Capítulo 31
"Onde estiver o seu tesouro, aí estará também o seu coração"
Com a cabeça encostada na altiva janela de vidraça do seu palácio, Perla fitava vagamente uma auréola dourada do sol que ofuscava o esplêndido horizonte, agora delicadamente com rosado e laivos dourados. Como um ser, a quem lhe arrancaram um pedaço de alma, e perdida nos pensamentos mais profundos e sólidos, Perla esfregava os braços, rendida á solidão que assomava aquela divisão. Sentia-se novamente uma prisioneira, alguém que necessitava de liberdade para viver. Mas essa liberdade tinha partido há menos de um dia e ela permanecia ali, estática, admirando o futuro crepúsculo. Perla ansiava pela translúcida noite, talvez esta conseguisse amenizar a dor que a consumia impetuosamente, como se lhe rasgasse o coração em leves fiapos e o fizesse sangrar a cada batida descompassada.
Agora entendia o que sua irmã sentia na atual ausência de Silver. Ou até mesmo Elizabeth. Não havia dor maior no mundo que sufocasse tanto, do que ver alguém que tanto amamos partir, fosse em que circunstâncias fosse. Embora aquele pirata sagaz não tivesse morrido, Perla agia como tal, visto ter a certeza absoluta que nunca mais o veria. O que mais custava era o luto pela história que haviam tido.
Com um suspiro, e seduzida pelo mar cintilante, ela sentiu uma enorme curiosidade em saber o que Jack estava fazendo naquele momento, que rumo tomara ou como estaria se sentindo depois da última viagem. Fechando os olhos forçadamente, à medida que sua respiração dilatava, Perla ganhou coragem e deu finalmente costas à janela, como se quisesse virar costas ao mar de pensamentos que a atormentava e, abrindo os olhos de relance para observar aquele quarto, que lhe parecia tão amplo e disperso, Perla soltou um suspiro angustiante, como um pássaro engaiolado.
Um bater suave na porta fez com que seu olhar voltasse naquela direção. Limpando as lágrimas que toldavam seus olhos e tentando suavizar o enorme peso que sentia em seu peito, ela tomou uma pose robusta, dando ordem para entrar. Uma mulher de cabelos castanhos grisalhos entrou sem cerimónia, com um semblante preocupado e carrancudo.
-Eu sei que não sou sua mãe, – começou a mulher enquanto molhava o lábio inferior – nem tão pouco pretendo ocupar o lugar dela. Porém, durante estes anos, cuidei de você como se de uma filha tratasse. Por isso, eu só lhe peço uma única explicação: o porquê daquela despedida? Neste preciso momento, estão todos se questionando se você será ou não a escolha certa para reinar estas terras, visto ter-se envolvido com um pirata, sobretudo tão às claras e debaixo das barbas do povo. – Perla permaneceu em silêncio. – Perla, por Deus, o que aconteceu? Eu já vi uma história começar assim e acabou mal.
Perla arregalou os olhos. Como iria contar a Amélita que a futura rainha de Siracusa tinha se apaixonado por um pirata audaz, e que tinha terminado seu compromisso com Alessandro na altura em que tinha percebido por quem seu coração palpitava? Embora Amélita, e mais metade da população, tivessem presenciado o beijo que dera em Jack, a ama julgava ter sido apenas um beijo de gratidão, ainda que reprovasse tal ato.
-Amélita, eu o amo, essa é a verdade.
-Minha virgem Guadalupe, você se condenou. – a ama colocou a mão sobre seus lábios abertos. – Você se entregou a ele, você manchou o futuro casamento com Alessandro …
-Não, não…. Nunca passamos a base do respeito. – A jovem avançou sobre a ama e alçou-lhe os pulsos com os dedos, em busca de aceitação. – Ah Amélita, se você o conhecesse completamente, veria o bom homem que ele é. Não é por ser pirata que temos de julgar o carater de alguém que não conhecemos. E Alessandro tem conhecimento da nossa curta história.
-Então quer dizer que vocês irão casar na mesma? – a urgência na pergunta fez Perla vacilar. – Perla, você precisa repor sua reputação, não se pode negar a casar. E se Alessandro conhece a história de vocês, ainda melhor.
-Raios, Amélita, pare de me julgar, você não sabe metade do que se passou. – A jovem largou bruscamente os pulsos da ama, que ficou absorta com a atitude rude de Perla. – Pare de colocar pressão sobre mim, toda a viagem vivi sobre pressão. Neste momento eu preciso respirar, senão vou sufocar.
Amélita permaneceu em silêncio, pensando nas palavras de Perla, enquanto analisava a espada e as roupas que ela trajava. Roupas de pirata. Desde sua chegada que Perla não ousara tirar aquele traje, muito menos lhe passara tal ideia pela cabeça. Era como se ao envergá-las a mantivesse presa ao seu passado às aventuras pelas quais passou corajosamente, ou como se o cheiro de Jack ainda permanecesse entranhado nelas, das vezes que ambos se tinham tocado ou beijado. Esse pensamento fez Perla sentir um calafrio e fechar novamente os olhos para morder o lábio inferior, como se uma sensação de vazio lhe percorresse o corpo todo.
Apesar do estado lastimável que ela apresentava e das várias cicatrizes marcadas em cada parte do rosto, Amélita não ousou mencioná-las. Com um sorriso recatado, recordou o dia em que Hieron trouxera Deanne Bonny, uma mulher extremamente bela e que reafirmava bem a suas poses, para Siracusa. Como ambas eram parecidas, acrescentou Amélita em seus pensamentos, não só de aparência, que se encontrava agora tisnada pelo sol e pelos salpicos do mar, mas também na personalidade forte. Aquele carácter vincado de orgulho e firmeza, como se tivesse sempre o controle da situação e não demonstrasse o quanto a derrota tinha um sabor amargo, embora a palavra derrota fosse muito relativa nesse aspeto. Sim, Perla tinha mudado. Já não era uma adolescente insegura, e sim, uma mulher astuta.
-Eu sinto que você está aqui, mas sua mente e coração estão longe de Siracusa. – Amélita se aproximou dela, acariciando o rosto da jovem. – Essa viagem transformou-a de dentro para fora. Não são só suas feridas que a tornam diferente, mas sua postura desprovida de sentimentos.
-Está coberta de razão!
-Como futura ocupante do trono de Siracusa, deveria esquecer o passado definitivamente. – Tentou amenizar o ambiente tenso que tinha criado, escolhendo com cautela a sentença a pronunciar: - Perla, querida, já não há volta a dar…
-Impossível esquecer o passado, depois de tudo o que aconteceu – rebateu num tom seco, como se cuspisse as palavras. – Esta viagem me marcou em todos os sentidos.
-Marcou a todos, mas você sempre foi forte, corajosa, herdou isso de sua mãe. Tenho certeza que vai ultrapassar isso rapidamente – Perla soltou um meio sorriso. – Já sua irmã continua frágil e sem falar nada. O que aconteceu realmente com ela? - O corpo de Perla enrijeceu, e fitou a ama firmemente, sem saber o que responder. – Você prometeu que me contaria, quando voltasse…
-Eu sei que prometi, mas é demasiado cedo para tocar nesse assunto – retrucou ríspida, ao cruzar os braços.
-E quando pensa me contar sobre a história de sua irmã? Quando o filho dela nascer? – A ama parecia cada vez mais desorientada e numa voz baixa continuou: – Pensava que eu não ia notar? Quem é o pai?
-Lord… -ela fez uma pausa e lamentou ter de inventar uma história para contar á sua ama. – Silver! – Amélita alarmou-se, mas Perla prosseguiu: - Ele foi o grande causador de todo este sofrimento, Amélita. – A ama sentiu suas pernas vacilarem e aos apalpões, sentou-se na cama. – Eu vou lhe contar tudo, além de precisar saber da história, você vai me entender e perceber tudo o que nos marcou…
Perla sentou-se ao lado de Amélita e relatou toda a situação que envolvia sua irmã. Desde seu rapto até a procura da mão de Midas, e a grande batalha que houve nos mares. Amélita apenas mantinha seus olhos esbugalhados e seus lábios espremidos numa linha tensa, à medida que sentia seu coração pulsar como um cavalo selvagem. Á medida que ia relatando, um peso ia se dissipando de seu peito, como se algo descomprimisse.
-Como pôde… Seu pai recebeu aquele vagabundo desonesto de braços aberto e ele arquiteta um plano tão maquiavélico como esse? – Ergueu-se subitamente para observar uma Perla cansada.
Agora percebia todo o sofrimento estampado na cara da sua pequena. Amélita aproximou-se de Perla e depositou suavemente as palmas da sua mão sob seu queixo baixo.
-Minha filha, eu lamento imenso tudo o que passaram, vocês não mereciam. Seu pai não merecia…
-Apesar de Estella não me falar, ela vai precisar do nosso apoio. Ela vai precisar que não a recriminem, Amélita. Eu conto com você para a ajudar nesta fase, especialmente porque a paternidade da criança terá de se manter em sigilo. - Voltando os seus pensamentos para Estella, sua preocupação inicial, Amélita soltou um suspiro, anuindo cuidadosamente, despertando a atenção de Perla.
-Estella terá sempre o meu apoio – retrucou Amélita, vendo nos lábios de Perla aflorar um sorriso amargo, o que alarmou a ama.
-Obrigada. – murmurou num som quase inaudível e, numa crispada de lábios, dirigiu-se até á porta.
-Onde vai, minha querida? – indagou Amélita, com tom atencioso e não obtendo resposta, avançou: - Só lhe peço que chegue antes de o anoitecer. – Perla deteve-se e franziu o sobrolho. – A Delegação das Doze Cidades convocou uma reunião urgente.
-Lá estarei - respondeu com um sorriso contrafeito, desaparecendo pela porta.
Na cavalariça, onde os raios de sol caíam entre algumas fendas do telhado de madeira, fazendo brilhar os anéis metálicos dos arreios, permanecia um garanhão negro. Ao ver Perla se aproximar, o animal arranhou o chão com os cascos, enquanto suas narinas estremeciam de agitação. Com uma suave carícia no seu focinho, ele acalmou-se, deixando-a montá-lo sem demora. Com um urro estridente, ela saiu a galope, percorrendo os extensos jardins verdes do palácio, sem olhar para trás, fixa no rumo que queria percorrer. Ao atravessar os portões, assustando os guardas que estavam completamente desprevenidos da sua saída, Perla direcionou o seu cavalo para um pequeno e plano penhasco, que ficava a pouca distância do palácio e da cidade. Dando leves estocadas no dorso do cavalo, para que este acelerasse um pouco mais, ela sentia os seus olhos arderem, à medida que seus pulmões sustentavam um grito de fúria e desespero que ela ansiava desesperadamente soltar.
Quando finalmente chegou ao seu destino, Perla deteve o cavalo, saltando sem hesitar para fora dele. Acariciou-o novamente no focinho e este soube que teria de esperar por ela, como sempre fazia. Com um passo prudente, ela aproximou-se de um portão de ferro entreaberto. Era o cemitério de seus ancestrais, onde reis, como Rei Dimas e Proteus, jaziam. Sim, toda a sua família descansava ali, até mesmo sua mãe, apesar de ter sido considerada uma traidora, devido à causa que a levara a tentar fugir de Siracusa. Em consideração às suas filhas, o rei ordenou que a sepultassem ali, embora alguns conselheiros achassem um insulto e afronta ao grandes reis e rainhas compartilharem a mesma terra com uma pirata.
Receosa, Perla colocou a mão no portão e o mais silenciosamente possível, para não quebrar a atmosfera envolvente do ímpeto do mar sobre as rochas, abriu o resto, avançando. Os túmulos e sepulturas níveas impuseram-se bem diante de seus olhos marejados, que procuravam a campa mais recente: a do seu pai.
-Lamento imenso, meu pai, lamento imenso. – Sem força nas pernas, a jovem tombou seus joelhos no gramado e tocou na mármore fria da campa. – Não era para ter sido assim. Seu eu pudesse voltar atrás, mudaria nossa história, teria feito tudo diferente, só para o manter vivo. Você não merecia…
Ficou ali por um bom tempo somente de olhos fechados a desabafar diante daquele túmulo. Sentia um enorme peso no coração, mas infelizmente não podia remediar aquela dor. Num pulo,inspirou, limpou as lágrimas e olhou à sua volta.
Aquele lugar calmo, embargado pelo som das ondas do mar, que se encontrava a uma distância moderada, e das árvores que pareciam dançar com o toque suave do vento, fez Perla sentir uma serenidade dentro dela, á medida que se movia. Mas, ao deparar-se com a presença de um homem de estatura baixa, deteve-se. O homem permanecia agachado e de cabeça baixa, talvez de olhos fechados, enquanto proferia algumas palavras inaudíveis, perdidas no vento. Trémula e com a mão sempre no cabo da espada, Perla retomou seu passo e penetrou mais no cemitério, com o intuito de descobrir quem era o homem. Quase a chegar lá, Perla podia ler ao longe as letras a dourado, gravadas na lápide de mármore: "Aqui jaz Rainha Deanne Bonny, nascida a 13 de Julho de 1721, falecida a 31 de Março de 1741" e em baixo, outra frase: "Onde estiver o seu tesouro, aí estará também o seu coração".
-Um caça túmulos? – aclamou Perla com a espada direcionada no pescoço do homem que estava ainda agachado, de costas para ela.
-Apenas um homem arrependido. – Ele ergueu-se vagarosamente. Perla reconhecer as velhas formas do primeiro imediato do Pérola Negra. – Nada como me redimir perante o túmulo da mulher que tanto amei.
-Sr. Gibbs, eu pensei que tivesse embarcado no Pérola Negra junto do… - ela hesitou, enquanto guardava a espada, mas logo relanceou o seu olhar para Gibbs.
-Um pacto e a infelicidade de uma princesa me prenderam nesta cidade – proferiu Gibbs, pensando nas palavras exatas a usar. – Você sabe, uma boa história só tem um real valor, quando se conta tudo ao pormenor e da maneira correta. – Ao franzir o cenho, deixou Gibbs continuar: – Eu omiti um facto sobre a minha história com sua mãe, devido a um pacto que realizei com ela, à vinte anos atrás. Algo que eu devia ter te contado desde o início.
O coração dela acelerou desnecessariamente, à medida que Gibbs ganhava forças para proferir uma verdade que iria mudar a vida de Perla. Um pacto de vinte e um anos ia ser desvendado mesmo em frente do túmulo de uma das pessoas mais importantes da vida de ambos. Ainda temente, ele suspirou, baixando suas defesas sobre o olhar pedinte de Perla, que permanecia inerte, à espera de algo que mal sabia.
-Embora soubesse que sua mãe nunca poderia ser minha, eu arrisquei. Fiz tudo o que pude por ela e Deanne me presenteou com a coisa mais linda deste mundo – a voz do primeiro imediato saia embargada. – Uma linda menina de olhos esmeralda... – O coração dela pareceu parar diante da relevação. – Você, Perla!
Perla engoliu em seco, arregalando os olhos o mais que pôde. Não conseguia acreditar no que escutava e quis contestar, mas achou prudente deixá-lo prosseguir:
-O rei nunca soube que essa menina era filha de um simples guarda da marinha. Deanne nunca ousou contar-lhe a verdade, fazendo um pacto comigo, para o bem da pequena princesa, que nunca, em circunstância alguma, revelaríamos esse segredo. – As lágrimas eram notórias no rosto de Gibbs, que fitava vagamente a lápide de mármore de Deanne. – Eu tive de aprender a ver você crescer bem diante dos meus olhos sem nunca poder te tocar ou pronunciar uma única palavra á minha filha. Tive de sair de Siracusa sem ao menos poder contar-te a verdade ou levar-te comigo. – Ele virou o olhar lentamente para uma Perla chocada, desprovida de sentimentos.
-Eu não posso crer, vocês não tinham o direito de me ocultar isso. Sr Gibbs, a minha história poderia ter sido tão diferente… – murmurou ela ao levar as mãos às latejantes têmporas, tentando assimilar a novidade que era tão fresca e insana para si. – Como foi capaz de me deixar, mesmo após a morte da minha mãe…
-Que tipo de vida você levaria comigo, na altura em que eu sai desta cidade? – com o semblante sério, continuou: - Não pense que não me custou deixá-la, mas eu sabia que aqui você seria bem tratada e teria um lar, coisa que na altura eu não te poderia oferecer, além de que revelar a verdade perante o rei, poderia colocá-la em perigo.
-Uma vida menos frustrante. Eu não nasci para ser rainha, eu nasci para marejar, sempre fui infeliz nestas terras, graças a esse maldito segredo. – Rosnou, chocalhando a cabeça, ainda incrédula e com uma raiva acrescente preencher-lhe o sistema.
-Cometi um erro, admito, mas arrependo-me, pois só agora é que vi o quanto você é infeliz – e num tom firme concluiu: - Espero que me perdoe um dia.
Apesar da raiva começar a borbulhar em sua mente e de seu sangue ferver nas veias, Perla sentiu-se incapaz de discutir com aquele homem, que tão abertamente expunha seu passado, em que ela estava envolvida. Ela era sua filha. Filha de piratas, embora na altura em que abandonou a cidade, Gibbs fosse um mero guarda da marinha. Com um auto controle inexplicável, e deixando que o barulho do mar controlasse o ambiente de tensão, ela indagou:
-Por que voltou? Se eu estaria bem aqui, por que resolveu quebrar seu pacto com minha mãe?
-Eu não poderia voltar a cometer o mesmo erro duas vezes, sobretudo em prol da sua felicidade. – balbuciou o primeiro imediato ao crispar os lábios de tensão.
-Minha felicidade? Como assim?
-Nesta jornada, vi você se tornar numa verdadeira pirata, apaixonou-se pela liberdade que o mar lhe proporcionava. Vi como você era livre, como amava aquela vida, tal e qual como sua mãe. – Ele a fitou com carinho, o que desarmou logo Perla, que se preparava para atacar noutra pergunta. – Agora percebo que sua vida é no mar e não em terra. E eu sabia que, se você soubesse a verdade, isso quebraria seus laços com este reino e a tornaria livre de tomar o rumo que quisesse, sem obrigações. Livre para voltar ao Pérola Negra – frisou ele por fim, ao analisar atentamente a reação alarmante de Perla.
-Isso é tentador – murmurou com um meio sorriso -, mas eu não posso simplesmente abandonar a minha vida aqui. Se eu deixasse este reino, minha irmã não seria capaz de governá-lo sozinha...
-Não subestime sua irmã, ela deu provas de ser uma garota sensata e é mais forte do que você pensa, além do mais, ela poderia contar com Fitzwilliam e Arabella. – ela ia contestar, mas ele antecipou-se: - Estella vai entender, caso você resolvesse abraçar o mesmo caminho de sua mãe. – Perla permanecia agora pensativa. – E sua mãe iria se orgulhar disso.
-Eu preciso pensar seriamente no assunto. – E vendo o sol poente derramar os seus raios nas letras douradas onde dizia: "Onde estiver o seu tesouro, aí estará também o seu coração", proferiu ao olhá-lo nos olhos azuis: - Encontre-me á noite nos portões do palácio, eu lhe direi a resposta.
-Está certo, princesa…
-Então até logo…- fez uma pausa breve, e num murmúrio completou: - Pai. – e logo saiu a correr sem mesmo olhar para trás.
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No costado de uma ilha deserta, dezenas de botes encontravam-se lá aportados, à espera que o destemido Holandês Voador aparecesse pela espessa névoa que recobria o ambiente à sua volta, para os conduzir até á sua viagem final: o descanso eterno. Quando as águas oscilaram e, por entre a neblina cerrada, um casco de navio apareceu, os botes avançaram, como se alguém os empurrasse em direcção ao Holandês Voador.
Will, que permanecia tranquilo na ponte de controle, agarrado às canas do leme, sentiu a presença de alguém atrás de si. Com a testa franzida e a mão no cabo da espada, Will virou-se repentinamente, mas logo em suas feições apoderou-se uma expressão de surpresa, apertando ainda mais o cabo. Com um sorriso inconfundível e um andar peculiarmente elegante, o homem aproximou-se, para desconforto de Will.
-Sabia que mais tarde ou mais cedo receberia a sua ilustre visita.
-Não é emocionante? – O homem gesticulou suas mãos no ar. – Vocês conseguiram me surpreender ao adquirirem o reverso da fonte, e agora aqui estou eu. – fez uma vénia teatral.
-Aposto que veio até aqui para se vingar. – Will puxou um pouco a espada para fora da bainha, esperando um ataque surpresa de Silver, mas este manteve-se regular.
-Seria muito chato lutar toda a eternidade, visto que você não morre, e eu já estar morto. – Ele observou a si mesmo, como se quisesse ter a certeza que estava realmente morto. – Além do mais, a última vez que essa luta aconteceu, estávamos em pé de igualdade.
-Se não veio por vingança, então o que está aqui a fazer no Holandês Voador?
-Calma, Capitão Turner, eu só vim aqui agradecer o facto de me terem separado da minha mulher e filho. – aquelas palavras saíram lhe entre dentes, com uma amargura notória a quem o escutava.
-Mulher e filho? - Will largando o cabo da espada, surpreso. – Desde quando você liga para laços familiares? – inquiriu ao cruzar os braços.
-Desde que me apaixonei pela única mulher que acalmou minha natureza – ainda rosnando entre dentes, Silver olhou para além da amurada, não vendo absolutamente nada a não ser uma densa névoa. – Não é fácil admitir que um homem como eu possa ter mudado, mas é verdade. – Ele contraiu as mãos com força, o que deu a perceber o tumulto em que sua mente se encontrava, mas logo descontraiu-as e fitou Will.
-Nem depois de você estar morto, eu consigo acreditar nessa mudança – objetivou Will, enquanto Silver rodava os olhos, e num tom verdadeiro e calmo, concluiu: - Eu também fui afastado da minha mulher e filho…
-Mas você ainda tem esperança de vê-los, já eu não – berrou Silver, para exaltação de Bill.
Este antecipou-se em passos largos em direção a Silver, mas logo Will o deteve com o braço, e num breve aceno de cabeça, mostrou que estava tudo bem. Com um andar arrastado e azedo, Silver aproximou-se austeramente de Will, ficando cara a cara, apontando-lhe o dedo indicador, em forma de recriminação.
-De bom grado que ocuparia o seu lugar. Venderia a alma à Calypso se fosse possível, só para ver a minha família uma única vez.
A densa névoa elevou-se repentinamente, para alarme de Silver, Will e Bill, que olhavam ao seu redor, receoso. O céu continuava cinzento e o mar, agora tumultuoso, desfazia-se em pequenas ondas contra o casco do Holandês Voador, oscilando-o tremendamente. No convés, uma espécie de pequeno redemoinho formou-se, o que fez as velas tremularem com aquela brisa fora do normal. A tripulação fitava fixamente ao seu redor, assustados, vendo aquela brisa de ar turbulenta esculpir um belo e jovem corpo feminino.
-Ouvi alguém proferir claramente que tinha uma alma para me vender – a voz jugulada da mulher fez Silver estremecer, encarando-a firmemente, até Calypso soltar um sorriso cínico ao acariciar um caranguejo. – Quem é o jovem aventureiro que se atreve a tal mérito?
-Eu. – Silver deu dois passos em frente, sendo seguido pelo olhar apreensivo de Will. – Como disse, de bom grado que ficaria a cargo do Holandês Voador, depois de Will concluir sua missão, caso isso me fizesse ver o meu filho. – Will e Bill miraram-se esperançosos.
-E o que lhe faz crer que eu soltaria Will, depois de uma década ter passado? – Ela caminhou descontraidamente até ele, com um largo sorriso preso nos lábios.
-Por que não?
-Você acha que sua alma é suficientemente valiosa para libertar Will do destino que lhe foi traçado, só por que você anseia ver sua família? – Ela soltou uma risada, para irritação de Silver, que se conteve. – Eu almejo coisas grandiosas, meu caro, não um pedaço de alma moribunda como a sua – Ela achegou-se ao ouvido dele, murmurando: - Tinha um ótimo futuro como capitão, mas o amor estranhamente o tornou fraco e medíocre. – E num sussurro áspero, continuou: - Amor, o mal comum de todos os homens à face da terra. Você pagou caro por tentar conciliar as duas coisas, terrivelmente impossíveis de se aliarem: o amor e a desumanidade. Uma pena. – Focou melhor sua visão em Silver, com uma expressão de desfaçatez -Tão lindo, mas tão mau… - e afastou-se ligeiramente, acariciando-lhe o rosto, provocante. – Lamento, mas não há negociações.
-Não suporto que debochem comigo – murmurou ao apertar novamente as mãos com força.
-Eu não estou debochando, meu caro, estou apenas a mostrar a realidade dos factos que fizeram de você mera fumaça.
Silver viu-a voltar em direcção á amurada e, nos longos segundos que a viu afastar-se, seu olhar vagou pelas tonalidades cinzentas do céu, pensando numa outra hipóteses para convencer a Deusa a tomar o lugar de Will. Fechou os olhos e passou a mão pelos cabelos negros, implorando aos céus que surgisse algo em sua mente que a pudesse mudar de ideia. Até que lhe surgiu em mente a única esperança, algo que poderia usar para persuadi-la, e, ao mesmo tempo usar a seu favor, caso achasse esse artefacto perdido algures neste planeta. Com isso poderia muito bem mudar o rumo da história, ou até mesmo a sua, e a sorte da sua pequena família. Com um livre brilhar de improbidade, ele abriu os olhos para visualizar a Deusa, que estava prestes a desaparecer no mar…
-Espere. – Ele estendeu a mão, como se fosse possível agarrá-la, e Calypso inclinou um pouco sua cabeça. – Já que gosta tanto de barganhas, eu tenho uma ótima para você – e num tom desafiador, continuou: - Sei onde se encontra a Ampulheta Dourada, ou as "Areias do Tempo", se preferir chamar.
-Afinal não é uma lenda do mar, como Barbossa pensava – murmurou Bill, coçando o queixo.
-O que te leva a crer que eu quero isso? – indagou a Calypso, com uma leve entoação de interesse mal disfarçada na voz.
-É uma relíquia antiga e muito valiosa, tal como a Mão de Midas e outros artefactos de grande valor perdidos por esses continentes e oceanos, criado por grandes Deuses e escondidos pelos mesmos, para não criar o caos e a desordem entre os humanos. – Mostrando-se impassível á expressão da deusa, continuou: - Além de que, quem a possuir, terá o poder de viajar no tempo, sem se preocupar com um regresso temporalizado. – Will não compreendia o brilho irredutível nos olhos escuros de Silver. – É uma boa oferta, você não acha? – esticou a mão e concluiu sagaz: - Temos acordo?
A Deusa fitou-o seriamente, ainda de braços cruzados ao peito, tentada a apertar a mão de Silver. Ela lançou o seu olhar intrigado ao confiante Will, que via o seu futuro ser negociado, mesmo que de forma indirecta, naquele convés. Com um rodopiar de olhos e um bufar impaciente, a Deusa esticou a mão, apertando-a para validar o acordo, mas, logo apertou-a com força e mergulhou o seu olhar fulminante em Silver, que sorriu austero pelo canto da boca.
-Espero que não pense em me trapacear, caro Silver. Não queira provar a ira de uma deusa embusteada. – Ele apenas assentiu com a cabeça, ao formar um sorriso mordaz. – A troca de capitães será feita quando a missão de Will terminar, e você ocupará imediatamente o lugar dele. – Calypso largou bruscamente a mão dele. – E aí poderá procurar o tal artefacto para me pagar a divida, já que sua alma me pertence. – Ela se virou, então, para voltar para a amurada e entregar-se ao mar, mas não sem antes relembrar: – Não se esqueçam, até daqui a nove anos, meus caros.
Calypso transpôs a amurada em direção ao mar, deixando um rasto de areia molhada por onde havia passado. Silver cruzou os braços sobre o peito, agora com uma expressão satisfeita, e reparou que a cinzenta neblina já havia se dissipado por completo. Respirou fundo. Apesar de estar morto, sentia-se agora cheio de vida. Finalmente tinha um objetivo por que lutar, algo que o poderia fazer reviver de novo. Bastava só se apoderar daquele artefacto histórico, encontrar o velho livro dos segredos e voltar ao passado, como se rebobinasse toda a sua vida até ao ponto que ele quisesse, onde não haveria nenhuma Deusa que o viesse cobrar o que quer que fosse. Tudo o que ele queria era Estella, seu maior tesouro, e estava disposto a tudo para a ter, nem que para isso tivesse de recuar vários anos atrás, só para poder reconquistá-la novamente e fazer tudo diferente. Sim, o seu plano inicial, desde que cruzara a triste sina da morte até chegar ao Holandês Voador, estava a correr às mil maravilhas. Will aproximou-se vagarosamente do ex-capitão, tomando a liberdade de lhe colocar a mão no ombro, para lhe chamar a atenção. Silver olhou sobre o ombro.
-Acha isso prudente? – realçou sem o menor rodeio, julgando saber o que ia na cabeça de Silver.
-Não pense que lá por ter salvo sua vida, mesmo que inconsequentemente, eu quero travar algum tipo de amizade com vocês – rosnou, embora divertido. – Não preciso de seus conselhos quando eu sei que estou a traçar, em minha cabeça, o plano mais que perfeito para salvar todo o mundo do destino que cruzou a cada um. – E tirando a mão de Will com as pontas dos dedos, encarou-o com uma falsa modéstia. – E não preciso que me agradeça, pois não irei ocupar o lugar de herói nas próximas histórias. Adoro ser o antagonista. – Retomou então seu passo, resmungando: – Agora, vamos pôr este navio a mexer, senhores, temos muito trabalho durante estes nove anos. – E se dirigiu até á escotilha, onde desapareceu.
-Quem ele pensa que é? O capitão? – exasperou Bill, vendo Will quieto, com um sorriso ingénuo nos lábios.
-Deixe-o pai. Não é fácil enganar uma Deusa como ele está fazendo. – Num sussurro, manifestou-se: - Ele parece firme no plano que está a orquestrar, não se esqueça que ele passou demasiado tempo a estudar o mapa. Silver será a nossa última esperança para nos livrar deste tormento.
-Nem sempre é bom mexer no passado e trazer monstros que estão bem no fundo do mar, se é que me entende.
-Teremos de estudar bem essa possibilidade. Também teremos nove anos para lhe dar o beneficio da dúvida e ver no que isso irá dar.
-E será que ele irá esperar os nove anos para atuar? – Ambos se fitaram, ainda atordoados com a inforamção.
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Pela penumbra de um corredor desguarnecido, as passadas ocas eram ouvidas por toda a sua extremidade. Depois de um longo banho e de trajar umas calças negras justas, onde repousava sua espada introduzida na bainha, uma camisa branca de mangas largas, encimada por uma jaqueta igualmente negra, Perla sentia-se finalmente preparada para se apresentar na ilustre presença da Delegação das Doze Cidades. Com passos cada vez mais incertos e sua cabeça a explodir, ela recordava o tormento que iria passar quando atravessasse a porta da Sala de reuniões. Supostamente aqueles indivíduos, desconhecidos para ela, iriam exigir que Perla lhes contasse todas as aventuras e experiências vivias em alto mar, na companhia de piratas, e iriam escutá-la com seus narizes torcidos, e alguma repugnância expressada nos rostos, típico daquela gente. E, só depois de escutarem o relato, iriam marcar a data da sua coroação. Seu coração parou ao pensar nisso, lembrando-se da conversa que tivera com Sr. Gibbs, ou melhor, seu verdadeiro pai.
Perla não era herdeira daquele trono por direito, ela sentia-se apenas uma bastarda, nascida de uma relação extraconjugal de sua mãe com um guarda. Estava tudo tão fresco para ela, que Perla nem conseguira ainda assimilar as coisas tão bem quanto ela queria. Seus breves pensamentos foram interrompidos quando viu a porta cada vez mais perto. Ao chegar, colocou a mão na maçaneta, mas antes de a rodar, soltou um suspiro profundo e, quando se sentiu preparada para seguir o seu destino, algo chamar a atenção da jovem.
-Perla, preciso falar com você… - a jovem reteve-se e rodopiou num breve movimento para trás, de forma a fitar uma Estella determinada, que a interpelou mesmo antes de abrir a porta.
-Agora não. – Cortou-a, com receio de mais um rol de provocações sobre a viagem. – Temos a reunião com a Delegação e não os pudemos fazer esperar.
-É urgente. – A voz de Alessandro fez soar atrás de Estella, acabando por flanquear a princesa mais nova.
Perla tentou ler as feições de Alex, todavia elas mantiveram-se inalteráveis. Seu olhar recaiu numa Estella mais pacifica, mais estável. Não parecia mais a mesma que fizera a viagem com ela.
-Após esfriar a cabeça e de vários conselhos - Firmou Alessandro de viés, com um sorriso discreto. – É que consegui perceber o quão injusta estava a ser com você. – Voltou a fitar uma Perla confusa. – Desde pequena que você sempre fez os possíveis e os impossíveis para me proteger. E eu deixei que a paixão por um homem me cegasse e apagasse tudo o que você fez por mim. – Suas sobrancelhas formaram uma linha tensa. - Eu não posso te culpar por algo que foi o destino a traçar. E agora, eu sentir-me-ia inteiramente culpada se você não seguisse as pegadas de nossa mãe e fosse ser feliz juntamente com o homem que conheceu.
-Como assim? – Indagou num fio de voz.
-Eu falei com Alessandro e chegamos a uma conclusão. – Ambos voltaram a entreolhar-se, cúmplices. – Eu não tenho mais nada a perder, eu estou destinada a estas terras, mas você…você tem toda uma vida para ser feliz. – Estella aproximou-se da jovem hirta, absorta. – Graças a Deus que nosso pai nunca nos diferenciou, sempre tivemos os mesmos ensinamentos. – Perla passou suas mãos pelo rosto, desordenada. – Nessa linha de pensamentos a conclusão a que chegamos é que eu ficarei no seu lugar e casar-me-ei com Alessandro…
-O quê? Não…
-Não querendo passar por cima de suas ordens, mas entre nós já decidimos. Você fez vários sacrifícios. Está na hora de ser feliz, ser egoísta e pensar somente em você. Eu estou mais que apta para governar com a mesma mestria que você governaria... -Estella agarrou as mãos da irmã, numa súplica.
-Estella, eu confio em você, mas esse plano é de loucos….
-Perla, este método será também uma forma de eu ter um casamento convencional com o Alessandro e esconder a paternidade desta criança.
-Eu assumiria a sua paternidade e as protegerei de todos. – Afincou Alessandro colocando a mão sobre o ombro de Perla.
-Vocês estão loucos… Estella, você está percebendo o que me está pedindo? Para eu ser feliz em cima da sua tristeza.
-Minha irmã, Alessandro foi um pilar nesta viagem de regresso, fez-me ver tudo com clareza. – Mordeu o lábio. – Ninguém irá me trazer Silver de volta, e eu tenho de seguir em frente e proteger esta criança, pois ela tem o sangue de um renegado do mar. Estou colocando os meus interesses acima de tudo, somente por ela. – E passou suavemente sua mão pelo ventre.
-Se vocês estão certos disso, eu aceito, até porque o trono é seu por direito. – murmurou num fio de voz, levada pela emoção. – Hieron não era meu pai, mas sim o sr. Gibbs. – Estella pestanejou várias vezes, incrédula. – Ele contou-me hoje, aliás ele ficou por terra à minha espera…
-Então vá, não hesite. – sem hesitar, Estella abraçou a irmã com toda a sua afeição. – E lembre-se, independentemente de Hieron ser ou não seu pai, isso não muda nada entre nós.
-Obrigada, obrigada…- retribuiu o gesto com maior fervor.
-Meninas, não querendo interromper, mas temos uma reunião para comparecer. – Alessandro chamou as duas à atenção.
As duas fizeram um meneio de cabeça sem desvincularem os olhares. Foi então que Perla se volteou para a porta e a abriu com um novo propósito em mente. Sentia-se mais leve, capaz de enfrentar uma nova batalha sem medo de cair vencida. Do outro lado foram recebidos por um guarda que os guiou até a uma espaçosa sala, com uma enorme mesa que ocupava o centro dessa mesma divisão. À frente dessa mesa, já ocupada pelos membros constituintes da Delegação das Doze Cidades, havia umas poltronas igualmente ocupadas pelo casal Dalton e outras vazias à espera dos recém-chegados.
À medida que adentravam na sala, todos os olhares se centravam em Perla e então expressões de pura censura se formavam em seus rostos, principalmente por a princesa não trajar as suas vestes cerimoniais para aquele encontro formal. Estella e Alessandro ocuparam os seus lugares nas poltronas, à medida que Perla se detinha no centro da sala de frente para aquelas pessoas que mantinham suas poses firmes e precisas.
-Mediante as leis rigorosas deste país, tecidas pelos vossos antepassados, eu declaro a sessão aberta, para apurar os factos sobre a vossa ausência, tendo assim, vossa alteza de prestar esclarecimento diante da Delegação – confrontou um homem negro, de turbante vermelho e de braços cruzados sobre o peito. – Jura dizer a verdade e somente a verdade diante destas testemunhas, sobre pena de punição?
-Sim. – Repostou, seca.
-Segundo nos constou, vossa alteza esteve em contacto com piratas, estou certo? – iniciou, então, o interrogatório de forma direta e concisa.
-Afirmam isso como se lidar com piratas fosse uma praga – retorquiu, ríspida. – Mas sim, foram eles que me ajudaram a resgatar a minha irmã.
-Pediram algo em troca? – a questão, vinda de uma mulher loira, com suas expressões cravadas pela arrogância, fez Perla perceber a dualidade e malicia da pergunta.
-Se querem saber se mantenho minha pureza intacta, devo dizer que sim. Nenhum pirata ousou me tocar durante a viagem. – Ela elevou o canto do lábio ao ver as fases incomodadas daquelas pessoas. – Aliás, não sei qual é o vosso conceito de pirataria, vossas excelências, mas devo vos dizer que nem todos os piratas são cruéis e extremamente interesseiros. Piratas têm coração, lutam pela honra e liberdade, que tanto prezam…
-E podemos ir diretos ao assunto? – intercalou um homem mais magricela, pigarreando incomodado. – O que aconteceu durante a viagem?
-Todas as viagens têm os seus percalços, mas conseguimos o objeto que os patifes queriam em troca.
-E quem foram os patifes que fizeram isso e a troco que dê?
Perla manteve-se em silêncio por alguns momentos, sem saber o que responder. Fitou Estela de soslaio, que fez um aceno de cabeça, em concordância. Perla chocalhou a cabeça de resposta e baixou os olhos. Não iria dizer nada, não queria que sua irmã sofresse. Ao ver a irmã em negação, Estella ergueu-se e decidida, começou:
-Lord Silver. – Perla cerrou os olhos, vencida. - Foi ele que orquestrou tudo para ficar com o reino e com a Mão de Midas. No dia de casamento de Perla, ele raptou-me e colocou a minha irmã entre a espada e a parede, para me salvar, em troca desse tesouro inigualável. No percurso, mandou um intermediário para matar o nosso pai e aí começar o seu intento. Todavia, ele não concluiu porque acabou por morrer na troca entre o artefacto e eu, minha irmã o matou para me salvar.
-O que está fazendo? – indagou Alessandro num sopro, ao que Esttela arqueou-se e replicou:
-Não posso negar a verdade. – e voltou-se novamente para a Delegação. – Foi ela, juntamente com os piratas que a acompanhavam e Alessandro que me salvaram. Agora, não entendo este interrogatório. Trata-se de descobrir o que realmente se passou ou se minha irmã teve ou não envolvimento com piratas? Porque se formos a ver, todos nós tivemos com piratas e não nos tornamos impuros para reinar o que quer que seja, aliás, foram eles que nos salvaram, como Perla afirmou.
Perla manteve-se hirta, continuando a fitar a irmã. Como ela conseguia ser tão fria após o que havia se passado? Como conseguia denunciar o homem que amava com a maior das naturalidades? Sorriu de esguelha ao perceber que a sua irmã era na realidade uma força da natureza mascarada naquele corpo frágil. Ela também crescera durante a viagem e sabia que tudo o que fazia naquele momento era proteger o filho. Após uns minutos de silêncio, no qual a delegação parecia apenas falar com o olhar, uma voz possante concluiu:
-Penso que estamos esclarecidos. Tudo não passou de um atentado contra o reino de Siracusa e seus regentes. – Ambos se fitaram para saber se mais alguém queria expor alguma dúvida, mas ninguém se pronunciou. – Bom, agora que tudo está resolvido, o cargo ocupado pelo excelentíssimo Fitzwilliam P. Dalton Terceiro passará para a verdadeira herdeira do trono…
-Eu o reclino. – Todos se silenciaram bruscamente, com olhos arregalados e expressões ambíguas. – Eu renuncio o meu cargo! – proferiu com toda a firmeza, o que os deixou ainda mais confusos. – Não sou filha legitima de Hieron. – A Delegação ficou atordoada com a novidade, o que lhe deu mais força para continuar: – Eu sou filha de um ex-guarda Real. Um bom homem que nunca renunciou o seu amor pela sua Rainha Pirata, e que a viu ser morta sem dó nem piedade, como uma cadela vadia, em plena praça pública, no dia em que ela ia reaver sua liberdade junto do seu verdadeiro amor . – As lágrimas suspendiam-se nos olhos marejados. – A verdadeira herdeira é Estella, cuja seu reinado será igualmente como o meu seria, pois tivemos os mesmos ensinamentos. Além de que ela poderá contar com Fitzwilliam para a auxiliar nos primeiros tempos.
Com toda a educação, Fitzwilliam levantou-se e olhou para Arabella, que lhe sorriu ao fazer um aceno concordante com a cabeça. Já tinha se apaixonado por aquela cidade, pelos jardins, e pelo salgado aroma daquela terra, trazida pelo mar. Com um menear de cabeça, Fitzy encarou os olhos suplicantes de Perla, e com um arfado de ar, acabou por aceitar. A Delegação das Doze cidades ainda permanecia em silêncio tentando assimilar as últimas informações sobre o passado da Rainha, acabando por murmurar entre si. Ainda agarrada á irmã, Perla murmurou a modos a que só ela ouvisse:
-Farei de tudo para que nossos ancestrais tenham orgulho em mim…– proferiu Estella, com uma expressão carregada de tristeza, pois sabia que aquela seria a despedida de ambas.
-Obrigada por compreender – dito aquilo, tomou-a nos braços com toda a força, e deixou que as lágrimas caíssem de seus verde-esmeraldas.
-Agora vá, antes que me arrependa. – replicou antes que Perla acabasse a frase.
Perla encarou a irmã pela última vez, e logo olhou para Alessandro, que lhe fez uma mesura para que ela partisse, antes que a Delegação a bombardeasse com perguntas sobre o que havia proferido. Cada vez mais confiante e com um aceno breve de cabeça, ela soltou a irmã e correu em direção á porta.
-Espere, ainda não acabamos. – Perla não ousou olhar para trás, enquanto o homem forte, de bigode se levantava, com tom acusador: - Você não pode virar costas á Delegação ser darmos por concluído, isso é traição…– Perla parou no meio do caminho, e relanceou sua cabeça para a grandiosa mesa.
-Lamento imenso, mas prefiro trair vossas excelências, do que trair o meu próprio coração. Ajo certamente por egoísmo, mas não me vou arrepender de tal ato, até porque deixei de ser herdeira e seguirei os passos de minha mãe. – Engoliu então em seco, e voltou ao seu caminho para fora da sala.
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Nessa mesma noite, numa da taberna mais bem frequentada pelos vagabundos da cidade, duas pessoas dirigiram-se até lá, com um único intuito. Abriram a porta perra de rompante, com a ajuda da força do vento, e entraram sem cerimónias. A porta fechou-se com um estrondo, o que fez a luz das velas tremularem, e toda a gente ali silenciar-se para observar as duas pessoas que estavam ali paradas.
-Preciso de homens fortes e corajosos para formar uma tripulação e chegar até Tortuga. – a voz feminina fez todos olharem uns para os outros, com cara de escárnio e rebentarem logo de seguida numa onda de risos.
-Me diga, boneca, o que a leva a pensar que nós iríamos entrar numa tripulação comandada por uma mulher? – Outra onda de risos rebentou, para irritação da mulher, que mantinha os maxilares hirtos.
O homem que acompanhava deu ombros, e ela olhou sobre a grande aba do seu chapéu, para aquela cambada de homens vagabundos, o que os fez calar de repente e esbugalhar os olhos. Com um suspiro de indignação, ela levou a mão até a aba e deslocou o chapéu da cabeça, pondo á mostra as suas belas feições.
-Ainda se recusam? – indagou Perla com um reafirmar nos olhar.
-Quando pretende partir, alteza? – questionou um dos homens.
-Ainda esta noite, de preferência, savy? – Ela voltou a colocar o chapéu e se voltou para a porta, mas não sem antes proferir: - Navio e capitão já temos, só falta uma tripulação. Se se acham bastante covardes para acarretarem ordens de uma mulher, escusam mesmo de sair desta taberna. – Ninguém ousou contestar as palavras da princesa. – Quem quiser me seguir nessa viagem, vá até ao ancoradouro, perto do navio de mercadorias que chegou ainda esta tarde. Lá nos encontraremos, entendido?
-Aye – todos retrucaram em uníssono, erguendo suas canecas de rum, em forma de saudação.
Perla largou um sorriso satisfeito pelo canto da boca e saiu da taberna, na companhia de Gibbs, que mostrava orgulho pela firmeza como sua filha havia tratado aqueles vagabundos. Era como se tivesse diante de Deanna novamente.
-Tem mesmo certeza que é isso que quer? Abandonar o seu reino e seguir uma vida completamente fora da lei? – certificou-se Gibbs ao repara na expressão vaga que sua filha mantinha agora em seu rosto.
-Mesmo que quisesse voltar atrás, eu acabei de sentenciar a minha estadia aqui com a Delegação. Mas sim, foi isto que sempre quis e nada, nem ninguém, irá me remover esta ideia. – Ela reparou na preocupação de Gibbs e acalmou-o, ao passar-lhe a mão pelo rosto. – Não se preocupe, pai, eu não me colocarei em perigo.
-Assim espero! Não me perdoaria se algo de mal lhe acontecesse.
-Nada vai acontecer. – rebateu firmemente, com um brilho exuberante no olhar. – Agora vamos, ainda temos de confiscar um navio, se é que me entende. – E retomou o passo, deixando Gibbs para trás, pensativo.
Sim, o sangue pirata de Perla começava a falar mais alto, e isso fazia-a ter mais força e confiança para seguir o seu destino, mesmo que esse bendito destino fosse achar o Pérola Negra e um certo capitão.
