios.

De queixo erguido, Katniss passou por ele e entrou no quarto escuro.

- Marinheiro de nariz torto ! - desabafou, em voz baixa.

Apesar da cama de palha trançada que haviam preparado para ela no quartinho não se comparar à cama do capitão, macia e com acolchoado de lã, era mais confortável do que a cama dura de sua casa e muito melhor do que as praias onde dormira nas noites anteriores.

Katniss deitou-se, a mente cheia de pensamentos sobre o homem no quarto ao lado e seu corpo ferveu de uma forma que se recusou a admitir.


Ela acordou ao som distante de uma flauta e com um suave raio de luz que passava pela porta do quarto de despejos. Saltou em pé e usou o vaso de noite que descobriu num canto. Com as necessidades básicas satisfeitas, notou uma bacia e um jarro de cerâmica, cheio de água, que os servos deviam ter deixado ali na noite anterior. Lavou o rosto e as mãos.

A túnica amarela deslizou-lhe pelo corpo com a familiaridade de uma velha amiga. Dobrou-a na cintura para diminuir o comprimento, e amarrou as faixas douradas sobre a dobra. Sem uma escrava para penteá-la, passou os dedos nos cabelos e prendeu-os num rabo-de-cavalo que descia pelas costas, chegando quase à cintura.

Antes mesmo de entrar no quarto do capitão, Katniss percebeu que ele não estava lá.

À luz da manhã, o quarto parecia maior e mais vazio que na noite anterior. Era como se a simples presença dele tivesse feito o quarto encolher. Curiosa, examinou-o com atenção, procurando indícios do homem a que pertencia.

Pelos padrões espartanos, era bem decorado, apesar de não ser luxuoso como esperava. O ateniense, pelo jeito, mantinha em terra a mesma ordem que exigia em seu barco. A cama grande achava-se encostada em uma das paredes, as cobertas grossas tornando-a aconchegante. Um baú de roupas, decorado com marfim num padrão xadrez, estava ao lado de uma mesa simples, com cadeira de espaldar reto. Acima do tripé do braseiro, que fornecia calor nas noites de inverno, um nicho fora cavado na parede. Continha uma pequena estátua em alabastro de Zeus, o guardião de todas as casas.

Ao lado da porta vermelha ornada, Katniss viu outro nicho. Nele encontrava-se o único adorno daquele quarto que atraiu seu olhar e fascinou-a. Era um pequeno prato raso, de prata, maravilhosamente decorado, com asas idênticas dos dois lados. Vira apenas um outro prato como aquele. Era a maior riqueza do grande lutador, já bastante idoso, que a treinara: o prêmio dos velhos de sua tribo para um campeão olímpico. Dentro dele o lutador conservava a simples coroa de folhas de oliveira que levara para Esparta, com grande honra e glória.

Seus olhos se estreitaram enquanto fitavam a coroa de folhas secas dentro do prato do capitão. Grande Zeus, o ateniense seria um campeão olímpico ? Teria sido por isso que a vencera com tanta facilidade, sempre que tentara escapar dele ? Examinando as lembranças, recordou-se vagamente de um jovem corredor de cabelos dourados que alcançara o melhor desempenho no pentatlo, fazia pouco mais de uma década. Tocando as frágeis folhas com suavidade reverente, Katniss sentiu que a imagem que a princípio fizera do capitão se havia alterado profundamente. Campeão olímpico e poeta ! Marinheiro destemido, pai que amava uma criança deformada ! Um ateniense !

Fora educada para considerar todos os atenienses como pessoas sem honra, decadentes.

Mas ali, na privacidade do quarto dele, via-se obrigada a admitir, apenas para si mesma, que aquele homem, aquele inimigo, despertava nela uma relutante admiração. Isso para não mencionar o insidioso desejo de que a tocasse. Ali, na solidão dos pensamentos, podia até mesmo admitir que ficara secretamente desapontada por ele não a forçar a compartilhar de sua cama na noite anterior. Caiu em si e, chocada por tal pensamento, voltou as costas para o prato de prata.

Que tipo de mulher era ela ?, perguntou-se, com um princípio de desespero. Como podia ficar no escuro, apertando as coxas uma contra a outra para abrandar o desejo que a consumia, o desejo por um inimigo de seu Estado ? Com a sensação de que o mundo desmoronava debaixo de seus pés, Katniss endireitou as costas, os ombros e saiu do quarto.

Quando chegou no pátio, provocou o imediato cessar de todas as atividades. Uma escrava, sentada numa banqueta com uma flauta dupla nas mãos, ergueu os olhos e as notas musicais puras que se espalhavam no ar fino da manhã silenciaram. Quatro servas ajoelhadas junto ao rebolo detiveram os movimentos rítmicos e pararam de afiar as facas. Duas outras que espremiam olivas para extrair azeite recuaram e fitaram Katniss com um misto de curiosidade e medo.

Sentindo-se meio como o bezerro de duas cabeças que vira uma vez na ágora de Esparta, Katniss contornou o pátio, imaginando onde poderia tomar o café da manhã.

Encontrou a senhora Cassandra saindo da imensa cozinha. Numa túnica azul-celeste, que combinava com seus olhos e realçava a ainda bonita pele branca, ela transmitia mais do que nunca uma forte impressão de realeza. Ao olhar para a espartana, não demonstrou a mínima afabilidade.

- Meu filho me avisou que você não devia ser perturbada - disse, o rosto tenso demonstrando toda a sua desaprovação - Separei tortas de trigo e figos para você comer quando desejar.

Dividida entre o ímpeto de recusar a oferta feita naquele tom e o vazio que sentia no estômago, Katniss hesitou. O ronco surdo que se manifestou no íntimo de seu corpo resolveu a questão.

- Eu agradeço - respondeu, também com distante frieza, e seguiu a patrícia ateniense cozinha adentro.

Detendo-se, Cassandra apontou para um prato colocado sobre uma mesa de madeira:

- Coma. Também há vinho.

Katniss fez uma pequena libação para os deuses e depois tomou um bom gole do vinho escuro. Mesmo aguado como estava, a mistura era muito mais forte do que o vinho fraco das encostas rochosas de Esparta, ao qual estava acostumada.

Seus olhos se dilataram quando o líquido saboroso escorreu-lhe pela garganta.

- Meu filho deseja que você descanse hoje, para se recuperar do desconforto da viagem. Ele foi ao porto e voltará à tarde.

- Já estou recuperada - garantiu Katniss.

Febril, sua mente tratou de avaliar a informação de que ele a deixara ali, sem guardas, apenas com a mãe e um grupo de escravos tímidos. Mordeu um figo seco e sentiu que uma excitação morna se espalhava por suas veias.

- Vou deixá-la comer em paz.

O tom da senhora Cassandra deixava claro que tinha coisa mais importante a fazer do que cuidar de uma espartana. Com um giro da túnica azul, ela desapareceu.

Katniss não deu a menor atenção à retirada da dona da casa. Comeu uma das tortinhas, tomou outro gole de vinho e sentiu-se ótima. Pelos deuses, o capitão a avaliara muito mal se pensara que permaneceria ali, dócil como uma cachorrinha bem treinada à espera do retorno dele. Apesar de não saber se conseguiria escapar daquela casa com facilidade, depois sair da metrópole e encontrar o caminho de volta a Esparta, através de quilômetros de terra e mar desconhecidos, Katniss não se deixou desanimar. Quanto mais depressa fugisse do capitão ateniense e da forma como ele se apoderava de sua mente, mais rápido recuperaria o orgulho e a familiaridade com o seu próprio mundo.

Olhou atentamente a cozinha, com o coração batendo apressado de tanta ansiedade. As escravas que cuidavam da comida estavam ocupadas nos fornos de barro, de costas para ela. Ergueu-se e foi até a porta, para dar uma olhada no pátio. A senhora Cassandra não se encontrava à vista.

Ignorando os servos que a fitavam, curiosos, andou pelo pátio como se estivesse tranqüilamente conhecendo o lugar. Olhou com mais atenção para o altar de mármore no meio do pátio e tocou com gestos casuais o plinto que tinha um ponteiro de bronze que projetava sua sombra, à luz do Sol, num mostrador com marcas. Em seguida, com firme determinação, avançou pelo hall onde ficava o cubículo do criado, que tomava conta da única entrada da casa. O criado mais velho não seria empecilho, e Katniss sabia disso.

Chegou ao estreito saguão de entrada e parou perto da enorme e maciça porta de madeira que se interpunha entre ela e a fuga. Entre o cativeiro e a liberdade. Entre o risonho, perturbador, capitão e o guerreiro espartano grosseiro, sem a mínima sensibilidade, que deveria ser seu marido. Respirou fundo e avançou para a porta.

O som de pés descalços no mármore indicou que o escravo porteiro a vira e vinha em sua direção. Ela voltou-se, os músculos tensos, prontos para derrubá-lo. Para sua surpresa, viu-se diante de um imenso peito musculoso, coberto de pêlos escuros, encaracolados.

- Os deuses lhe desejam um bom dia, senhora. O capitão disse que a dama deve descansar hoje e não sair.

Katniss olhou para o marinheiro que derrubara na praia.

- O que você faz aqui ? Por que não está em seu barco ?

- Entramos de licença assim que chegamos da viagem, senhora. Não tenho família, nem casa onde morar, então o capitão me ofereceu um dracma por dia para ficar aqui e mantê-la em segurança.

- Manter-me presa aqui dentro, você quer dizer - rebateu ela, com escárnio.

Com os olhos se estreitando, avaliou o corpanzil do homem, que cruzou no peito os braços que tinham a grossura de uma pequena árvore.

- Não vai me derrubar com tanta facilidade desta vez, senhora - avisou ele, com evidente simpatia - Tenho mais que o dobro do seu tamanho e agora sei o que esperar.


P. S.: Nos vemos no Capítulo 9.