Kakashi e o Vale da Morte

Capítulo 1

Kakashi Hatake estava deitado à beira do rio de Konoha. Aposentado, mas ainda um ocasional conselheiro, ele desfrutava de um dia de folga, sem treinamentos, sem conselhos, sem preocupações. Aos 48 anos, Kakashi podia finalmente relaxar um pouco mais.

Ele já havia cumprido tudo o que a carreira ninja proporcionava, se é que ele podia chamar de carreira, afinal, a vida ninja era muito mais do que uma profissão, pelo menos era assim para ele.

Além do mais, ser ninja havia mudado muito com o passar do tempo. Em sua época, ser ninja era muito mais do que ter uma folha de pagamento, era um propósito de vida. Se tornar Hokage seria uma honraria, era o topo que apenas pessoas seletas alcançariam, e ele foi um desses seletos.

Com o passar dos anos, e com a formalização da diplomacia e união das Nações ninjas, os conflitos diminuíram, e em tempos de paz, cada nação progrediu à sua maneira.

E ele presenciou essa transição de gerações, e também, foi ele parte desse selamento de paz. Agora, era a vez das novas gerações ocuparem seus devidos espaços e cada pessoa poder ter a escolha de seguir em uma vida comum, sem o peso e sem o sangue nas mãos devido a obrigação de ser um ninja em tempos de disputas e guerras.

Era o dia de Pais e Filhos em Konoha. Para uns era um dia para a reunião de família. Para outros a lembrança da ausência de uma.

Kakashi estava observando as nuvens em mais um dia livre quando se apercebeu de vozes por perto. Calado e agindo como se não estivesse presente, involuntariamente começou a prestar atenção na conversa de um par de mulheres.

"Agradeço que você tenha vindo comigo. Eu não aguentava mais aqueles papos lá de casa!"

"Eles pegando no seu pé de novo?"

"Sim, ainda mais hoje! Por que eles não entendem que casar e ter filhos não é tudo na vida, ainda mais na vida de uma mulher?"

"Porque é algo mais natural"

"Eles não fazem a mesma cobrança com meu irmão!"

"Eles são muito tradicionais, né?"

"A cobrança deles vai além da tradição!"

"Mas seu irmão é homem. Ele é feito para trabalhar e não para o lar, essa é a tradição"

"Isso não tá certo! Eu também tenho direito as minhas escolhas. E daí se eu não quero continuar a linhagem da minha família?"

Kakashi respirou fundo enquanto observava a indignação da jovem desabafando. De certa forma ele compreendia o lado dela, pois aquele diálogo também o lembrava do que ele tinha com ele mesmo em alguns momentos ao longo dos anos após perder seu pai.

Durante a juventude, ele nunca questionou ou mesmo se importou com o restabelecimento de seu clã, afinal, ele era o último dos Hatake ainda vivo.

Após anos convivendo com a geração de Naruto e seus amigos, vê-los crescer e constituir suas próprias famílias, numa fase de sua vida em que seu coração não mais pesava em luto, durante o período de paz após a quarta guerra ninja, ele então Hokage, foi quando ele teve em alguns momentos reflexões sobre aquele mesmo questionamento da jovem: Será que tudo se resume em continuar a linhagem da família?

Após outro longo suspiro, ele sentou-se, permanecendo a observar o curso do rio, e mais uma vez fechou-se em suas mais profundas lembranças, enquanto em sua volta, famílias passeavam comemorando aquele dia juntos.

"Então você está aqui também?"

Kakashi olhou rapidamente para o lado ao ouvir a voz de Iruka, "É... o dia está lindo. Não está frio, nem quente, as nuvens estão branquinhas... ótimo para relaxar"

"Pensei que você relaxasse nas fontes termais e viesse a este local apenas para refletir"

"Aconteceu alguma coisa ou algo em que posso ajudar?" Kakashi perguntou mudando de assunto

Iruka sentou-se ao lado do 6º Hokage e avistou na outra margem do rio um homem ensinando uma criança a pescar, "Você sabe que dia é hoje, né?"

"Hum, sexta-feira?"

Iruka riu, "É, também, mas me refiro a data comemorativa de hoje" ele permaneceu a observar o homem e a criança, presumindo que eram pai e filho

Kakashi olhou na mesma direção e pôde presumir sobre o que Iruka estava se referindo, "Você está diferente hoje"

"Você acha que estou diferente?"

Kakashi olhou para o alto com a mão no queixo pensando numa palavra mais adequada, "Talvez reflexivo?"

Iruka respirou fundo, continuando a observar pai e filho pescando. A criança estava nitidamente mais apressada, e o jovem pai tentando acalmá-lo, "É, acho que você está certo, estou reflexivo"

"Aconteceu alguma coisa?"

"Você vê aqueles dois do outro lado? Hoje é o dia de Pais e Filhos... Há várias famílias andando pela cidade, inclusive os nossos pupilos. Quantas gerações estamos testemunhando se formarem. O tempo está passando tão rápido e nós aqui conversando na beira do rio..."

"Você está ficando velho... Isso é crise da meia-idade"

Iruka riu, "Você também amigo. Você ainda é mais velho do que eu!"

"Não tanto assim"

Os dois riram juntos por alguns segundos e observavam as famílias felizes. Famílias de todos os tipos. E no fundo, os dois shinobis de meia-idade recordavam-se da própria família perdida. Aqueles dois tinham muito em comum além da vida shinobi, ambos eram dois honrados solteirões.

Iruka não se casou, não tinha filhos e já em idade avançada teve sua primeira experiência com uma mulher, afinal, "até o Naruto se casou!", ele pensou na época e tomar coragem para se aventurar em um romance, apesar de manter sua vida bem privada desde então.

Não mais privado que Kakashi Hatake, o cão solitário de Konoha. Outro órfão de pai e mãe, um gênio shinobi precoce, ex-Anbu, o líder Jounin do saudoso time 7, o 6º Hokage, e um fiel leitor da série Icha Icha. Muito se sabia sobre sua carreira ninja, mas nada sobre sua vida pessoal.

"Posso te perguntar uma coisa?" Iruka quebrou o silêncio

"Claro"

"Você nunca sentiu falta de ter uma vida comum?"

"Minha vida é bem comum agora"

"Digo, você alguma vez parou para pensar em construir sua própria família, continuar o seu clã?"

Involuntariamente, Kakashi olhou para as nuvens com um olhar distante e respondeu friamente, "Não"

"Por que não?"

"Já são duas perguntas"

"Existe uma cota de perguntas?"

"Aonde você quer chegar com isso?"

"Estou apenas conversando sobre família, raízes, e herdeiros. Somos ninjas e órfãos. Não passamos nosso sangue adiante. Eu demorei muito para me envolver com alguém"

"Relacionamentos podem ser um problema para os ninjas, e até faz parte de uma das regras"

"Não é proibido, afinal, é assim que clãs perduram por gerações e muita coisa mudou, você sabe disso."

"Você está passando por uma crise mesmo, hein!"

"Pode até ser, e talvez por isso cada vez mais me pergunto sobre o valor e o peso da solidão carregada por tantos anos"

"São escolhas que fizemos e arcamos com as consequências"

"Sim, mas até quando carregar isso? Você não se preocupa em ser o último sobrevivente do seu clã?"

"Eu não tenho porque me preocupar com isso"

"Como você consegue?"

"Aceitei minha vida como ela é"

"Eu também aceitei a minha, mas você é todo galã, é popular, é bom de lábia, não teria dificuldade em ter candidatas"

Kakashi manteve-se em silêncio.

"Por acaso você é casado?"

"Eu casado? Claro que não!"

"Já se deitou com alguém?"

Kakashi coçou a cabeça e antes que pudesse responder, a conversa dos solitários foi interrompida por uma bola passando por eles e uma criança correndo atrás. Iruka levantou-se rapidamente ao avistar a bola indo para a água e pela segurança da criança, ele pulou para pegar.

Kakashi riu desconcertado e aliviado com o livramento da sabatina, e olhou para as nuvens pensativo.

Era engraçado a repentina curiosidade de Iruka em sua vida pessoal, mas ele compreendia que a conversa ali era mais sobre o próprio Iruka do que ele.

Iruka confiava nele, assim como ele também confiava em Iruka, e com o passar dos anos eles se aproximaram a ponto de Iruka o confidenciar sobre sua aventura amorosa, apesar de não entrar em detalhes.

Em contrapartida, Kakashi apenas ouvia ou saia pela tangente quando perguntas mais específicas ocorriam. Kakashi permanecia-se fiel a sua própria mudez pessoal.

Ao entardecer, Kakashi estava de volta a sua casa. Abriu a porta, avistando a penumbra e o silêncio no interior do recinto adiante. Acendeu as luzes, guardou as compras. O local era limpo e simples. Sala, cozinha, banheiro, lavanderia e um quarto com varanda. O suficiente para uma pessoa só.

Ele mesmo cozinhava, ele mesmo limpava, ele mesmo organizava tudo. Ninguém o esperava. Ninguém o recebia. Ninguém se despedia.

Essa era sua rotina desde tenra idade quando seu pai faleceu.

Liberdade ou solidão?