Disclaimer: Tróia não me pertence. Faço este fic sem fins lucrativos, apenas por diversão.

Segunda Chance

Capítulo 5

Nada teria deixado Aquiles mais satisfeito do que ficar observando o rosto adormecido de Briseis pelo resto da madrugada, do dia, e até da noite adentro. Mas ele imaginou que no estado em que ela tinha sido encontrada, a única coisa que sua atenção total causaria quando ela acordasse era um desconforto ainda maior, e certamente medo. Ele não queria que Briseis o temesse naquele mundo, mas as circunstâncias eram cruéis. Ali, no mundo moderno, ele não era um guerreiro aclamado. Ele era um criminoso conhecido, com uma vida perigosa que não prestava qualquer segurança a uma jovem inocente como Briseis.

No passado, ele tinha sido bruto, imponente, controlador, até cruzarem as barreiras da incompreensão e se tornarem um só. Ele a tinha deixado partir, pela segurança dela. Mas não queria ter que repeti-lo naquela vida. Ali, com uma nova chance, ele queria garantir a segurança e a felicidade dela, ao seu lado. A última coisa que queria era que ela sentisse medo dele, que sentisse repulsa.

Inquieto, ele deixou o quarto em que ela dormia e andou até a sala de estar. Ligou para a recepção do hotel e pediu que o café da manhã fosse servido no quarto. Dispensou as tentativas de visitas de Andrej e Pátroclo, e permaneceu sentado na sala da suíte enquanto olhava para o celular, ansioso que houvesse uma resposta para a mensagem mais recente que tinha enviado. Longos minutos se passaram, os funcionários do hotel trouxeram o café da manhã e o dispuseram na mesa redonda que havia na sala de estar. Não havia ainda a resposta que ele queria no celular, e ele torcia para que a mensagem chegasse antes de Briseis despertar de seu sono conturbado.

Mas as preces dele foram em vão. Um barulho alto vindo do quarto fez com que ele se levantasse mais rápido do que teria sacado uma espada em uma batalha na Grécia antiga, e a passos largos, ele alcançou a porta do quarto entreaberta para observar Briseis sentada no chão, o lençol da cama parcialmente lhe cobrindo as pernas, o abajur do criado-mudo tinha caído e fora a fonte principal do barulho. Ela tentava se manter erguida, com as mãos sobre o chão, mas o corpo dela tremia com a fraqueza e mesmo daquela distância, Aquiles notou que a respiração dela estava intensa e falha.

Ele não queria ter que enfrentá-la naquele estado atordoado, mas também não a deixaria caída no chão, sem forças sequer para se erguer. A passos largos, ele se aproximou o suficiente para se ajoelhar diante dela e estender as mãos em sua direção, sem pensar muito, o que tinha sido um erro.

― Você está bem? Se machucou? ― ele perguntou, alarmado, e o tom de sua voz pareceu despertar o resto de força que a jovem tinha.

― Não me toque! ― Briseis se assustou com a aproximação e ao erguer os olhos para encará-lo, os olhos estavam arregalados e o rosto tomado por surpresa. Antes que Aquiles conseguisse encostar nela, as mãos dela bateram nas suas para mantê-lo afastado. ― O q… on-onde eu estou… o qu― o que fez… c-comigo?

Aquiles sentiu o peito apertar, ao ver o modo como ela se encolheu para longe dele. Mesmo temerosa, a reação dela era feroz, como um animal acuado tentando se proteger a todo custo. Ele não insistiu em tocar nela, deu o espaço que precisava, trouxe a mão de volta para apoiar num joelho.

― Ninguém lhe fez nada de mal, eu prometo. ― Aquiles assegurou, embora soubesse que era impossível que ela acreditasse em suas palavras. ― Você foi drogada, você chegou a mim antes que pudessem lhe fazer qualquer coisa.

― Eu não… ― ela contorceu a expressão numa de temor, o rosto estava pálido e o suor escorria pelo canto da testa dela. O lençol que tinha parcialmente caído no chão, ela puxou para perto do corpo como se lhe servisse de proteção. Aquiles notou como a respiração dela começou a ficar mais intensa e errática. ― Me deixe sair… eu quero sair…!

― Eu nunca mais lhe impedirei de partir, minha querida. ― Aquiles fechou a mão em punho, tomado pelas lembranças dos breves momentos que tinha compartilhado com a jovem nas praias tomadas de Tróia. Naquela era, ela tinha sido a sua escrava, e ele não gostaria que ela tivesse aquela sensação de estar à sua mercê de novo.

Ele deu o espaço que ela precisava, se levantou e deu um passo para trás, gesto que Briseis encarou com pura desconfiança. A respiração dela ainda estava mais intensa, o rosto estava ainda mais pálido, se possível, e as gotas de suor escorriam pelo canto de seu rosto. Com os braços trêmulos, ela buscou forças para se apoiar na mesa de cabeceira e se levantar de um salto, talvez muito mais rápido do que seu corpo debilitado aguentaria, e no instante seguinte, ela sentiu tudo girar ao seu redor, a vista ficar turva, e os pés cederem sobre o seu peso.

Antes de sentir o impacto do corpo pesado sobre o chão, os braços firmes de Aquiles se estenderam para envolvê-la, e no estado debilitado em que estava, Briseis ainda demorou alguns longos segundos para assimilar que ele tinha amparado sua queda, e que estava perto o suficiente para sentir o calor do corpo dele, os músculos fortes, e acima de tudo, o terror de ser tocada por alguém de quem ela dificilmente conseguiria se livrar naquele estado ― ou até mesmo, no seu melhor estado físico.

― Eu disse para… não me tocar! ― ela negou o apoio, empurrou-o pelo peito e foi o próprio corpo frágil que sentiu ceder ao pressionar os braços contra ele.

Ela teve a impressão de ouvi-lo chamar seu nome, mas como ele saberia o seu nome? A mente ainda estava muito nublada e o corpo fragilizado pelo efeito da droga, e na sua segunda tentativa de escapar e se manter de pé sozinha, ela apagou de uma vez. Mesmo se quisesse, não teria conseguido evitar o movimento rápido de Aquiles para segurá-la uma segunda vez, o corpo tão fraco e tão mole em seus braços que ele sentiu o corpo todo gelar, como se ela tivesse ido bem além de um sono profundo, como se tivesse partido de vez para o mundo dos mortos.

― Briseis? Pode me ouvir? Briseis! ― Aquiles a segurou próxima ao corpo, mas a jovem estava inconsciente mais uma vez. Ele sentiu o corpo todo estremecer em medo, mas depois de uma respiração funda, ele sentiu as batidas calmas do coração dela, a respiração leve, os sinais de que o fio da vida dela ainda corria intacto e os deuses não tinham sido cruéis em cortá-lo bem diante de si.

Aquiles a ergueu nos braços com facilidade e a devolveu ao conforto da cama, usando o lençol para cobri-la mais uma vez. Com os braços dela sobre o lenço, ele ainda lhe tocou os finos e longos dedos frios, erguendo a mão dela até os seus lábios e depositando um beijo cálido ali. Com cuidado, retornou a mão dela para pousar ao lado da cama e se levantou para sair do quarto mais uma vez, só então lembrando de checar o celular por novas mensagens.

Antes que ele conseguisse alcançar o aparelho na mesa redonda da sala de estar, ouviu as batidas firmes na porta do quarto e andou até lá. Para ter subido sem qualquer anúncio, certamente era Andrej ou Pátroclo, mas não queria ter que lidar com nenhum dos dois naquele momento.

Ele abriu a porta pronto para dispensá-los, quando sua voz ficou presa na garganta ao encarar a figura mais inesperada possível. A mulher em sua porta era alta, de corpo esguio e roupas elegantes. Ela usava óculos escuros que tirou quando ele abriu a porta e a expressão era desagradada, Aquiles arriscaria a dizer, inclusive, desafiadora.

Na sua vida passada, ele não a tinha visto de tão perto, por isso demorou alguns longos minutos para entender que aquela era a mulher de Heitor, Andrômaca.

― Então você é o infame Aquiles. ― ela quebrou o breve silêncio entre os dois, enquanto colocava o par de óculos apoiado na gola do elegante vestido azul com um decote reto. ― Eu sou Andrea, esposa de Heitor, ele me pediu para vir aqui com urgência. Disse que tem a ver com nossa prima, Briseis.

― Minha senhora. ― Aquiles curvou a cabeça num meneio breve em respeito à posição que a mulher ocupara na sua vida passada, um gesto que em sua vida curta, não teria se prestado a fazer por mero desdém. Mas sentia que estava acima daquilo, e mesmo que ela já não fosse mais a princesa de Tróia, com certeza se portava como realeza. ― Por favor, entre. Eu imaginei que Heitor viria pessoalmente.

― Ele queria. Mas nós dois concordamos que seria muito imprudente que vocês dois fossem vistos no mesmo lugar depois dos acontecimentos mais recentes entre nossas facções. ― ela não pareceu se importar com o modo como fora tratada e entrou na suíte, olhando cuidadosamente ao redor antes de se voltar para Aquiles. ― O que aconteceu com Briseis?

― Eu pedi que meu braço direito investigasse a fundo. Mas até então, meus homens a encontraram próximo do território que invadiram ontem à noite, ela estava enebriada, e eles acharam que ela seria um bom… presente para mim. ― ele tentou achar a melhor das palavras.

― O que você fez? ― a pergunta da mulher veio entredentes e Aquiles notou quando ela fechou uma das mãos em punho, tentando conter o temperamento.

― Mandei o responsável por isso, entre meus homens, para o hospital. Mas não foram eles que a drogaram, ou eu os teria mandado para o Tártaro. ― Aquiles respondeu, sem se importar como o modo agressivo que ela lhe dirigia a palavra. Era apenas esperado, dadas as circunstâncias. ― Eu a trouxe comigo porque era o único lugar em que ela poderia ser bem tratada. Uma médica cuidou dela durante a noite, e eu enviei a mensagem a Heitor para informar a situação. Eu não queria que ela acordasse num ambiente estranho, com um homem estranho, depois do que passou ontem.

― Onde ela está? ― o tom pareceu um pouco mais comedido daquela vez.

― No quarto. ― Aquiles apontou a porta entreaberta. ― Ela acordou há alguns minutos, mas voltou a desmaiar. Você pode conferir por si mesma.

Andrômaca ainda o encarou com suspeição. Ela estreitou os olhos para o homem estranho e deu alguns passos cautelosos na direção da porta. Heitor tinha lhe garantido que era um lugar seguro, e depois de tudo que tinha lhe compartilhado naquela madrugada, ela não sabia exatamente o que pensar ou no que acreditar, mas sabia que não duvidaria de seu marido, não importava a loucura em que ele acreditasse. Se fosse aquele o caso, os dois enlouqueceriam juntos.

Ela andou até o quarto e avistou uma Briseis adormecida profundamente na cama. A mulher soltou o ar todo de uma vez e o corpo relaxou, a ponto dela deixar a pequena bolsa que trazia numa das mãos escorregar para o chão, tomada pela preocupação somada ao alívio.

Aquiles não se atreveu a se aproximar do quarto. Queria manter o olhar sobre Briseis, queria cuidar dela, mas sabia que as circunstâncias o impediam. Ele andou de volta até a mesa redonda onde o café da manhã já estava servido, embora intocado, e deu a Andrômaca o tempo que precisava com a jovem da família.

Ele não soube quantos minutos se passaram, mas pareceu uma eternidade, e então, Andrômaca deixou o quarto e encostou um pouco a porta. Obviamente, Briseis ainda não tinha descansado o suficiente para recobrar a consciência mais uma vez. Talvez se ele não a tivesse tentado ajudar, estressando-a ainda mais com sua presença, ela estivesse acordada para ser recebida por uma pessoa de confiança.

A expressão de Andrômaca era um pouco mais suave quando ela veio em sua direção, ficando de pé, embora Aquiles tivesse se acomodado numa das cadeiras à mesa.

― Algo que eu possa lhe oferecer, minha senhora? Além de um lugar para sentar e algo para comer e beber? ― ele indicou a mesa e as cadeiras ao redor num gesto amplo, mas Andrômaca se manteve onde estava, encarando-o de um modo analítico, os dois braços cruzados diante do corpo.

― É verdade, não é?

A pergunta não fez muito sentido para Aquiles e ele não ofereceu uma resposta, mas ela mesma completou a sentença.

― Que você e Heitor têm memórias de uma vida passada?

Daquela vez, Aquiles arqueou as sobrancelhas. Havia um quê de surpresa dentro de si, pelo fato de que Heitor tinha compartilhado o que pareceria uma loucura para a mulher, e que ela tinha aparentemente acreditado. Havia também um quê de inveja, ele queria poder dividir aquele fardo com alguém, mas não havia alguém ainda tão certo em sua vida. E mesmo que um dia houvesse, com Briseis ao seu lado a despeito dos inícios conturbados, não estava certo de que ela lhe garantiria a mesma credibilidade.

― Temo que sim. ― Aquiles respondeu depois de alguns longos minutos em contemplação. ― Não sei dizer se é uma bênção, ou uma maldição.

― Você realmente o matou no passado? ― o tom dela era de acusação. Embora esperasse por aquela pergunta, foi doloroso ouvi-la.

― Sim. E como muitos outros feitos de minha vida na Grécia Antiga, foi um dos meus maiores arrependimentos. ― respondeu Aquiles, e só pelo jeito que ela pressionou os lábios, ele imaginou o que podia vir de questionamento a seguir, e se adiantou em estender um pouco a explicação: ― Mas não, eu não teria deixado de matá-lo, dada a oportunidade de reviver os meus erros, porque naquela época, naquelas circunstâncias, eu precisava fazê-lo.

― Ele me disse que matou o seu primo, por confundi-lo com você.

― Sim. E eu retaliei, como qualquer guerreiro faria. ― respondeu Aquiles. ― Foi uma batalha justa.

― Não há justiça na morte. ― a resposta dela saiu talvez mais impulsiva do que ela gostaria, e Aquiles não conseguiu conter um sorriso breve com o modo astuto da mulher. Não era surpresa que ela fosse uma princesa em sua vida passada.

― Não, não há. Talvez por isso tenhamos recebido uma nova vida, em lugar da morte eterna. ― respondeu Aquiles. ― Os fardos que carregamos em Tróia, trouxemos para cá, e assim como eu estou determinado a não deixar que meus erros se repitam, Heitor deve pensar o mesmo. Quero acreditar que os deuses nos garantiram uma oportunidade de fazer tudo certo dessa vez. Não deixarei escapar.

Andrômaca o encarava com uma expressão ainda analítica, severa, mas a postura toda suavizou um pouco quando ela deixou o ar escapar pelos lábios entreabertos, os ombros relaxando um pouco.

― Você é diferente do que dizem. ― ela apontou.

― Ouso dizer que é o resultado de ter vivido duas vidas árduas, minha senhora. ― respondeu Aquiles, num tom mais tranquilo. ― Aprendemos com os nossos erros.

A esposa de Heitor pareceu prestes a perguntar algo mais, mas antes de fazê-lo, os olhos de Aquiles desviaram rapidamente para a figura lânguida de Briseis, que apareceu à porta do quarto, fraca, tentando se sustentar para, provavelmente, fugir de seu estranho agressor. Ele se colocou de pé em alarme, pronto a cruzar aquele espaço como se não fosse mais do que um passo de distância, para impedir que ela caísse, mas a sua reação despertou os instintos de Andrômaca também, que se virou para observar a jovem, com uma expressão preocupada.

― Briseis! ― ela que correu na direção da jovem, e só então Briseis ergueu o olhar, com muito esforço, para perceber que havia um rosto conhecido e atencioso ao seu lado.

― Andrea…! Andrea! É você mesmo?! ― Briseis estendeu os braços em volta de Andrômaca, tentando se sustentar, a expressão que antes tinha sido tomada pelo temor ao encarar Aquiles, tinha se desmanchado numa de alívio, os olhos avermelhados se enchendo de lágrimas diante do rosto familiar.

― Sim, minha querida, que bom que acordou, que bom que está bem! ― Andrômaca deu o suporte que Briseis precisava, envolvendo-a com ambos os braços, uma mão pousando na cabeça dela. ― Ah, Briseis, nós ficamos tão preocupados com você. Eu morreria se alguma coisa tivesse lhe acontecido.

― Andrea… eu não queria, eu só saí com uns amigos, eu juro que… ― a voz dela ficou embargada, e os soluços se acumularam no topo da garganta, enquanto ela apertava o tecido do vestido da mais velha com a pouca força que tinha.

Aquiles observou a cena a distância, nunca tinha se sentido tão impotente em suas duas vidas, quanto se sentia naquele momento, observando o estado frágil da jovem que tinha jurado proteger.

― Shh, calma, está tudo bem, você está bem, não aconteceu nada. Eu sei que não foi sua culpa, meu bem. ― Andrômaca tentou acalentá-la. ― Você precisa de alguma coisa? Quer comer algo? Beber água? O motorista está nos esperando no estacionamento, se quiser, podemos ir direto―

― Sim, por favor, vamos para casa. ― Briseis a interrompeu o quanto antes, o tom de voz quase desesperado. ― Eu quero ir pra casa! Por favor, Andrea, me leve pra casa!

― É claro, querida, eu vou cuidar de você, não se preocupe. ― Andrômaca passou a mão pelos cabelos dela de novo e Briseis escondeu o rosto em seu ombro, abraçando-a como se a vida dependesse daquilo.

Andrômaca não soltou Briseis, mas voltou o olhar para Aquiles, que estava parado a alguns bons passos de distância, como se qualquer gesto para se aproximar pudesse deixar a jovem ainda mais abalada. Ainda assim, foi ela que se dirigiu a ele.

Obrigada. ― o agradecimento quase surpreendeu Aquiles, mas ele só respondeu com um curto aceno de cabeça. ― Vamos indo agora, Briseis.

Briseis tirou o rosto do conforto do colo de Andrômaca e foi obrigada a olhar rapidamente para o lado, intrigada com a presença daquele homem, com o fato de que tinha acordado da segunda vez para encontrar com a dedicada esposa de seu primo e, acima de tudo, com o fato de que ela tinha agradecido àquele estranho. Ela não estava em condições de entender tudo o que tinha acontecido, então só desviou o olhar de novo para segurar a mão de Andrômaca e poderem sair do quarto.

Só quando Briseis passou e Andrômaca a seguiu de perto, foi que Aquiles se arriscou a dar mais alguns passos, ainda mantendo a distância segura para que Briseis não se assustasse mais. Ele tirou o cartão que tinha recebido na madrugada anterior da médica para estender para Andrômaca.

― Fique com isso. Ela foi a médica que atendeu Briseis quando chegamos aqui. Pode lhe ser útil.

Andrômaca só aceitou o cartão com um breve aceno de cabeça e Briseis se arriscou a encarar o homem com um ar duvidoso mais uma vez, antes de deixar a suíte na companhia de Andrômaca. Aquiles foi obrigado a apenas observar enquanto as duas se afastavam, dando uma distância segura para que a jovem não se sentisse ameaçada. Quando elas saíram da suíte, ele ainda deu alguns passos até a porta aberta, acompanhando-as com o olhar até entrarem no elevador. Briseis lhe lançou um último olhar duvidoso e, naquele momento, ele ficou pelo menos satisfeito de que o olhar não era de puro ódio ou temor. Havia esperanças para começar do jeito certo naquela vida.

Aquiles se pegou imerso, talvez demais, nos pensamentos do que tinha acontecido na noite anterior e na imagem de Briseis, a ponto de perder noção do tempo que tinha passado parado, ali, no corredor muito silencioso das suítes mais caras do hotel, mas foi tirado de sua contemplação pessoal quando as portas do elevador se abriram para dar espaço para uma figura muito conhecida, dessa vida e da passada.

― Aquiles, pelos deuses, o que está acontecendo com você?! ― o tom preocupado de Ulisses quebrou a linha de seus pensamentos e ele encarou a expressão preocupada tão familiar do amigo de eras passadas. ― O que aconteceu na noite passada? Você foi mesmo direto no escritório de Heitor? É tudo que a facção está falando!

― Eu devia suspeitar que Andrej não seria capaz de segurá-lo por muito tempo, meu irmão. ― Aquiles deu uma risada breve, estendendo a mão para um cumprimento caloroso com Ulisses. ― Entre, eu estava mesmo prestes a mandar um mensageiro em sua procura. Temos muitos assuntos a tratar.

― Um mensageiro? O que está acontecendo com você? Está começando a me deixar preocupado. ― apontou Ulisses, entrando na suíte acompanhado de perto de Aquiles, que fechou a porta ao passar e andou até a mesa onde o café da manhã tinha sido servido, ainda quase intocado. ― E enquanto estamos no assunto de preocupação... foi a esposa de Heitor que vi no elevador?

― Por que não come alguma coisa e se senta? Acho que vai precisar de energias para as próximas horas. ― Aquiles pegou o celular que tinha deixado na mesa do café da manhã, checando as mensagens com uma agilidade que só se comparava ao seu manuseio com a espada em uma vida passada. ― Eu vou tomar um banho e trocar de roupas. Andrej informou que meu apartamento está pronto, será melhor conversarmos lá.

― Certo, eu espero. Mas tem muita coisa para esclarecer depois das suas atitudes mais recentes. ― respondeu Ulisses, num suspiro resignado. ― Isso inclui a esposa de Heitor coincidentemente no mesmo hotel em que você está hospedado.

― Como você mesmo disse, não pode só ser uma coincidência?

― Eu não acredito em coincidências, meu amigo. Menos ainda quando você tem agido tão estranho ultimamente. ― respondeu Ulisses, sentando-se à mesa para se servir de café.

― Sempre cauteloso, lhe faz bem. ― adicionou Aquiles antes de se retirar da sala.

Os pensamentos que antes tinham sido tomados pelo bem-estar de Briseis foram logo substituídos por uma tempestade de possibilidades que levavam ao que tinha se tornado o seu principal objetivo naquela nova vida: derrubar Agamenon. Aquiles seguiu para a suíte, para tomar um banho demorado, deixando que a mente pesada por duas eras de lembranças filtrasse os pensamentos que lhes eram úteis sobre o modus operandi de Agamenon, fosse na Grécia Antiga, fosse na moderna Atenas. As eras podiam ter passado, a história se reescrito, os humanos podiam ter evoluído, mas tão certo quanto Aquiles estava de que ainda era um exímio guerreiro, fosse com uma espada, ou com uma arma, estava igualmente certo de que Agamenon era o mesmo regente arrogante e friamente calculista, e a despeito de suas falhas de atuação gritantes, ele ainda era um duro inimigo a ser derrubado, mais ainda naquela era de avançadas tecnologias, burocracias e informações. Por isso, sua chave para a vitória ainda era Ulisses.

Quando Aquiles finalmente deixou a suíte, a cabeça já estava dolorida e pesada do excesso de lembranças e informações, ele não fez mais do que concordar e acenar a cabeça para alguns comentários superficiais de Ulisses. Encontraram Andrej no lobby do hotel e seguiram os três para o carro com o motorista que já os esperava na entrada do prédio.

O trajeto para o novo apartamento de Aquiles não foi longo, e ele se manteve em silêncio o caminho inteiro a despeito dos olhares intensos que estavam prontos a lhe perfurarem o crânio, tanto de Ulisses quanto de Andrej. Foi preciso apenas chegarem até o apartamento na cobertura de um residencial com forte segurança e passarem da soleira da porta para que as perguntas lhe bombardeassem de novo.

― O que aconteceu ontem, Aquiles? Você estava louco, homem?! Foi bater na porta de Heitor para provocar Menelau? Você sabe que ele só precisa de um motivo para convencer Agamenon de que está planejando algo contra ele, o que tinha na cabeça? ― todas as perguntas vieram de Ulisses, que não deu tempo para que Aquiles sequer tirasse o blazer para colocá-lo sobre o encosto do sofá da sala de estar.

― Bom, então vamos ter que ser mais rápidos do que ele, não é mesmo? Por isso preciso de você, meu irmão. ― Aquiles arregaçou as mangas da camisa básica de gola alta, acomodando-se numa poltrona da sala de estar para apreciar de camarote as expressões de confusão trocadas entre Andrej e Ulisses.

― O que quer dizer? ― perguntou Ulisses, enquanto a expressão de Andrej era apenas de expectativa.

― Exatamente o que está pensando.

Ulisses abriu a boca, mas não falou nada. Aquiles conteve a vontade de rir da falta de reação, ele não esperava deixar o amigo de longas eras sem palavras. Mas ao invés de lhe devolver o questionamento, ele olhou para Andrej e apontou para Aquiles.

― O que ele andou bebendo, Andrej? ― perguntou Ulisses. ― O que aconteceu nesses últimos dois dias? Ele bateu a cabeça com força? Você devia tê-lo levado para o hospital para ser avaliado, Andrej.

― Eu não sei, senhor, ele não bebeu, nem usou drogas, nem bateu a cabeça. ― Andrej respondeu, levando a pergunta tão a sério quanto a mudança de Aquiles nos últimos dias.

― O que aconteceu, Aquiles, você vai me explicar?

― Eu quero ver Agamenon cair, Ulisses. E só você pode me ajudar nisso. ― respondeu Aquiles, ao que a resposta automática de Ulisses foi rir, como se tivesse ouvido uma piada.

Mas a risada de Ulisses não foi compartilhada nem por Aquiles, nem por Andrej, e a seriedade da expressão dos outros dois fez com que ele levasse o comentário mais a sério. Ulisses levou a mão ao queixo, coçando a barba num gesto característico que Aquiles bem lembrava da era passada, e se sentou no sofá bem ao lado da poltrona e que Aquiles estava. Ele olhou de novo de um Andrej incerto para um Aquiles determinado e curvou um pouco o tronco, apoiando os cotovelos nas pernas e cruzando os dedos diante do corpo.

― Está mesmo falando sério? Depois de todos esses anos… você vai mesmo trair Agamenon?

― Não há traição onde nunca houve lealdade. ― respondeu Aquiles. ― Nós sabemos que os meios de Agamenon são sujos e perigosos, já passou da hora de intervirmos. E se quer saber o que aconteceu nos últimos dois dias: eu vi o que será da Grécia se ninguém conseguir deter Agamenon. E eu estou determinado a mudar esse futuro.

― É sério… ― o comentário de Ulisses foi uma afirmação. Ele apoiou o queixo na mão, e olhou de novo de Andrej, tomado pela surpresa, para um Aquiles excepcionalmente tranquilo. ― Bom, se alguém pode derrubar Agamenon, certamente é você, Aquiles. O que tem em mente?

Aquela foi a vez de Aquiles dar uma risada descontraída.

― Eu? Não, eu não. Não tenho a capacidade estratégica para uma ação desse tamanho, meu irmão. ― Aquiles fez um curto aceno negativo com a cabeça. ― Mas você sim. Só você foi esperto o suficiente para descobrir como atravessar as muralhas de Tróia. Sei que só você vai saber como tirar o poder de Agamenon.

Ulisses contorceu a expressão numa de confusão de novo por conta da menção a uma Tróia que ele desconhecia, mas a despeito do comentário inusitado, o resultado ainda era o mesmo. Aquiles queria derrubar Agamenon, e aquela determinação estava estampada no rosto dele.

― Agora, só depende de você: está disposto a me acompanhar nessa empreitada contra Agamenon? Sei que o que estou pedindo não é fácil, e está tudo bem se você sair daqui e fingir que nunca ouviu minha proposta.

― E desde quando o que me pede é fácil, Aquiles? ― respondeu Ulisses. ― E não é por isso que fazemos uma boa dupla até hoje?

Aquiles sorriu em resposta, e Ulisses ajustou a postura, encostando-se ao sofá e cruzando as pernas mais confortável.

― Então, por onde começamos?

Final do Capítulo 5