"Soltou também uma pomba, para ver se as águas teriam já diminuído na face da terra.

A pomba, porém, não encontrando onde pousar, voltou para junto dele na arca, porque havia ainda água na face da terra. Noé estendeu a mão, e tendo-a tomado, recolheu-a na arca.

Esperou mais sete dias, e soltou de novo a pomba fora da arca.

E eis que pela tarde ela voltou, trazendo no bico uma folha verde de oliveira. Assim Noé compreendeu que as águas tinham baixado sobre a terra.

Esperou ainda sete dias, e soltou a pomba que desta vez não mais voltou." Gênesis 8:8-12

A luz do Sol atravessou as pálpebras e Leona abriu os olhos. Ela se levantou lentamente, seu corpo estava dolorido por estar cochilando em uma superfície dura, mas a adolescente não reclamou, pois a parede de rochas que ela utilizou como encosto era grande e providenciara algumas horas de sombra. O local, na serra de Renca, era também de difícil acesso, longe das trilhas utilizadas pela maioria das pessoas.

Ela sentiu a bexiga cheia. Leona olhou envolta, para confirmar que não havia ninguém, e então abaixou as calças para fazer a necessidade biológica. A calça já estava ficando curta de novo, e ela havia a roubado recentemente. A camisa estava suja e rasgada, mas ao menos era bem larga. Ela ficou de cócoras, tomando cuidado para não acertar os seus pés descalços.

Sangue.

Eram aqueles dias. Uma das poucas coisas que Leona gostaria de fazer parar, mas era impossível. Nem mesmo quando roubou pílulas anticoncepcionais.

Após esvaziar a bexiga, Leona colocou a calça de volta, notando que já estava manchado de vermelho, logo iria cheirar mal.

A língua estava seca e o estômago vazio.

Leona não estava mais na parede de rochas, mas atrás de um arbusto, perto do cume da serra. Ela estava familiarizada em teletransportar naquele esconderijo, pois no cume podia haver pessoas. Na última vez que foi vista por alguém ao reaparecer, a pessoa desmaiou de susto, seguida por rumores de assombrações na área , com mais pessoas visitando o lugar. Um grande incômodo.

O Sol estava baixo, não iria demorar para se pôr. Era tarde de um verão, o solo estava quente, mas já havia uma brisa fresca. Segura de que não havia ninguém, Leona foi até o cume e avistou a paisagem urbana de Santiago, capital do Chile, e a cordilheira dos Andes, com pouquíssima neve em seus cumes.

Era um horizonte fantástico. Um horizonte que ela podia alcançar, e ninguém poderia impedi-la. Nunca mais.

De repente, Leona estava cercada pelos sons de veículos. Não era surpresa para ela, pois agora ela estava no topo de um prédio de uma área residencial da capital. Ela começou procurar nas janelas dos outros prédios um local para invadir.

Essa era uma parte de paciência e riscos. As melhores janelas eram aquelas que não tinham cortinas, que ela pudesse ver se havia ou não alguém na sala. Então ela teletransportava para dentro da sala e teletransportava de volta imediatamente. No breve momento que ficava no cômodo, ela procurava ouvir sons como uma conversação, a televisão, ronco... E também checava se havia luzes acesas. Se local parecia vazio, Leona se sentia segura em teletransportar de novo para dentro. Alguns lares tinham sistema de alarme, mas a maioria só tinha detectores instalados nas portas e janelas, e ela não iria usar nenhuma delas.

Foram sete tentativas, com uma um tanto perigosa, pois ela viu a sombra de uma pessoa no corredor. Ela finalmente encontrou um apartamento onde o silêncio era total e todas as luzes estavam apagadas. Ainda assim, ela andou com cuidado pelo local, buscando confirmar que não havia ninguém dormindo nos quartos. Somente então ela acelerou em direção a cozinha.

Havia uma jarra de água e um saco aberto com biscoitos de polvilho na geladeira. Ela bebeu direto da jarra, com longos goles, ignorando a dor nos dentes causada pela água gelada. Depois ela atacou o pacote de biscoitos.

Na geladeira também havia um pote com doce de leite.

Leona olhou para o fogão. Sobre ele havia um cesto com um pão francês cortado pela metade. Ela correu para pegar o pão e voltou para a geladeira, onde ela abriu o pote e usou os dedos para pegar uma porção do doce de leite. Ela passou o creme marrom no pão e o botou inteiro dentro de sua boca. O pão estava envelhecido e duro, mastigar estava difícil, ela continuou empurrando o alimento, aguardando que sua saliva bastasse para amolecê-lo, enquanto curtia o sabor açucarado do creme.

Quando ela finalmente engoliu o pão, a sensação do estômago sendo preenchido era como o corpo estivesse sendo preenchido com alívio e felicidade, comparável à quando a sua gema da alma era purificada.

Leona ficou suspirando, sentindo os impulsos de seu corpo se acalmarem, enquanto colocou de volta o que restou na geladeira e a fechou. Somente então ela reparou que havia um porta-retrato de uma mulher na cozinha, a provável moradora.

Leona havia tirado a sorte grande.

Ela procurou pelo o banheiro. Assim que o encontrou, ela entrou e abriu todas as gavetas. Logo ela achou o que procurava: tampões. Ela abaixou as calças para colocar um, com pressa, foi um pouco doloroso, mas estava feito.

Foi então que ela reparou em sua imagem refletida no espelho. O cabelo rosa escuro bem curto, em conjunto com a camisa folgada, lhe dava a aparência de garoto, era melhor assim. Seu rosto estava sujo, com ramela em seus olhos e trilhas de ranho seco saindo de sua narina.

Havia um chuveiro no banheiro. Era tentador, mas alguém podia entrar no apartamento a qualquer momento. Ela se contentou em lavar o rosto na pia. Depois, ela pegou mais tampões, planejando guarda-los nos bolsos da sua calça, mas ela se lembrou que sua calça estava suja com a menstruação e lhe veio uma idéia melhor.

Ela deixou o banheiro e foi até o quarto da mulher. Ela abriu o armário e retirou algumas calças. As calças eram mais largas do que ela estava usando, o que era bom, mas eram largas demais, a dona daquelas roupas era gorda. Isso não abateu Leona, que escolheu uma calça e a vestiu, pegando um cinto disponível e o amarrando de forma apertada para segurá-la na cintura.

O som de uma chave destravando a porta.

Leona arregalou os olhos e se apressou em guardar as outras calças no armário. Enquanto segurava a calça suja, ela teletransportou até o banheiro e colocou os tampões dentro da calça nova, enquanto ouvia vozes e luzes sendo acesas. Assim que fechou a última gaveta, ela passou a ouvir o vento e o sons dos veículos abaixo. Ela suspirou, ela estava de volta ao topo do prédio.

O céu escurecia, o Sol deixando as outras estrelas mostrarem o seu brilho. Leona agora estava em um parque público, sentindo a temperatura o ar seco baixar mais. Ela colocou a sua calça velha dentro de uma lixeira, talvez algum mendigo fosse se interessar por ela. Seu estômago roncou, ela não havia comido o suficiente.

Um festival ou evento para um grande público seria bom para resolver isso, mas ela não lembrava de nenhum ocorrendo na capital, nem nas regiões vizinhas.

Foi então que ela viu um panfleto colado em um poste. Ele tinha rasgos, indicando que já estava ali há um tempo, mas ainda era possível ler o logo e o nome do lugar:

Rock in Rio

Río de Janeiro

Era um grande evento musical, prometia ser o maior do mundo, e iria começar hoje à noite! Havia uma foto de uma grande estátua sobre um morro redondo, de braços abertos. Leona se lembrou que era uma estátua famosa, mas ela não lembrava o nome.

Felizmente, ela não precisava disso.

Leona sentiu em sua pele o frio de uma leve chuva. O vento estava forte e ela tomou o cuidado para manter o equilíbrio, pois agora ela estava de pé sobre um dos braços daquela estátua. Já era noite naquele lugar e Leona se deu conta de que o festival já devia ter começado.

O problema é que ela não tinha idéia aonde exatamente ficava. Ela contava em ver o lugar do ponto alto em que estava, ainda mais que o evento prometia ser o maior de todos.

Ela conseguiu ver que atrás de uns morros haviam fachos de luzes dançantes, que iluminavam as nuvens. Ela teletransportou até as luzes, reaparecendo no ar, logo ouvindo o som rock. No breve momento de queda livre, ela pôde constatar que havia o encontrado. O lugar era vasto e colorido, com um mar de pessoas, ela não tinha visto nada igual.

Leona fez outro teletransporte e seus pés encontraram o chão enlameado, sentindo uma pontada de dor em seus joelhos e em seu quadril. Leona considerou que se ela não fosse uma garota mágica, ela não teria a mesma sorte. Porém, logo esses pensamentos deram lugar à música. Ela reconheceu a melodia, ela havia ouvido na televisão, em um bar de Santiago.

"~~Open your eyes

Look up to the skies and see

I'm just a poor boy

I need no sympathy

Because I'm easy come, easy go

Little high, little low

Anyway the wind blows

Doesn't really matter to me~~"

Era a banda Queen! Era um show deles! Era realmente o maior festival de todos. A única coisa que a separava dele, era um muro no outro lado da rua, apenas mais um muro.

Ela voltou a sentir a lama fria em seus pés, mas agora sentia o calor das pessoas a sua volta, a música estava mais alta. Sob a chuva de água e luzes, Leona pôde ver que as pessoas estavam sujas como ela, e felizes, era o caos, a liberdade embalada pela canção.

"~~Oh, mamma mia, mamma mia!

Mamma mia, let me go!

Beelzebub has a devil put aside for me!~~"

Era o momento perfeito. A mão de Leona, já experiente nesse ofício, adentrou no bolso da calça de um homem, puxando uma carteira com as pontas dos dedos. Ela se afastou, carregando consigo o fruto de seu roubo. Ela vasculhou todos os compartimentos por notas de dinheiro e moedas, deixando o resto cair e afundar na lama.

Esbarrando e deslizando entre os corpos da grande plateia, ela agora procurava o local onde vendia comida. Sua dedução a levou até uma área coberta e protegida da chuva, onde havia vários estandes, cada um com uma longa fila. Ela não tinha idéia do que comer, qualquer comida servia, nem o que poderia comprar com aquele dinheiro estrangeiro em suas mãos. Ela escolheu uma a fila a esmo e esperou pacientemente.

Quando a chegou a vez de Leona, o homem que estava no estande perguntou, "O que você quer? Seja rápido."

Leona não entendeu o que ele disse, mas ela já sabia o que queria. Ela apontou para uma massa frita que estava dentro da estufa.

"Uma coxinha, é?" O homem rapidamente abriu a estufa para pegar o lanche.

Leona colocou uma nota de dinheiro sobre o balcão.

O homem pegou o papel e leu o valor, então ele olhou de volta para a garota, franzindo a sobrancelha.

O estranho silêncio fez Leona engolir seco. Ela podia sentir que estava sendo examinada.

"Onde você conseguiu esse dinheiro?" o homem perguntou.

Ela colocou outra nota de dinheiro no balcão.

O homem pegou o novo papel. Essa não era a resposta que ele queria, mas ele olhou para a fila crescente. Então ele balançou a cabeça e suspirou, pegou um copo plástico e o encheu com suco.

Leona só precisou aguardar um pouco mais para receber o copo, e o lanche enleado em um guardanapo.

O home falou de forma ríspida, "Agora chispa daqui."

E Leona o fez. Ela foi até outro local da área coberta e degustou o bolo frito. A massa dentro era quente e macia, com um generoso recheio de carne de frango cozida e desfiada. Era bem temperado! Ela bebeu o suco, era de laranja.

A música continuava. Aquele estava sendo um dia melhor que a média.

Depois de finalmente satisfazer o seu estômago, Leona retornou para lama e chuva. Ela curtiu o show até a banda se despedir, sendo substituída por um cantor que ela não conhecia. Se lembrando da única referência que ela tinha da cidade, Leona retornou ao braço da grande estátua.

A chuva estava um pouco pior e mais fria. Já deveria ser tarde da noite. Uma boa hora para procurar uma bruxa. Da estátua, a garota podia ver uma área urbana e uma linha curva de luzes, delimitando uma praia e sua baía. Foi para lá que ela teletransportou.

De topos de prédios, ela foi trocando de posição em sua busca, até sentir outra magia. Isso a trouxe até uma área em construção.

Sobre a cabine de um guindaste, Leona viu a entrada da barreira da bruxa. O estranho símbolo flutuante estava vibrando e piscando. Já havia outra garota mágica lá dentro? Isso era perfeito, ela não precisaria esperar.

Ela mergulhou na entrada e o mundo foi distorcido. Ela agora estava em uma espécie de fábrica, um ambiente escuro e cinza. Havia o constante barulho de máquinas trabalhando na linha de produção. Ela viu que o que estava sendo montado eram supostamente bonecos coloridos, mas estava tudo errado. A posição dos braços, das pernas, bocas e olhos, e a quantidade, não fazia sentido. Ainda assim, quando aqueles constructos caiam das esteiras, eles tornavam-se vivos e berravam como bebês. De acordo com os seus respectivos corpos bizarros, eles se moviam para uma direção.

Leona sabia para onde aqueles lacaios da bruxa estavam indo, pois ela podia sentir a fonte da magia. A outra garota mágica deveria estar em batalha. Leona decidiu evitar usar qualquer magia para não chamar a atenção das criaturas. Felizmente, havia uma escada que levava para algumas passarelas penduradas próxima do teto da fábrica.

Não havia um perigo evidente nas passarelas, mas a garota caminhou com cautela até uma porta. Quando ela a abriu, um cheiro doce, como mel, invadiu as suas narinas.

Era uma continuação do galpão da fábrica. Havia a mesma linha de produção, com uma concentração ainda maior daqueles bizarros constructos. Os lacaios estavam se aglomerando no outro lado do galpão, onde a parede havia sido demolida, aquilo devia ser obra da outra garota mágica.

Leona se apressou pela passarela, o cheiro era enjoativo, a cacofonia de berros das criaturas era um convite à insanidade. Ela alcançou outra porta e a abriu sem pensar duas vezes. O cheiro ficou ainda pior, fazendo pôr a mão sobre o nariz. Ela chegou em uma sala que estava ainda mais infestada de lacaios ao ponto de não ser possível ver chão.

Exceto em um ponto, envolta de uma mulher adulta de longos cabelos brancos, com mais adornos do que roupas. As criaturas formavam um círculo envolta dela, mas não a atacavam, ao invés disso, quando a mulher andava, elas saíam do caminho dela.

Leona franziu o cenho, ela nunca havia visto uma garota mágica adulta. Seria assim no Brasil? Além disso, aquela mulher não parecia estar incomodada com o cheiro.

A mulher de cabelos brancos fez um gesto com os seus braços como se estivesse esgaçando uma cortina, e os aglomerados de lacaios na frente dela foram arremessados para longe por uma força invisível, revelando o que eles estavam cobrindo.

Uma colmeia gigante, uma parede de favos com o seu característico padrão hexagonal. No entanto, o que estava dentro de cada hexágono não era uma larva, mas fetos humanoides. Eles tinham até cordão umbilical e placenta, que pulsava.

Então veio o som de um zumbido. O som logo ficou alto, e a fábrica começou a estremecer. Leona tampou os ouvidos, já esperando o que viria a seguir.

O teto desabou e um monstro gigante pousou na frente da mulher. O corpo lembrava o de uma vespa, mas o seu abdômen era um aglomerado de garrafas de vidro, com rótulos de bebidas alcóolicas. O tórax era uma almofada de alfinetes, que prendia as delicadas asas de plástico filme. Sua cabeça era um crânio de um cachorro banhado com mel, filetes do líquido dourado escorriam de seus longos dentes caninos.

Não havia dúvidas para Leona, aquela era a bruxa.

Apesar de não ter pulmões, a bruxa rugiu para a invasora como uma mãe que protege as suas crias.

A mulher não entrou em uma postura de combate, ela simplesmente estendeu um braço, com palma da mão aberta em direção ao monstro gigante, e proferiu, "Abjuração."

Aquela era uma noite de muitas surpresas para Leona.

A bruxa parou e abaixou a cabeça, como se fosse dormir.

A mulher se aproximou do monstro sem hesitar e o tocou com a ponta de um dedo. No mesmo instante, as garrafas no abdômen da bruxa estouraram, os alfinetes espetados na almofada retorceram-se e o crânio de cachorro partiu em dois.

Leona estava de olhos arregalados quando a barreira começou a dissipar. Os berros dos lacaios, o cheiro doce e intoxicante, a fábrica, tudo se fora. Ela estava de volta na área em construção, em um dos andares superiores do prédio inacabado, enquanto a mulher estava no chão.

Uma semente da aflição descia lentamente, até sua ponta afiada na base tocar no solo lamacento.

Aquele era o momento que Leona aguardava. Ela conjurou a sua gema da alma e se transformou, sendo envolvida por um flash de luz rosa.

A mulher se virou e olhou para ela.

Era exatamente isso que Leona queria. No mesmo instante, ela se teletransportou até a semente da aflição e o coletou rapidamente. No entanto, algo estranho acontecera: seu 'uniforme' de garota mágica, sua segunda pele de cor rosa, começou a brilhar. Leona ficou estupefata, mas logo amaldiçoou a si mesma por ter ficado distraída com aquilo e teletransportou para o topo de um outro prédio da cidade.

A segunda pele parou de brilhar.

Era a primeira vez que Leona havia testemunhado isso, sem entender o que seria a causa. Felizmente, ela tinha conseguido a semente, deveria ser o suficiente para o mês.

"Com licença."

Leona sentiu um aperto no coração ao ouvir aquilo. Ela se virou.

Era a mulher de cabelos brancos! Em uma distância tão próxima que agora era fácil ver como ela era alta e forte, e sua gema da alma estava muito escura.

Leona teletransportou, de volta o braço da grande estátua. Ela arfou. Aquela mulher podia se teletransportar também? Mas como ela conseguiu localizá-la tão rápido? Eram perguntas que a garota não teve tempo de procurar por respostas, pois ela ouviu de novo.

"Por favor, não fuja. Eu quero conversar."

Era a mulher de novo, ela agora até estava sorrindo. Compelida pelo terror, Leona teletransportou para a escuridão. Ela sentiu um intenso vento frio castigar a sua pele. Ainda que fora uma escolha aleatória, ela sabia que era um lugar familiar. Deveria ser em algum ponto dos Andes, não muito longe de Santiago.

"¿Habla español?"

Leona sentiu ser banhada por uma luz quente.

Era a mulher, acompanhada de uma bola de fogo flutuante. "Perdona, pensaba que eras brasileña."

Leona, ouvindo ela falar a sua língua, só fez aumentar a sensação de que estava encurralada. "Toma!" A garota ofereceu a semente, com seu braço tremendo, de frio ou de medo, ou ambos. "Eu roubei porque não tinha escolha. Por favor! Não me mata!"

"Oh, pobrezinha... Eu não vou te machucar," a mulher falou com uma voz suave, "mas eu só aceito a sua oferta se você me prometer que não irá tentar fugir. Consegue fazer isso?"

Leona olhou de relance para a bola de fogo. O calor que providenciava era reconfortante, mas também era ameaçador. Ela assentiu com cabeça. "Eu prometo."

A mulher se aproximou, sem pressa, e pegou a semente.

Leona se esforçou em esperar, de tão acostumada que estava em usar o seu teletransporte no menor sinal de perigo.

A mulher aproximou a semente até a sua grande gema corrompida em sua tiara. Então, um fluxo de escuridão transferiu da gema para semente.

No entanto, Leona logo notou que havia algo errado, pois a gema da mulher não estava ficando nem um pouco purificada.

A mulher afastou a semente de sua gema, que ainda estava completamente escurecida. Após um suspiro, ela ofereceu a semente de volta. "Ainda há o suficiente para você."

"O-O quê?" Leona ergueu as sobrancelhas.

"Vamos, estenda a sua mão," a mulher insistiu, com um tenro sorriso.

Leona timidamente obedeceu.

A mulher segurou a mão da garota e pôs a semente com carinho. "Você pode me chamar de Estér."

O vento parou, mas Leona voltou a sentir frio. A luz quente se fora, não havia mais a bola fogo, mas agora havia a luz vinda de um poste charmoso. Elas estavam agora em uma praça de uma cidade. Santiago? Leona não estava certa disso, o ar era... diferente.

"Venha comigo." Estér começou a andar. "Há um lugar mais confortável para nós conversamos."

Leona hesitou, desconfiada quanto ao convite daquela exótica mulher, mas fugir ainda não era uma opção. Nesse momento, ela se deu conta que ainda estava virtualmente nua, com a sua segunda pele dançando sobre a sua forma franzina. Ela desfez a transformação, retornando às suas vestes 'emprestadas'.

Estér se virou. "Vem! Você vai amar!"

Leona a seguiu. Quando elas saíram da praça, a garota viu a mulher atravessar a rua em direção a um prédio de suntuosa arquitetura. Devia ser ainda madrugada, havia pouco movimento de pessoas, mas Leona não compreendia a razão da mulher ainda estar usando as vestimentas de garota mágica. Com o corpo seminu naquele frio, mais a miríade de jóias que ela usava, a mulher iria chamar muita atenção!

No entanto, havia um homem uniformizado ao lado da entrada do prédio. Ele assentiu e sorriu para a mulher, ao mesmo tempo que ele abriu a porta para ela e sua convidada.

Ao entrar, Leona sentiu o calor aconchegante. Parecia ser um hotel, um muito luxuoso. Ela encontrou algo escrito com letras douradas em uma grande coluna no saguão, mas não era em espanhol. Definitivamente, elas não estavam em Santiago.

Estér se aproximou do balcão, onde um outro homem uniformizado e sorridente já estava a aguardando, oferecendo uma chave. Ela pegou o objeto e se virou para a garota, oferecendo a mão. "Vem."

"Hã?" Leona novamente hesitou.

"Será mais rápido dessa forma," Estér disse.

Se aproximando lentamente, Leona tocou a mão da mulher e então o que estava envolta dela mudou. Elas agora estavam em um pequeno corredor, de frente a uma porta de madeira envernizada, com entalhes sofisticados. A mulher havia deliberadamente usado magia na frente daquele homem... Leona havia desistido de entender, parecia ser um sonho.

Estér usou a chave para abrir a porta e entrou no ambiente, acendendo as luzes. "Por favor, sinta-se à vontade."

Os olhos de Leona cresceram de deslumbramento. A sala era espaçosa, o apartamento devia ocupar metade do andar, e estava equipada com móveis de madeira de altíssimo requinte.

"Esse hotel fez reformas recentes. Eles derrubaram paredes para criar um ambiente conceito aberto," Estér comentou, enquanto escrutinizava a sua convidada, "bem moderno para um prédio tão antigo, não acha?"

"Hmmm..." Leona reparou na enorme cama e depois olhou para uma pequena mesa onde havia um tabuleiro de xadrez. Parecia mais com uma obra de arte, seria aquilo feito de ébano e marfim? A garota ficou imaginando quanto dinheiro aquilo deveria valer.

"Sabe jogar?" Estér perguntou.

Leona parou de olhar para o tabuleiro e balançou a cabeça.

"Então irei te ensinar."

Xadrez? Leona preferiu fingir que não ouviu, para que aquilo serviria? Havia coisas mais importantes, como saber onde estava. Ela andou em direção a uma grande cortina, tudo era grande na verdade, sem poder ignorar a qualidade do tapete sob os seus pés. Era como estar pisando em nuvens.

Oh não...

Leona olhou para os seus pés imundos de lama, ela havia deixado uma trilha barrenta desde que entrou naquele quarto.

"Haha! Não há problema." Estér sentou na cama e levantou a perna. "Veja, os meus estão sujos também. Depois eu preparo um feitiço para limpar isso."

Leona olhou para a mulher, sem expressar nenhum alívio ao ouvir aquilo.

Estér levantou as sobrancelhas. "Vá, olhe na janela."

Agora sendo uma mistura de obediência e desejo. Leona abriu a cortina e olhou para paisagem urbana. Era uma grande cidade, mas ela não encontrava nenhuma referência para estabelecer onde estava. No entanto, havia algo peculiar, não muito longe do hotel, a cidade era muito mais escura e tenebrosa, mas não era um corte de energia, havia algumas luzes.

"Uma cidade, dois mundos," Estér disse, "bem-vinda a Berlim, Leona."

A garota olhou de novo para a mulher, com os olhos arregalados dessa vez. "Como você sabe o meu nome?"

"Está escrito em seu anel," Estér respondeu.

Leona olhou para o seu anel na mão esquerda, mais especificamente nas estranhas marcações. "É o meu nome que tá aqui? Você consegue ler isso?"

"Sim, e eu posso te ensinar." Estér sorriu. "Eu posso te ensinar muitas coisas."

Leona franziu o cenho. "Por que você faria isso?"

Estér suspirou e foi sucinta, "Tédio."

Leona fez uma careta. "Tédio?"

"Você já percebeu que eu sou poderosa," Estér explicou, "não há muito mais que eu possa almejar para mim. Então eu adquiri esse hábito de ser tutora de pessoas que capturam o meu interesse e tirar o melhor delas."

"Então, eu não sou a sua primeira," Leona concluiu.

"Não, mas isso não faz você ser menos especial." O olhar rosa de Estér brilhou por um momento.

Leona juntou coragem para perguntar, "E se eu não quiser nada disso?"

Estér parou de sorrir. "Eu deixo você ir, com a semente."

Leona sentiu os detalhes metálicos da semente da aflição que ainda estava segurando.

"Eu deixo você voltar para a sua vida de ladra." Estér deu de ombros. "Eu só não posso garantir que a próxima garota mágica que conseguir pegar você será tão piedosa."

A garota engoliu seco.

Estér pendeu a cabeça de lado. "Você valoriza muito a liberdade, não é?"

Leona abaixou a cabeça, respondendo com uma voz fraca, "Esse é o meu desejo."

"Oh... Mas você se sente livre?" Estér questionou, "você foge, pois parece que não tem escolha. Isso é liberdade para você?"

Leona não respondeu, não fez sequer um gesto.

"Se você deixar que eu te cuide, fugir será uma escolha, mas você nem vai sentir que precisará disso." A mulher então exclamou, "Oh sim! Quase esqueci de te dizer! Isso não é um pacto, acordo ou contrato. Eu não sou Kyuubey. Você pode mudar de idéia e partir a qualquer hora, sem pressão."

Uma oferta sem riscos, parecia bom demais para ser verdade. Contudo, o que aquela mulher havia dito antes era um fato. Leona suspirou e deu a sua resposta, "Nesse caso..."

"Nesse caso você irá tomar um banho."

Leona olhou com surpresa para Estér. "Hã?"

A mulher de longos cabelos brancos apontou para uma porta. "O banheiro é ali. Deve haver toalhas e todo resto que você precisa. O Sol irá aparecer logo e seria bom que você tivesse algum descanso, pois eu quero levar você para algumas lojas."

"L-Lojas?" Leona franziu o cenho.

"Relaxe." Estér abriu os braços. "São apenas coisas que garotas fazem."

Leona preferiu mudar de tópico. "E onde eu vou dormir?"

Estér passou a mão no tecido da roupa de cama para sentir a sua qualidade aveludada. "Aqui~~"

Leona ficou boquiaberta por um tempo antes de proferir, "Eu... Eu vou compartilhar a cama contigo?"

"É grande o bastante para nós duas." Estér sorriu. "Tem algum problema?"

"N-Não..." Leona se virou para ir ao banheiro. Aquela noite já estava longa demais.

/人 ◕‿‿◕ 人\

Leona deixou o provador de roupas vestindo um casaco grosso rosa, com capuz com pêlo falso, além de luvas e calça legging preta.

Estér se aproximou. "Uhum..." Com muita satisfação, ela circulou a garota, fazendo pequenos ajustes no tecido das roupas. "Vamos ver se eles têm roupas de verão no estoque."

Foram compradas roupas e calçados para todos os climas. Tudo da última moda e da melhor qualidade.

Na verdade, comprar não era o melhor termo.

Depois de muitas lojas, elas foram para uma lanchonete. Quieta, Leona examinou o que a garçonete havia trazido para ela: uma caneca de chocolate quente e um apfelstrudel; uma espécie de pão recheado com uma massa cozida de maçã. Ao lado da mesa onde ela estava sentada, estavam as miríades de sacolas, todas com produtos para ela somente.

Estér estava sentada no outro lado da mesa. Com as suas vestes de garota mágica... ou a falta delas. A gema em sua tiara parecia um buraco que absorvia toda a luz. "Parece que algo te incomoda."

"Hã?" Leona retornou a sua atenção para a comida. "Não há nada..."

"Pare de fugir, Leona," Estér afirmou, "se você vai viver comigo, você precisa expressar as suas opiniões para o bem de nosso relacionamento."

Leona respirou fundo.

E Estér aguardou com um sorriso.

"Olha..." Leona disse, "Você ainda tá transformada em garota mágica."

Estér assentiu. "Uhum..."

Leona continuou, "E você é enorme..."

"Está me dizendo que eu sou gorda?"

Leona arregalou os olhos e olhou para Estér. "Não! Não! Eu-"

"Fufufufu..." Estér balançou a cabeça, mostrando um grande sorriso. "Eu sei o que você quis dizer, eu só não esperava essa palavra. Eu não pude resistir e brinquei um pouco."

Leona viu uma garçonete sorridente se aproximar e colocar na frente de Estér uma caneca de vidro contendo uma estranha cerveja vermelha.

Estér assentiu para a garçonete e a funcionária da lanchonete saiu.

Vendo a garçonete se afastar, Leona disse, "É ISSO!"

"O quê?" Estér virou o caneco para dar um longo gole.

"Nós andamos pela cidade, com você parecendo assim, e ninguém se importa!" Leona explicou, "e... elas sorriem para você e te dão coisas, sem falar uma palavra sequer!"

"Hmmm!" Estér botou a caneca de volta, revelando estar com um 'bigode branco' causado pela espuma da cerveja. "Eu não quero que eles falem, eu também não quero desperdiçar a minha voz."

"Você..." Leona estremeceu. "Você hipnotizou a cidade inteira..."

"'Hipnotizou', outra palavra inesperada." Estér ergueu as sobrancelhas. "Deixa eu tentar te explicar o que está acontecendo. Você se lembra do que você comeu ontem?"

"Eu me lembro!" Leona respondeu secamente.

"Oh..." Estér piscou os olhos, e sorriu mais. "Porque você é muito especial, Leona. Muitas pessoas tem dificuldade para responder a essa pergunta, pois suas vidas são um conjunto de rotinas esquecíveis. O que eu faço é simplesmente inserir eu e você nesse conjunto."

Leona fez uma careta. Aquela explicação não explicava nada!

O olhar de Estér se tornou penetrante. "Você acha que estou hipnotizando você, Leona?"

"Hein?" A garota abaixou o olhar em face daquela súbita pergunta.

Estér sussurrou, "Não fuja..."

"Eu não sei," Leona disse, falhando em esconder a raiva, "eu acho que não, pois eu ainda tenho medo de ti."

"Você é esperta." Com um ar de satisfação, a mulher jogou os longos cabelos brancos para trás e bebeu mais de sua cerveja.

Leona olhou para as sacolas com os produtos das lojas. "Nós não pagamos por essas coisas."

Estér deu longos goles.

"Nós não vamos pagar por essa comida, né?" A garota balançou a cabeça, desapontada. "Você falou da minha vida de ladra, mas você é uma também."

"Ahhh..." Estér botou o caneco vazio na mesa. "Isso não é roubo, é uma forma que as pessoas têm para demonstrar seu agradecimento."

Leona piscou os olhos, confusa. "Agradecimento pelo quê?"

Estér afastou o caneco e se curvou sobre a mesa.

A garota recuou a cabeça em face daquele par de olhos rosas cintilantes.

"Eu vou te contar um segredinho," Estér falou, "esse mundo só existe por causa de mim."

Leona gaguejou, "Q-Que mundo?"

Estér olhou para cima. "Essa lanchonete. Essa construção." Então ela olhou para a garçonete. "Aquela mulher ali... Oh! Ela está se lembrando das marcas de estria que ela notou hoje de manhã, mas não há problema algum. A bunda dela está em ótima forma."

Leona franziu o cenho. "Você também lê mentes?"

"Sim." Estér voltou a prestar a atenção na garota. Sorrindo, ela retornou ao seu assento. "Porém eu não ousaria ler a sua. Eu quero conhecer você como um livro, página por página..."

Leona exalou, mas a tensão continuava. "Então o seu mundo é essa lanchonete?"

"Hein?" Estér ficou confusa a princípio, então ela fechou os olhos com força. "Oh não, como fui estúpida. É claro que eu não! Eu queria dizer que eu impedi a extinção de toda a humanidade, mais de uma vez."

Leona ficou boquiaberta. "Você é um super-herói?"

"Super-herói?" Estér não conteve o riso, balançando a cabeça. "Fufufufu! Você é tão adorável, Leona. Eu juro pela a minha existência que irei lhe dar um futuro mais digno."

Não tão certa quanto a qualidade desse futuro, Leona abaixou o olhar. "Sobre esse... hmmmm... treinamento..."

"Isso vai ter que esperar. Algumas semanas ou mais."

Leona ficou surpresa com a súbita seriedade da voz de Estér. "P-Por quê?"

"Você está pele e osso. Você se alimenta mal." A mulher não estava mais sorrindo. "Você não sente fraqueza porque está se enganando, não está usando a sua gema da alma de forma apropriada. Isso está limitando o seu potencial. Eu vou te ensinar como pilotar o seu corpo."

"Pilotar o meu corpo?"

"Oh sim." Estér cruzou os braços e assentiu. "Nessas primeiras semanas vou te dar um curso intermediário de garotas mágicas, sobre coisas que um certo Kyuubey omitiu. E xadrez também! Esse jogo é um bom exercício para pôr as suas emoções de lado, elas são apenas distrações na hora de resolver problemas." Ela então elevou a voz, em um tom professoral. "Mas não as jogue fora! Você precisa delas para fazer julgamentos, nós somos humanos no fim das contas."

Leona assentiu lentamente, um tanto perdida em pensamentos. Aquilo já não era um treinamento? Ou aquela excêntrica mulher havia entendido que o 'treinamento' seria sobre algo mais físico?

Estér apontou. "Termine a sua bebida antes que ela esfrie demais."

/人 ◕‿‿◕ 人\

De fato.

Leona não sabia em que país estava, Estér havia feito o teletransporte. Era um lugar quente e úmido, nas margens de um grande rio em um vale, cercado por uma floresta, sem sinal de presença humana. O chão da margem era cheio de pequenas pedras coloridas e lisas, o rio devia cobrir aquela área com frequência.

Mas agora, aquele seria o local do 'treinamento'.

"Vamos começar," Estér ordenou, "se transforme."

Leona suspirou e pôs a sua mão esquerda à frente, com a palma aberta. Seu anel brilhou e pulou, se tornando momentaneamente na forma de ovo da gema da alma, e então uma explosão de luz rosa. Quando a luz se dissipou, a garota estava usando um braço para cobrir os seios e o outro para cobrir a barriga e virilha, o melhor que pudesse.

"Oh?" Estér ergueu uma sobrancelha. "Eu não me lembro de você ter essa vergonha no nosso primeiro encontro."

"Estava escuro, e eu tava temendo pela minha vida!" Leona desistiu de cobrir o seu corpo, pois havia muitas muriçocas a incomodando. Em um acesso de raiva, ela declarou, "Eu odeio a minha aparência, tá? Eu odeio!"

"Por quê?" Estér sorriu. "Seu corpo é perfeito, e estou vendo que a dieta surtiu efeito. Você já conseguiu algumas curvas."

"ESSE É O PROBLEMA! EU TÔ NUA!" Leona não sabia mais onde pôr os braços. Enrubescida, ela virou a cara e abaixou a voz. "Você também tá meio nua, mas pelo menos há algum tecido cobrindo alguma coisa..." Ela então beliscou uma porção de sua 'pele rosa' que estava se movendo sobre a sua pele normal. "E não essa porcaria de tinta, ou tatuagem, ou seja o que for. Por que eu não tenho um uniforme bonito que nem as outras garotas mágicas têm?"

"Hmmm... Você tem absoluta liberdade de movimento assim." Estér assentiu, aparentando estar convencida de suas próprias conclusões. "Você também não faz muito barulho. Essas são qualidades em uma luta."

"Eu não posso lutar," Leona afirmou, "eu não tenho sequer uma arma."

"Sério?"

"Eu já tentei tantas vezes." A garota olhou para as palmas de suas mãos. "Eu não consigo chamar uma arma, uma ferramenta, um objeto sequer. Kyuubey me disse que isso é bem incomum. É por isso que não tenho escolha além de roubar sementes para sobreviver."

Estér fez uma bola de luz rosa surgir em sua própria mão esquerda.

Leona observou aquela luz se solidificar em um pequeno cetro, mas que tinha duas cabeças, uma em cada extremidade, cada uma composta de oito hastes curvas que partiam do bastão e se encontravam novamente na ponta, formando uma câmara oca. Objeto parecia ser feito de ouro maciço, com um design delicado, deveria valer uma fortuna se fosse vendido como um ornamento.

"Essa é a minha arma," Estér disse, "ela é chamada de Vajra. O que acha dela? Bem fraca, não é?"

"Ahm... Você tem que estar bem próxima pra acertar, mas parece pesada. Deve dar pra esmagar algo com isso."

Estér fez a sua arma desaparecer. "Você acha que eu preciso disso para esmagar alguma coisa?"

"Não... Você mata bruxas apenas cutucando elas." Leona balançou a cabeça, ainda mais derrotada. "Eu já vi garotas mágicas disparar laser dos olhos. Eu já vi muitas garotas conseguirem transformar objetos comuns em armas mágicas. Nem isso eu consigo! Kyuubey disse uma vez que o potencial de uma garota define o que ela será capaz de fazer. Eu não tenho nenhum, ele estava enganado sobre mim."

"Tolice," Estér declarou com firmeza, "um humano de mãos vazias consegue matar outro humano. Uma garota mágica consegue fazer o mesmo contra uma bruxa."

Leona abaixou olhar.

"Me siga."

A garota obedeceu a mulher. Elas se aproximaram de uma grande rocha, que devia pesar toneladas, com vestígios de que estava aos poucos sendo cavoucada pelo rio.

Estér ficou ao lado da rocha, pedindo, "Eu quero que você soque isso."

"Socar? A rocha?" Leona questionou.

"Sim, com toda a sua força."

A garota arregalou os olhos. "Cê tá maluca?"

A mulher não disse uma palavra.

Se dando conta com quem estava falando, Leona abaixou a cabeça. "D-Desculpa, eu não quis dizer isso..."

"Você está sendo apenas adorável, eu nunca ficaria ofendida com isso," Estér disse, "Mas você tem de confiar mais em si mesma. Aliás, uma garota mágica é bem mais forte que uma pessoa comum."

Leona olhou para o seu punho fechado e depois para a rocha. Ela chegou mais perto do seu alvo e olhou para Estér.

A mulher alta assentiu. "Coloque magia em seus músculos."

Leona suspirou. Vendo a superfície dura, ela girou o torso para preparar o soco.

"IIIÁÁÁÁHHH!"

Foi um direto. Assim que o punho conectou com a rocha, Leona sentiu uma dor terrível. "AIE! AIE! AAAIIIIEEE!" Recuando, ela olhou para sua mão. Ela tinha medo de mexer os dedos, pois a pele estava esfolada e eles sangravam. Uma porção de pele rosa se moveu para cobrir os ferimentos.

"Isso foi um soco?" Estér indagou.

"CLARO QUE FOI!" Leona segurou as lágrimas. "E eu quebrei a mão por causa disso."

"Sua mão está boa." Estér ergueu as sobrancelhas, sorrindo. "Eu a curei."

"Hã?" De fato, não havia mais dor. Leona examinou a sua mão. A pele rosa recuou, revelando não haver nem sequer um arranhão.

Estér semicerrou o olhar. "Interessante. Você consegue controlar essa 'tinta rosa'..."

"Isso foi instinto." Leona abriu e fechou a mão, ainda impressionada. "Mas... Eu consigo controlar um pouco."

"Você consegue fazer ela cobrir a sua mão como uma luva?"

"Assim?" Obedecendo a mulher, a garota se concentrou na sua mão. A pele rosa moveu e cobriu do pulso até as pontas dos dedos.

Estér estava satisfeita. "Agora soque a rocha de novo com essa mão, com mais força."

Leona arregalou os olhos para ela.

"Não se preocupe, eu te curo."

Não havia escapatória. Leona balançou a cabeça, já certa da dor que viria a seguir. Ela se aproximou da rocha novamente e preparou o soco.

"EEEIIIÁÁÁHHH!"

Com os olhos fechados e rangendo os dentes, a jovem garota mágica sentiu seu punho acertar a superfície dura e a dor... Porém, não era a dor lancinante de antes, era algo fácil de tolerar. Ela abriu os olhos, perplexa, e olhou para a mão. A pele rosa dispersou, mostrando a pele saudável embaixo.

"Parece que encontramos a sua arma," Estér comentou.

Com a boca aberta, sorrindo como um bebê que aprendeu a andar, Leona consultou a sua tutora.

Estér assentiu. "Vamos, soque essa rocha."

Com muito mais entusiasmo, Leona cobriu a sua mão com a pele rosa e fez o que a mulher pediu.

"IIIEEEÁÁÁÁHH!"

Estér continuou a dar instruções. "Use a sua outra mão também. Consegue cobrir ambas?"

"IIIIEEEEEÁÁHH!"

Após cada soco. "Fraco! Coloque mais magia nesses músculos. Sua vontade é o único limite."

"IIEEEÁÁAAWWW! AW!" Leona socou com tanta força, que o seu ombro deslocou. "AWWwww..." A dor imediatamente se fora.

"Pronto, eu curei. Continue."

E ela continuou. "IIIEEEÁÁÁÁHHH!"

"Você realmente precisa gritar a cada golpe?"

Os socos continuaram por um longo tempo, tanto tempo que a inebriação que Leona tinha pela força recém descoberta havia passado. Ela parou, suando muito, diante da rocha incólume. "Você quer que... eu quebre isso?"

Estér disse, "Eu espero que sim."

"Isso é impossível." Leona abaixou a cabeça. Ela estava mais forte, mas ainda era muito fraca.

"Você tem muito o que aprender." Estér se afastou da rocha. "Vamos variar um pouco."

"Hã?" Leona viu a mulher parar e se virar para ela, com os braços abertos.

"Me soque."

"Você?" A garota franziu o cenho. "Mas... é você!"

Estér revirou os olhos. "Isso é um treino."

"Certo..." Leona pressionou os lábios e se aproximou dela.

Estér desferiu um chute.

O movimento foi tão rápido e repentino que Leona só se deu conta quando já estava voando com a força do golpe. As suas costas e a sua cabeça deram de encontro com algo duro, e tudo ficou escuro. No entanto, a luz retornou, quando o seu corpo inteiro foi tomado pela dor, como se estivesse recebendo uma forte descarga elétrica. "GGGGNNNNNNN!"

"Você acha que eu sou uma rocha?"

A voz era distante. Tonta, Leona não conseguia enxergar com clareza, seus olhos ainda estavam se ajustando a luz, como se eles estivessem fechados por muito tempo.

"VOCÊ ACHA QUE EU SOU UMA ROCHA, LEONA? RESPONDA!"

A voz ficou mais clara. Leona se deu conta que estava caída, suas costas apoiadas na rocha.

Estér continuou falando, "Você acha que eu vou deixar você me atacar?"

Leona se levantou. Não havia dor ou ferimento, ela havia sido curada? "Mas você disse que era treinamento."

"É claro que é! É por isso que ainda está viva!" Estér se acalmou. "Vamos continuar. Aliás, eu ouvi rumores de que você é capaz de teletransportar..."

Havia um leve tom sarcástico na última frase. Leona entendeu bem o que ela queria. Dessa vez ela não deu um passo, ainda assim, ela imediatamente estava nas costas da mulher de longos cabelos brancos. Ela fechou o punho, prestes a executar um soco.

Estér se virou de uma vez, acertando uma cotovelada na cabeça da garota.

"Aie!" Leona caiu com face contra os pedregulhos.

"Eu não acredito." Estér balançou a cabeça, desapontada. "Você está ciente que a sua adversária sabe que você teletransporta, e mesmo assim decide fazer a coisa mais óbvia do mundo."

A garota ficou de quatro, de cabeça baixa. Suas mãos e braços tremiam, tensos.

Estér não sentiu nenhum remorso. "Seu soco poderia ser já capaz de quebrar aquela rocha, ele poderia ser já capaz de rachar esse planeta em dois! Nada disso importa se você não usa a sua cabeça para pensar."

De repente, Leona desapareceu.

"Hm?" Estér se virou rápido. Ela viu Leona por um instante, antes dela desaparecer novamente. A mulher sorriu enquanto observava a garota mudar de posição constantemente, onde a cada posição a garota mostrava estar preparando um soco.

Então, Leona apareceu perto de sua oponente, enquanto já desferindo um soco.

Contudo, Estér segurou o punho da garota com uma mão. "Está melhorando, mas ainda está len-" Água invadiu a boca da mulher com violência e também cobriu os seus olhos. Ela sentiu seu corpo rodopiando, sendo carregado facilmente por uma força da natureza. No momento que se deu conta, Estér teletransportou de volta para a margem. Ela tossiu e vomitou água. Ela me teletransportou para dentro do rio?

Leona não estava na margem.

Estér olhou envolta, já cogitando que a garota estaria no rio também, se afogando. Até que ela notou algo que estava faltando na margem.

A rocha se fora, havia apenas uma marcação no chão de onde ela estava repousando.

Estér arregalou os olhos. Um instante depois havia uma sombra sobre ela. A massiva rocha havia reaparecido acima da mulher, e em uma reação sobrenatural, Estér fez uso de telecinese para mantê-la no ar.

Nesse mesmo momento, Leona reapareceu atrás da mulher, aplicando um soco. Quando o seu punho estava prestes a tocar as costas da mulher, no entanto, ela desapareceu.

A rocha caiu, com um grande estrondo, fazendo a fauna local fugir dali. Logo, Estér reapareceu ao lado da rocha. "Isso foi criativo, mas a execução ainda deixa a desejar."

Não houve resposta, não havia Leona.

"Oh..." Fazendo uma careta ao se dar conta do que aconteceu, Estér usou sua magia para levitar a rocha.

O corpo esmagado de Leona foi revelado.

"Sua pele rosa não pôde salvar você disso, hum?" Estér moveu a rocha, colocando-a de volta ao seu local original. Depois, ela levitou o corpo de Leona, assim como todo o sangue e tripas que havia escapado. Com mero gestos, o sangue e as tripas foram comandados para entrar no corpo e os ferimentos foram fechados.

Como se nada tivesse acontecido, o corpo de Leona estava em perfeito estado, mas sem vida.

Estér assoprou.

Como se tivesse passado uma corrente elétrica, o corpo convulsionou e Leona acordou com um sobressalto. "Ah! O que houve?!"

"Congratulações," Estér disse, "você conseguiu me acertar."

"Hã? Eu consegui? Eu não acho que..." Leona olhou envolta, confirmando que estava no meio de uma cratera. Ela então viu a rocha. "Eu fui esmagada, não é?"

"Oh sim, mas isso não importa, você me acertou." Estér sorriu. "Eu disse que você é especial, não disse? Como recompensa, você não precisará mais socar aquela rocha."

Os olhos de Leona cresceram. "É?"

Estér sorriu mais. "Ao menos não hoje."

"Hmm..." Leona abaixou a cabeça, fazendo um beiço.

/人 ◕‿‿◕ 人\

O céu nublado era escuro, tenebroso. Dentro de um labirinto de trincheiras e arame laminado, Leona sentia o cheiro da lama. Das paredes, pequenos anelídeos surgiam, seus corpos alongados se debatiam e caíam no chão. Eram tantos que o solo parecia estar vivo.

Leona tolerava aquela situação nojenta, pois esse era o seu esconderijo para o que estava a perseguindo.

O solo começou tremer. Leona então entendeu que não havia esconderijos. Ela podia fugir, mas foi o que ela sempre fez.

O solo tremeu mais e se podia ouvir o som do motor. As paredes da trincheira começaram a colapsar quando um tanque de guerra apareceu. A turreta do veículo estava justamente apontada para onde Leona estava.

A garota foi rápida em teletranspotar, reaparecendo sobre o veículo. Juntando toda vontade e força, ela socou a grossa armadura, fazendo um grande barulho de impacto, mas nenhum dano. "Merda!"

Leona havia cogitado teletransportar para dentro do tanque, mas havia uma boa razão para que ela desistisse da idéia.

Um imenso anelídeo saiu pela boca do canhão do tanque. Diferente dos pequenos que infestavam as trincheiras, essa criatura via a garota mágica como uma presa.

Leona se teletransportou para longe do tanque, para dentro da trincheira. Isso era apenas para se preparar, pois ela já havia enfrentado outra dessas criaturas.

O anelídeo era capaz de mover pela terra como um peixe se move pela água, rapidamente localizando a garota.

Leona rangeu os dentes e cerrou os punhos.

A criatura só tinha um pequeno orifício como uma boca, mas era tudo o que ela precisava. Do orifício, a criatura lançou um jato de sucos digestivos contra a sua pretensa refeição.

Não seria tão fácil assim.

Leona sumiu, escapando do ácido, e reapareceu ao lado da criatura, acertando-a com um soco. O corpo do anelídeo era mole, mas Leona conteve a força de seu golpe, pois quando seu punho atingiu o corpo, ele expeliu seus fluídos corrosivos. Leona teletransportou imediatamente para evitar os respingos, e a sua segunda pele fazia o melhor que podia para protegê-la, ainda assim, ela já tinha algumas marcas de queimadura química.

Enquanto isso, o anelídeo não demonstrava sentir dor, mantendo a sua incansável caçada, ignorando a vantagem de força que a sua presa tinha.

Desaparecendo e reaparecendo, Leona acertou mais golpes, até deixar o corpo do monstro como se estivesse sido esmagado completamente. Partes do corpo ainda apresentavam tímidos movimentos, nada que fosse uma ameaça.

Era uma vitória vã. O tanque de guerra iria logo soltar um novo anelídeo. O veículo precisava ser destruído para o pesadelo ter um fim, mas a sua armadura era forte demais. Sentindo-se impotente, Leona olhou para os seus punhos cobertos pela a sua pele rosa, ainda sujos com os fluídos do monstro.

Foi quando ela teve a idéia.

Leona pegou um punhado do fluído corrosivo do corpo do monstro. Ela avistou de longe o tanque de guerra se aproximando. Com o teletransporte, ela aterrissou sobre a turreta do veículo e depositou o líquido sobre a escotilha. Houve o som de algo queimando, o líquido borbulhou e liberou fumaça. A garota ficou surpresa com o resultado, era melhor que os esperado, talvez não seria necessário trazer mais.

O tanque parou. O veículo não podia mirar na garota, mas ele nem precisava.

Leona viu que um novo anelídeo estava rastejando para fora do canhão. Não havia mais tempo para esperar! Ela começou a socar a parte da escotilha que havia sido minada pelo ácido. A armadura começou a ceder, o que conferiu a ela mais entusiasmo para continuar batendo. Finalmente, sua mão perfurou o metal.

E o tanque estourou como um balão de ar.

"AAAAHHHH!" Leona foi lançada para alto. Ela se teletransportou, impactando contra a lama. Ela olhou para onde estaria o veículo, mas agora só havia as esteiras. O anelídeo que estava saindo pelo canhão estava caído, com apenas parte de seu corpo, se debatendo em seus últimos momentos.

Eu venci? Leona se levantou e se preparou, pois o silêncio enervante já era a resposta.

O solo estremeceu de repente e um grande verme, o maior que a garota testemunhou, emergiu de onde o tanque estava, arremessando para longe a terra e as esteiras. Sua pele tinha textura humana, com pêlos e veias.

Leona ficou boquiaberta.

A cabeça do verme era uma imensa face humana esticada, sem globos oculares. Por causa que estava esticada, parecia que o verme estava sorrindo para a garota. O monstro se lançou sobre ela com o seu imenso corpo, fazendo um grande estrondo quando aterrissou.

Felizmente, Leona pensou rápido, reaparecendo ao lado do verme e desferindo um soco com toda a força. Apesar de não haver armadura dessa vez, o resultado do ataque foi mínimo, pois o corpo do monstro era maior e de uma consistência mais muscular comparado com o anelídeo que ela enfrentara antes. "Não pode ser..."

O monstro rolou o seu corpo para esmagar a garota.

Leona escapou por um triz, teletransportando. Como ela teve pouco tempo para decidir, ela reapareceu no meio do ar, um pouco acima do monstro.

O verme gigante se debateu, e a massa do seu corpo atingiu a garota mágica.

"Agh!" Rodopiando sem controle, Leona teletransportou e capotou na lama parando em um arame laminado. "A-Aie!" Ela sentiu a dor da carne sendo cortada. Se movendo com cuidado ela examinou o seu corpo. A pele rosa havia evitado o pior, mas ela adquiriu alguns cortes profundos. Com as pontas dos dedos, ela removeu o arame, ele era muito afiado!

Foi quando ela teve outra idéia.

Vendo que o verme havia perdido ela de vista e estava procurando. Leona pegou o arame laminado e usou de muita força para torcê-lo, graças a proteção que a sua segunda pele conferia, e quebrá-lo em dois pontos, conseguindo assim uma longa parte do arame. Ela então se levantou e gritou, "EI!"

O verme se virou para ela.

Leona rangeu os dentes. "Vem me pegar, sua linguiça crescida."

O verme deu um tremendo salto, atravessando o céu como se fosse capaz de voar.

Leona olhou para o alto, com a respiração rápida, com cada mão segurando uma ponta do arame laminado. Ela presenciou a face esticada do verme crescer rapidamente enquanto ele caía.

A face do verme encontrou-se com o chão, fazendo uma grande área de trincheiras colapsar com a onda de choque gerada.

Leona havia evitado ser esmagada, reaparecendo em cima da cabeça do verme. Ela então laçou o monstro com o seu arame laminado e puxou, como um garrote.

A lâminas cortaram a pele do verme facilmente e ele emitiu um estridente guincho de dor. O monstro debateu o corpo em desespero.

A garota se manteve firme e sua posição, puxando o arame com toda a força. "Morre, morre, MORRE!"

Os movimentos do verme só pioraram a sua situação, enterrando as lâminas ainda mais em suas entranhas. Um líquido vermelho brilhante esguichava, misturando com a lama.

No entanto, o monstro não dava sinais que iria parar. Leona então começou a puxar cada ponta do arame laminado que ela estava segurando alternadamente, transformando-o em uma espécie de serra.

Os guinchos dos vermes passaram a ser grunhidos erráticos, enquanto a criatura se afogava em seu próprio sangue.

"MORRE! AAAHHH!" Leona deu mais um puxão no arame, mas ela escorregou. "NÃO!" Ela caiu, uma queda mais longa que o esperado, e suas costas encontraram com a areia úmida.

Estrelas.

A garota esqueceu de todas as dores ao ver o céu. Não era tenebroso como antes, e sim pincelado com as luzes da Via Láctea. Não havia mais sons de agonia e morte, apenas o som das ondas do mar.

Leona ergueu o torso. Ela estava de volta na praia, em algum lugar no Vietnã. Após apreciar a vista pacífica do mar banhado pela luz pálida da Lua, ela notou um objeto escuro entre as suas pernas. Uma semente da aflição. Nesse momento, ela começou ouvir alguém bater palmas.

Era Estér. "Congratulações."

Leona pegou a semente e se levantou, excitada. "Auu..." O movimento brusco lhe causou uma pontada de dor, fazendo ela se lembrar que estava suja, ferida e sangrando, mas isso não arrefeceu o seu júbilo. "Eu consegui! Eu derrotei uma bruxa, sozinha!"

"E só precisou alguns meses de treino." A mulher de longos cabelos brancos fez um gesto em direção a garota. "Agora você acredita em si mesma?"

Leona sentiu um arrepio em sua pele e então ela viu o seu sangue escorrer de volta para dentro de seus ferimentos, antes de fecharem. Isso já não era novidade, e sempre lhe dava uma sensação de derrota. "Talvez, mas essa bruxa me deu muito trabalho. Não é como você, que só precisa dizer aquela palavra... Qual é mesmo? 'Abdução'?"

"Abjuração?" Estér levantou as sobrancelhas. "É um potente feitiço anti-magia que eu aprendi de uma garota mágica. Como bruxas são seres nascidos da pura magia, ele é bem eficaz." A mulher estava levando a mão até a sua gema corrompida em sua tiara, mas parou ao se dar conta disso. "Infelizmente, para a magia funcionar, eu preciso dizer essa palavra. É uma condição estúpida, mas não fui eu que a criei."

"Uma garota mágica te ensinou isso?!" Leona voltou a ficar excitada. "Me ensina!"

"Eu não sou capaz de te ensinar isso," Estér afirmou com um ar de frieza.

"Sério?" Leona franziu a testa. "Você consegue fazer tanta coisa, é praticamente uma deusa."

"Deusa? Eu?!" Os olhos de Estér brilharam.

"Ah!" Leona tomou um susto quando a mulher translocou instantaneamente na sua frente.

"Fufufu... É verdade que posso fazer muitas coisas." O olhar rosa da mulher voltou ao normal. "Mas há coisas que só você é capaz de fazer, Leona."

"Como o quê?" A garota deu de ombros. "Eu só consigo teletransportar, e você faz isso também."

"Eu sempre terei que abrir os seus olhos, não é?" Estér disse, mais séria, "eu irei te mostrar a diferença entre mim e um poder sem limites."

Leona viu Estér se virar para o mar e a Lua. Ela olhou para a mesma direção.

"É Lua cheia. Hoje a sua presença é tão majestosa quanto serena..." Estér fechou os olhos e ergueu a cabeça, sentindo a brisa do mar. "Vamos até lá."

"Hã? Como é?"

Ainda com os olhos fechados, Estér disse com toda a naturalidade, "Vamos até a Lua."

"Não dá!" Leona balançou a cabeça.

"É claro que é possível," Estér disse, "até eu consigo."

"M-Mas não dá pra respirar e... e..." Leona sentiu estar subindo, ela não sentia mais a areia da praia sob os seus pés. "O-O quê?"

"Garotas mágicas podem sobreviver no espaço por muito mais tempo que um humano comum." Estér também começou a levitar. "Mas eu irei fazer isso ser mais confortável."

Leona foi abraçada pela mulher. "Como?"

Estér olhou profundamente nos olhos da garota. "Você não pode ver, mas eu formei uma bolha que contém a atmosfera envolta de nós."

"Isso vai dar certo?"

"Olhe envolta."

Leona atendeu ao pedido. A areia estava mais brilhante, refletindo mais luz, e com uma cor diferente. Então ela se deu conta que havia um intenso silêncio, ela podia ouvir a própria respiração e a de Estér, mas não as ondas. Ela virou bem a cabeça para procurar o mar, mas só encontrou uma imensidão inóspita que terminava em um céu limpo, uma noite perfeita. "Nós... Nós..."

"Sim, estamos na Lua," Estér respondeu, "eu recomendo que não olhe diretamente para o Sol."

"É aquela luz branca fortíssima?" A garota perguntou, "eu... acabei vendo."

"Leona?" Estér ficou preocupada.

"O que foi?" Leona se virou para ela. "Vai acontecer algo ruim?"

Estér ficou surpresa ao ver que a pele rosa da garota havia formado uma venda sobre os olhos dela. Ainda assim, a garota conseguia enxergar com nenhuma dificuldade. A mulher sorriu em face dessa pequena descoberta. "Não, está bem. O que achou desse lugar?"

"Eu não sei dizer..." Leona afastou um pouco de Estér, levitando dentro da bolha invisível que continha o ar pressurizado. "Eu consigo ouvir meu coração bater, mas eu não sei se é de emoção ou porque aqui é tão quieto."

"Isso é o mais longe que eu posso ir."

Leona ficou um tanto surpresa com aquela súbita afirmação.

Estér explicou, "Eu até poderia ir um pouco mais longe, mas o custo disso sobre a minha gema cresce exponencialmente, e eu tenho que pagar isso antes mesmo de partir."

"Ah..." Leona não tinha idéia do que dizer sobre aquela revelação.

Estér perguntou, "Você tem idéia de quanta magia você usa em seu teletransporte?"

"Não..." A garota fez uma careta, um tanto envergonhada. "Deve ser bem pouco, m-mas eu nunca usei a minha magia pra viajar tão longe. Eu nunca fui pra outro continente com ela."

"Seu teletransporte tem sempre o mesmo custo," Estér afirmou, "independente da distância."

Deixando a garota estupefata. "Você... Você pôde perceber isso."

A mulher assentiu. "A minha melhor magia de translocação elimina o tempo da equação de causa e efeito. Isso permite reposicionamento instantâneo, sem a interferência de obstáculos, mas eu ainda tenho que respeitar o tecido do espaço desse universo. Eu tenho que pagar a energia que precisaria para ir de um lugar ao outro, como se eu tivesse acelerado até próximo da velocidade da luz."

"Ah, tá..." Leona ergueu as sobrancelhas, com um semblante de alguém que entendeu quase nada.

"Sua magia é diferente." Estér sorriu. "Eu consigo sentir que você deixa esse universo."

Leona ainda estava com as sobrancelhas bem erguidas. "O quêêê...?"

"É instantâneo, mas eu senti que um portal fora aberto quando você teletransporta. Um portal que te envia para fora desse universo."

Leona balançou a cabeça, confusa. "Mas pra onde?"

"Eu tenho um bom palpite," Estér disse, "o seu desejo de liberdade deve ter criado um universo espelho. Uma cópia desse."

"Universo espelho? Tem certeza?" Leona pôs a mão em seu próprio peito, afirmando, "Eu nunca vi outro universo, nem portal, nem nada!"

"Nesse universo espelho, o tempo não deve existir. Você não gostaria de ser restrita por ele, não é?" Estér assentiu. "Naturalmente, seus sentidos não tem tempo para perceber, mas você consegue ir de imediato para qualquer lugar no universo espelho e então 'emergir' de volta ao nosso. Seu único custo é ter que abrir o portal, e é sempre o mesmo custo como te disse."

Leona fechou os olhos com força, aquilo era informação demais para absorver. "I-Isso é insano!"

"Você terá a oportunidade de provar que eu sou insana." Estér apontou para o céu. "Está vendo aquele pequeno ponto vermelho brilhante? É Marte, e você nos teletransportará para lá."

"Marte..." Leona sabia que era um planeta, mas ela não conseguia se lembrar se já tinha visto uma imagem dele no noticiário. "É muito longe..."

"Não é longe para você." Estér abraçou a garota. "Nada é longe para você."

Leona trocou olhares com a mulher, com um olhar de súplica. "E-Eu posso errar! Um erro nessa distância... Nós podemos parar em lugar nenhum no espaço, sem ter idéia de onde esteja a Terra!"

"Eu confio no que você é capaz. Você deveria fazer o mesmo consigo mesma."

O conselho era encorajador, mas Leona ainda estava relutante. Ela pousou a cabeça no torso da mulher alta. "Eu..."

Estér falou com uma voz suave, "Vamos chegar perto daquele pequenino ponto vermelho. Você sabe onde ele está, o seu coração fará o resto."

Leona assentiu timidamente e retribuiu o abraço. Ela fechou os olhos e respirou profundamente pela boca. Ela deixou escapar o ar entre os seus dentes rangidos, sendo o som mais alto naquele ambiente. Finalmente, ela juntou coragem para reabrir os olhos, vendo primeiramente o peito de Estér, então olhou para os lados.

Não havia mais a paisagem da Lua, nem um planeta vermelho, muito menos a Terra, apenas o vácuo escuro.

"Oh não..." O coração da garota apertou.

"Leona," Estér chamou.

Ouvir o seu nome foi como gatilho para as suas lágrimas. "Desculpa! Desculpa, eu não... não..."

"Vire-se."

Leona foi virada pela a sua tutora e se deparou com um enorme globo de cor ferrugem flutuando no espaço.

Estér comentou, "Não tão precisa, mas conseguiu."

Com a coração ainda apertado, Leona não conseguia acreditar.

Mas Estér sussurrou no ouvido da garota, "Vamos mais perto."

Leona apenas piscou e assentiu, logo depois disso o cenário envolta mudou.

Um deserto sem fim de pó e rochas, que se encontrava no horizonte com um céu de tons entre marrom e laranja.

Leona havia teletransportado para apenas alguns metros acima do solo marciano. Elas estavam flutuando, seguras e confortáveis dentro da bolha invisível.

"Kukuku..."

Surpresa com o riso de Estér, Leona se desvencilhou dela e se virou.

"Kukuahahahaaa!" O riso da mulher passou a ser uma gargalhada. "Hihi! HAHAHA! AAAHAHAHAHAHA!"

Leona nunca havia visto ela desse jeito, ainda havia angústia em seu peito, "Ah... Por que você..."

"Por que você pergunta? Hehe..." Estér ergueu as sobrancelhas, acompanhado de seu sorriso escancarado. "Nós somos os primeiros humanos em Marte!"

"Ah..." Leona respirou fundo e se esforçou para sorrir.

"Eu nunca estive aqui. Ninguém mais esteve aqui," Estér parecia afirmar para si mesma, assentindo excitada, perdida em suas idéias, "Será possível! Com você..."

"Uf..." Leona levou a mão ao peito, franzindo o cenho. "Comigo... O quê?"

"Com você..." A excitação de Estér se fora, seus olhos piscaram como se ela tivesse despertado de um sonho, seu sorriso ficou mais comedido. "Eu... Você é muito especial, Leona. Eu te disse que você era..." Então ela percebeu a agonia na garota. "Leona? O que está sentindo?"

"Tá doído pra respirar," ela respondeu, "o ar... uf... deve tá acabando."

"Não. Há ainda muito oxigênio dentro da bolha." Estér arregalou os olhos. "Mostre a sua gema da alma, AGORA!"

Com a demanda agressiva, Leona levantou um pouco o braço direito. Da axila, uma porção de pele rosa foi se movendo ao longo do membro, contendo uma pequena protuberância. Quando a porção de pele rosa chegou na palma da mão, ela recuou, mas deixou para trás uma gema com a forma de um X curvado segurando um olho humano na parte superior. A jóia estava muito escura, com fracos de lampejos cor de rosa.

Estér franziu as sobrancelhas, em um estado de confusão.

Mas para Leona estava claro o que aconteceu. "Eu tenho limites também," ela disse, com sorriso de resignação.

"Não, você não tem."

Afirmação de Estér foi tão sucinta quanto séria. Leona viu a mulher chacoalhar a mão rapidamente, fazendo aparecer uma semente da aflição na palma da mesma, como um truque de magia. Era a semente da aflição da bruxa que ela havia derrotado na praia.

"Mas eu fui negligente na hora de interpretar o desejo que você me contou que fez," Estér explicou enquanto purificava a gema com a semente, "você desejou liberdade, sua liberdade. Esse milagre não pode ser compartilhado, não sem um preço."

Leona sentiu seu peito leve novamente enquanto via a sua gema de brilho intenso ser coberta pela a sua pele rosa e transportada para algum ponto diferente em seu corpo. "Então seu eu transporto outras pessoas por esse tal de universo espelho, eu tenho que pagar a distância delas. Me desculpa..."

"Por que pede desculpa? Sua magia é ainda muito superior, e parece que você só paga depois que chega no destino, não há distância que você não possa cobrir instantaneamente." Estér voltou a sorrir. "Além do mais, tem outra coisa que faz você ser muito especial."

"O que mais?" Logo após perguntar, a pele rosa de Leona começou a brilhar. "Hã?! Isso..."

"Então você se lembra de nosso primeiro encontro," Estér disse.

A pele de Leona parou brilhar e ela exclamou, "Então foi você!"

A mulher deu um risinho. "Fufufu... Quando você foi roubar a semente, eu paralisei você, corpo, mente e alma. Você não poderia usar magia alguma para escapar."

Leona franziu o cenho, "Mas..."

"Sim, Leona, nada aconteceu além de suas 'vestes' brilharem. Isso é um outro resultado de seu desejo. Não há horizontes que você não possa alcançar, e não há nada que possa impedir você disso."

A garota abaixou o olhar e conjecturou, "Então, naquela vez, se eu tivesse continuado a teletransportar, você não iria conseguir me acompanhar?"

"Se você não hesitasse," Estér disse, oferecendo a semente da aflição, "mas você não precisa mais hesitar."

Leona aceitou a oferta, porém confusa. "O que quer dizer com isso?"

Estér apontou para o céu. "Baseando-se na posição do Sol, a Terra deve estar mais ou menos nessa direção. Se você errar um pouco, não se preocupe, como você estará teletransportando sozinha, não vai te custar quase nada e uma garota mágica pode ficar horas no vácuo do espaço se a gema da alma dela estiver limpa. Só não se desespere."

"E-Estér?" A garota ficou abismada.

Enquanto a mulher continuava a explicar, "Eu não tenho como sair desse planeta com a minha magia e não tenho como controlar você. Eu poderia te matar, mas eu continuaria presa aqui."

Com a respiração tensa, Leona olhou para a semente que segurava. Ela segurou o objeto metálico e escuro firmemente.

"Você entende agora? Você é livre, eu não. Eu nunca serei." Como um gesto de veneração, Estér abriu os braços e se curvou. "Aquela que você vê como uma deusa, está a sua mercê."

Uma mão foi oferecida.

Era mão de Leona, e Estér voltou a trocar olhares com ela.

Um breve silêncio, e a garota sorriu para a sua tutora enquanto expressava a única resposta que conseguiu formular. "Vamos pra casa."

Sem palavras, e a mulher sorriu para a sua discípula enquanto segurava a mão dela.

/人 ◕‿‿◕ 人\

No mais luxuoso apartamento de um hotel em Berlim Ocidental, uma partida de xadrez estava chegando em sua conclusão.

"Eu tomei o seu último peão!" Leona disse, triunfante.

"Parabéns em promover o seu peão antes de mim," Estér respondeu, olhando para a situação no tabuleiro. Ela tinha que mover a sua única peça, o rei preto, contra o rei branco e a sua rainha.

"Você já devia ter concedido." A garota estava bem excitada, com um baita sorriso.

"Você não quer dar o seu primeiro xeque-mate?" Estér moveu o seu rei.

"Beleza!" Leona moveu a rainha, ameaçando tomar o rei preto no próximo turno. "Xeque."

Estér voltou a mover a única peça que tinha.

"Xeque!" Enquanto Leona perseguia com a sua rainha. "Você tá bem calma."

"É apenas um jogo." Estér escapou da situação de xeque.

"Não é." Leona novamente ameaçou o rei com a sua rainha. "Será a minha primeira vitória em cima de ti."

Finalmente, o rei preto de Estér chegou em um dos cantos do tabuleiro.

"Fim da linha." Leona moveu a sua rainha. "Agora, eu vou garantir que o seu rei não vai pra mais lugar algum."

"E você fez isso." Estér fez um sorriso atrevido. "É um empate."

Leona piscou os olhos. "Hã?"

"Um afogamento," Estér explicou, "eu não posso mover o meu rei para uma posição que não esteja segura. Como eu não tenho nenhum movimento legal para fazer, nós temos um empate automático. Eu tinha te explicado essa regra."

"Se o seu rei não tem como escapar, então é um xeque-mate!" Leona exclamou, já com raiva.

"E por que ele precisa escapar? Ele está seguro onde está, você não colocou o meu rei em xeque dessa vez." Estér suspirou e balançou cabeça. "Você devia ter movido o seu rei também. É impossível dar xeque-mate com uma peça nesse cenário."

"Eu ia mover ele depois que eu encurralei você com a minha rainha... Eu ia..." Leona se levantou da cadeira, vociferando, "isso é besteira! Você nunca me mencionou sobre esse afogamento estúpido!"

"Sim, eu não mencionei esse termo antes." Estér deu de ombros. "Certo, vamos ignorar essa regra. Já que é o meu turno e não estamos jogando com limite de tempo, eu decido não mover o meu rei por toda eternidade, ou até você aceitar a minha oferta de empate."

Leona rangeu os dentes, mas, de repente, ela se acalmou, desviando o olhar. "Eu sabia."

Estér ergueu as sobrancelhas. "Você sabia o quê?"

"Algo estava errado, a partida estava fácil demais pra mim," a garota revelou a sua conclusão, "você fez isso de propósito, né? Você queria esse resultado."

"Astuta como sempre." Estér assentiu. "Eu estava cansada de vencer, então quis variar um pouco."

"Eu sou uma tola." Leona fechou os olhos. "Eu nunca vou te vencer."

"Não use 'nunca' tão gratuitamente." A mulher de longos cabelos brancos cruzou os braços. "Você está melhorando. Eu cada vez levo mais tempo para te derrotar. Acho que já é hora de colocarmos um tempo limite nas partidas. Que tal você ter um total de meia hora para pensar nos seus turnos, enquanto eu tenho apenas três minutos?"

"Isso é só pra fazer eu jogar mais, perder mais..." Leona balançou a cabeça. "É impossível."

"O quê? Me derrotar no xadrez? Você não tem idéia do que REALMENTE É impossível."

A ênfase foi contundente o suficiente para fazer Leona voltar a olhar para a sua tutora.

Contudo, Estér estava com os olhos arregalados, com um semblante bastante feliz. "Ah! Eu tenho uma surpresa." Ela se levantou da cadeira. "Só espere momentinho." Então ela desapareceu.

Leona não teve tempo de fazer perguntas, mas ela estava sem palavras de qualquer forma. Aquele momento fez ela lembrar de que Estér era uma garota mágica, que sempre estava semi-nua com aqueles trapos de pano cobrindo o mínimo e muitas jóias. Ela já estava mais acostumada com aparência do que com a altura daquela mulher exótica e, ainda, de muitos mistérios.

Para passar o tempo, a garota decidiu colocar as peças de xadrez de volta no tabuleiro, mas então notou que todas elas já estavam nas posições corretas.

E logo Estér retornou. "Tchamram!" Ela estava segurando um grande bolo redondo.

De fato, Leona ficou surpresa. "O quê?"

Estér sugeriu, "Vamos para essa mesa maior."

Leona a seguiu, olhando para o bolo. Era branco, coberto de glacê, com uma pequena vela de festa rosa em cima.

Estér colocou o bolo sobre a mesa e tocou o pavio da vela com a ponta do dedo indicador para acendê-lo. Depois, ela se virou para a garota. "Sabe para que é esse bolo?"

"Hmmm... Festa?"

Estér ergueu as sobrancelhas. "Por que você acha que escolhi de novo esse quarto de hotel para nós passarmos a noite?"

Leona balançou a cabeça, sem saber a resposta.

"Hoje faz um ano que nossos caminhos se cruzaram pela primeira vez!" Estér exclamou.

E Leona ainda nada disse.

A mulher alta comentou, "O tempo voa para você, não é? Aposto que achava que isso aconteceu ontem."

Leona abaixou o olhar. "Não, é o contrário."

O sorriso de Estér diminuiu.

"Tanta coisa aconteceu... Eu sinto que estava vivendo contigo por muito mais tempo."

Estér reforçou o sorriso e alegria em sua voz. "Então é ainda melhor! Foi um ano produtivo."

"É." Leona voltou a olhar para bolo. No topo dele havia um desenho feito com tinta comestível. Eram dois zé-palitos felizes de mãos dadas, um mais alto que outro, também havia o desenho de duas gemas das almas em seus formatos de ovo, ambas rosas, mas uma era mais escura que a outra. Leona reconheceu que a gema da alma rosa escura era a dela.

"Esse bolo é de massa de pão de ló com um toque de suco de limão, recheado com chantilly, coco ralado e abacaxi picado", Estér disse, "eu amo abacaxi, então eu fui bem generosa. É um bolo com um sabor cítrico, mas refrescante, e não pesa no estômago."

"Perae." Leona olhou para a mulher, boquiaberta. "Você fez esse bolo?"

"Eu usei a cozinha do hotel, eles tinham tudo o que eu precisava." Estér franziu as sobrancelhas. "Você achava que eu não era capaz disso?"

Leona havia achado estranho a ausência de Estér durante aquele dia, mas nunca imaginou que fosse isso. "Eu nunca comi a sua comida, eu acho. Você sempre faz os outros fazer por ti."

"Oh, mas hoje é uma ocasião especial. Esse bolo é para você, ele precisava de uma qualidade pessoal de alguém que se importa contigo." O semblante de Estér ficou mais sereno. "E vendo você sorrir, valeu todo o esforço."

Sorrir, ela estava sorrindo? Leona prestou a atenção em seus próprios lábios e, sim, havia um sorriso, ainda que tímido. Nesse momento uma torrente de lembranças tomou a sua mente e seus olhos lacrimejaram.

Deixando Estér preocupada. "Leona?"

A garota fungou o nariz e falou, "Eu nunca tive um bolo feito pra mim. No orfanato, nós não comemorávamos os aniversários. Era algo ruim, significava que seria mais difícil deixar aquele lugar. Quem aparecia procurando adotar alguém, sempre queriam as crianças mais jovens e os bebês."

"Devia ser um lugar entediante," Estér comentou.

Um comentário bobo, que foi o bastante para Leona se recompor. "Você teve família? Ou ainda tem..."

"Você quer dizer pais? Sim, eu tive. Aliás, muito do sou hoje é devido a minha mãe..." Estér fez uma careta, balançando a cabeça. "Não tenha inveja, é algo superestimado. Como criança, no melhor caso, você pode enxergá-los como heróis, mas são apenas pessoas que não sabem o que estão fazendo na maioria do tempo."

"Não é o seu caso, né?" Leona disse em tom de brincadeira, "pois você é uma super-heroína."

E Estér participou. "Mas que língua afiada, hein? Devo ter medo do que estou criando?"

A garota abraçou a mulher.

Estér paralisou-se, ela não esperava por aquilo.

"Obrigada por cuidar de mim."

As palavras vieram em um sussurro um tanto choroso. Ainda chocada, Estér lentamente retribuiu o gesto, se deixando ser envolvida pelo calor.

"Obrigada..."

Quando foi a última vez que ouviu isso, quando foi a última vez que sentiu isso? Estér ainda se lembrava de alguns nomes, mas não das faces que deviam acompanhá-los. Considerando ser melhor assim, a mulher interrompeu o momento com uma sugestão, "Esse bolo não é uma decoração. Vamos pegar pratos e talheres, juntas."

Após deliciarem-se com o bolo, as duas foram dormir. Compartilhando a mesma cama, Leona estava de pijama enquanto Estér continuava com o seu uniforme de garota mágica.

"Tenha uma boa noite," Leona disse.

Olhando para ela, Estér não respondeu.

Achando suspeito aquele semblante, Leona perguntou, "O que foi?"

"Ah, eu estava pensando, já que estamos um ano juntas." Estér ergueu as sobrancelhas. "Você quer fazer sexo comigo?"

Leona piscou os olhos.

A mulher deu um sorriso atrevido, para deixar mais claro que não era uma piada.

A garota então desviou o olhar, fazendo uma cara de emburrada.

"Fufu, eu esperava essa reação, mas eu também esperava mais surpresa."

"Surpresa?" Ainda sem olhar para a sua companheira de cama, Leona não segurou a sua irritação. "Com você me devorando com os olhos toda vez que estou usando a minha veste de garota mágica, seus comentários sexuais, nós sempre compartilhando a cama... Eu pensei que você iria me molestar muito antes disso."

"Molestar?!" Estér reagiu com incredulidade. "Eu jamais faria isso! Eu apenas faço com consentimento, ambos têm que apreciar o ato, senão eu nem considero como sexo. Eu não sentiria prazer algum!"

Era sério o que elas estavam discutindo? Elas estavam compartilhando um bolo justo antes. Se tinha algo que Leona não conseguia se acostumar, eram as noções sociais daquela mulher. "Bem, você não tem o meu consentimento." Ela se virou para dormir. "Boa noite."

Estér disse, "Por que não quer fazer comigo?"

"Você ainda vai perguntar ISSO?"

"Claro, eu sempre quero te conhecer melhor, Leona." Estér continuou o inquérito. "Você me vê como sendo sua mãe? É por isso que não quer fazer comigo?"

"Eu nunca tive uma mãe!" Aquilo foi a gota d'água para Leona, ela não se importava se morreria, ela voltou a olhar para Estér, vociferando, "Eu não sei como é ver alguém como 'mãe'!"

"Então é porque sou mulher?" Estér cogitou, "você é estritamente atraída sexualmente por machos?"

"Que tal eu não sentir atraída sexualmente por nada, hein?" Leona retrucou, "consegue entender isso?"

"Isso me preocupa." Estér ficou mais séria. "Alguém da sua idade ao menos teria alguma curiosidade... Você nunca se masturbou?"

Leona fez uma cara de ojeriza. "Eu não preciso responder isso."

"Me deixei massagear o seu clitóris." Estér lambeu as pontas dos dedos de sua mão. "Eu sou bem habilidosa."

O coração de Leona disparou, ela rangeu os dentes. "Você vai tá me molestando se fizer isso."

"Se isso é molestar para você, então não tenho como evitar, mas eu estou fazendo isso para te ajudar." Estér deu um leve sorriso. "E você está sempre livre para ir embora."

"Sua louca..." Leona não precisava ser lembrada disso, ela sabia que podia teletransportar, para nunca mais voltar. No entanto, o seu coração ficava pesado toda vez que emergia essa idéia. "Tá, você pode tocar lá, mas não vem com esse papo de que tá me ajudando."

"Eu estou sendo séria." Sem fazer cerimônias, Estér levou a sua mão até a calça do pijama de Leona, e então por dentro da calcinha.

Leona ficou encarando a mulher, firmemente.

Estér manteve o pequeno sorriso, enquanto a sua mão fazia todo o trabalho.

Foram poucos minutos, onde só se ouvia a tensa respiração da garota.

Finalmente, Estér tirou a mão, pronunciando um veredito, "É, você não ficou excitada."

"Satisfeita?" Leona disse, "já fiz 'sexo' o bastante contigo?"

O sorriso de Estér cresceu, ao ponto de mostrar os dentes. "Heheheee."

"O que é tão engraçado?"

"Eu menti para você. Eu não fiz massagem no seu clitóris." Estér mostrou os dedos da mão que ela havia utilizado, havia sangue. "Não, eu belisquei ele até cortá-lo fora."

Com os olhos arregalando, Leona olhou para a sua calça e viu uma marca vermelha. Ela puxou a calça e viu que a sua calcinha estava ensanguentada.

"Não se preocupe, eu já consertei," Estér afirmou, "eu só não coloquei o sangue de volta para que você não tivesse nenhuma dúvida do que eu fiz."

Leona ficou boquiaberta, ainda processando aquilo.

"Para estar tão surpresa, você nem estava ciente de que havia usado magia para cortar qualquer sensação ali embaixo." Estér voltou a ficar séria. "Alguém abusou de você? É um trauma?"

"Não... Ninguém... Eu... Eu..." Leona cobriu a face com ambas as mãos. "Oh meu Deus."

"Então é apenas você. O orfanato onde você cresceu deve ser gerido por freiras, não é? Bem comum em um país onde a igreja católica é predominante," a mulher continuou falando, quase sussurrando, "deixa eu adivinhar. Você experimentou masturbação, uma vez, mas então começou a sentir algo estranho, era uma sensação intensa, você temeu se perder nela. Você parou e se sentiu úmida, suja, culpada... É o que te ensinaram. Como garota mágica, essas idéias moldam o que você pode sentir ou não em seu corpo, pois ele tem que obedecer a sua alma, nunca o oposto."

"Por quê..." Leona olhou para ela, um olhar de súplica. "Por que você quer tanto que eu me interesse em sexo?"

"O que você tem é uma fraqueza emocional, e você está gastando magia com isso," Estér explicou em um tom frio, "eu disse a você que eu faria você ser forte. Agora, me ofereça a sua gema da alma."

Leona atendeu a súbita demanda, sua mente ainda ocupada com a explicação um tanto dura. O anel na mão esquerda se tornou a jóia em forma de ovo.

O tênue brilho rosa da gema banhou as duas na cama. Com a ponta do dedo indicador, Estér tocou a superfície da jóia e o brilho rosa ficou mais forte.

"O que você vaaah..." Leona sentiu um formigamento quente surgir em sua lombar e fluir rapidamente para baixo, entre as suas nádegas, até chegar em sua genitália. "Ah!"

"A sua gema da alma pode controlar e prevenir o que o seu corpo sente," Estér falou, "mas nada pode fazer em face de um estímulo direto."

Leona estava sentindo o suor em seu corpo, sua pele estava mais sensível. A região de sua genitália pulsava, pedindo atenção. Ela olhou para lá e então reparou em seus próprios seios, os mamilos estavam duros.

Eu estou nua?

A garota ficou tão surpresa quanto confusa ao se dar conta que não estava mais vestindo o pijama, nem a calcinha, mas isso não abateu a miríade de sensações que ela tinha, muito pelo contrário, parecia que havia inflamado ainda mais um doce desejo de ser apalpada.

Estér rolou parcialmente sobre Leona, encaixando uma de suas pernas entre as da garota.

Leona viu que a mulher alta também estava completamente nua. Um dos seios da mulher gentilmente cobriam o modesto busto da garota, as peles lisas e macias dos dois corpos se moldando, se tornando um.

"Fufufu..." Os olhos de Estér pareciam mais vivos. "Considere esse o meu último presente de hoje." Os lábios dela foram se encontrando com os da garota. "Eu vou te mostrar os prazeres que uma mulher pode ter."

O tempo perdeu sentido para Leona, envolvida pela luxúria. Seus olhos lacrimejavam, seus músculos contraíam involuntariamente a cada onda de prazer. Isso perdurou até a exaustão, suas pernas ficaram fracas e tremiam, mas havia uma satisfação remanescente, como estivesse flutuando.

Acariciando a cabeça de sua pupila, Estér perguntou, "Gostou?"

Leona sentiu sono, mas lutou contra isso. "Eu... Eu ainda tenho que fazer você sentir prazer também."

"Huhuhu! Não precisa!" Estér balançou a cabeça. "Ver o seu corpo se contorcer e os seus olhos revirarem já me entreteve o bastante."

"Ok..." Leona respondeu, abaixando o olhar, em ar de introspecção.

"Oh? O que está tentando esconder de mim?" Estér questionou, brincando, "eu estava apenas sendo educada quando perguntei se você gostou. Eu sei que sim, não tente me enganar, mas talvez você ainda sente que isso é errado."

"Não é sobre o que fizemos nesta noite." Leona fechou os olhos e suspirou. "É que algo dentro de mim ainda diz que é um grave erro estar contigo, mas eu também não consigo imaginar viver sem você."

"Bem, para ajudar você com esse dilema, eu posso lembrar você de que eu nunca disse que eu era uma boa pessoa." Estér deu de ombros. "Eu já fui pior, mas... É, eu definitivamente não sou de bom coração."

Leona reabriu os olhos, com uma questão tão súbita quanto a sua troca de olhares com a mulher, "Você já matou alguém?"

"Sim," Estér respondeu sem pestanejar.

Leona pressionou os lábios e disse, como um sussurro, "Eu também."

"Você?" Estér piscou os olhos, surpresa. "Como? Você fugia, não era sempre assim?"

"Eu era uma ladra. Eu roubava sementes da aflição de outras garotas mágicas," Leona pausou por um momento antes de continuar, "quando comecei a fazer isso, eu seguia elas, era mais conveniente. Logo eu comecei a seguir apenas uma certa garota, era ainda mais conveniente. Eu seguia ela até durante sua rotina mundana. Eu ainda sei o endereço da casa dela, até o nome do gato de estimação."

"Ela não devia estar feliz com isso," Estér comentou.

"É claro que ela tentou me matar quando eu roubava ela, mas a magia dela era lenta demais pra me pegar. As armadilhas que ela tentou foram inúteis. Ela estava só, não havia outras garotas que pudessem ajudá-la, ela era fácil... Então eu roubei e roubei." Leona respirou profundamente. "No começo eram palavras de ódio e ameaças, mas depois foi choro e súplicas, mas eu não ligava. Eu achava justo, pois eu não tinha arma e não acreditava que podia derrotar uma bruxa. Eu estocava as sementes, eu nem necessitava de tantas, 'por segurança' eu pensava. Até que um dia, quando roubei ela novamente, ouvi um grito inumano e ela se tornou uma bruxa na minha frente."

"Eu senti que você já sabia a verdade sobre as bruxas quando te contei. Você nem piscou." Estér ergueu as sobrancelhas. "Mas nunca imaginei esse contexto. Isso mudou você?"

"Sim." Leona assentiu. "Eu continuei roubando, mas eu evitava fazer isso com a mesma garota."

"E nisso nós somos diferentes," Estér disse, com desprazer, "muitos morreram devido as minhas ambições e, mesmo que essas ambições perderam sentindo, eu irei matar muito mais."

"Eu não vi você matar ninguém durante esse ano comigo," Leona disse, "por que diz isso?"

Estér apontou para a gema escura em sua tiara. "Isso."

Leona entendeu, "Então você vai se tornar uma bruxa em breve?"

"Eu não sei se isso vai acontecer, muito menos quando, mas eu sei de alguém que gostaria que isso acontecesse." Estér semicerrou o olhar. "Kyuubey."

"Hã?!" A garota ficou surpresa com aquele nome que ela já não ouvia faz muito tempo.

"Hora de ensinar coisa avançada. Kyuubey obtém energia quando garotas mágicas se tornam bruxas, e isso é tudo que importa para ele no fim das contas." Os olhos de Estér brilharam. "Eu sou uma garota mágica poderosa, você consegue imaginar que ele poderá obter muita energia de mim."

"Eu não tinha boa relação com aquele bicho, ele ficava insistindo que eu tinha que caçar bruxas, mas eu nunca o vi como sendo mal. Eu me sinto agradecida pelo desejo que ele me concedeu..." Leona ponderou, "então é por isso que ele nunca nos visitou. Você não deve estar deixando."

"Exatamente." Os olhos de Estér pararam de brilhar, mas ela os arregalou para dar mais ênfase ao que iria dizer. "Eu achei que você já havia entendido, mas vejo que amaciei a verdade demais. Kyuubey é inimigo da humanidade, não menos que um genocida. Se ele aparecer, não confie em nada que ele disser. Nenhuma uma palavra!"

Leona assentiu.

Estér se recompôs. "Quanto a como eu a minha gema ficou nesse estado... Assim como você, para sobreviver, eu cometi pecados. Eu agora estou em um ponto sem volta, sobreviver não basta. Eu tenho que encontrar uma maneira para que os meus pecados não destruam o mundo. Por isso eu tenho uma missão para você."

"M-Missão?" Era a primeira vez que a garota ouvia essa palavra sendo direcionada a ela.

"Nós iremos para os Estados Unidos, logo," Estér explicou, "lá há uma organização de garotas mágicas que está prosperando, conhecida como Irmandade das Almas. Você irá fazer parte dessa organização."

"Existe uma organização de garotas mágicas? Não é um grupo pequeno?" Leona ficou boquiaberta. "E... E como? Eu nem sei inglês!"

"Isso perfeito." Estér sorriu. "Você irá fingir ser uma imigrante ilegal. Essa organização tem priorizado o recrutamento de garotas mágicas imigrantes, pois trabalham por um período integral, já que elas não têm um lugar, algumas vezes nem uma família."

"Você não vai fazer parte da organização também?"

"Olhe para mim." A mulher adulta fez um gesto em direção a sua gema corrompida e depois para o seu forte corpo nu. "Eles irão me tratar como uma ameaça e irão suspeitar de você também."

Leona desviou o olhar e murmurou, "Então você tem noção disso..."

"O que disse?"

"N-Nada." A garota fez um sorriso sem jeito.

"Eu estarei contigo, mas estarei escondendo a minha presença dos outros," Estér falou, "eu terei que ser extra cuidadosa, pois haverá muitas garotas mágicas com habilidades diferentes lá, mas esse é um problema meu. Não se preocupe."

Não atendendo ao pedido da mulher, Leona fez uma cara de preocupação. "Como você sabe dessa organização? O que eu vou ter que fazer lá?"

"Esses detalhes eu deixarei para amanhã, não há pressa." Estér acariciou a cabeça de Leona. "Descanse, você precisa digerir toda essa informação. Eu te protegerei, mas não posso dizer que não será perigoso. Lembre-se que você sempre terá a liberdade de recusar a fazer isso."

"Mas se eu recusar, muitos irão morrer," a garota respondeu, "como você disse."

"Eu disse que talvez sim, talvez não..." Estér suspirou. "A verdade é... Eu não estou acostumada a pedir um favor para alguém. Portan-"

Leona sorriu.

"Hã?" Estér franziu as sobrancelhas. "Não fique orgulhosa com isso!" Ela se virou na cama. "Vamos dormir."

Olhando para os longos cabelos branco e a costa nua da mulher, Leona continuou a sorrir, até deixar os seus olhos fecharem.

Ambas foram dormir, mas apenas uma realmente fez isso.

Mesmo que quisesse, Estér não conseguiria, pois era o convite de pesadelos. Nenhum sendo o seu.

Ela apenas aguardou, prestando atenção no som da respiração da garota, até confirmar que ela estava em sono profundo.

A mulher deixou a cama com cuidado e olhou uma última vez para Leona, então o ar frio de inverno envolveu o seu corpo nu, fazendo a sua pele arrepiar.

Estér agora estava em uma pequena sacada do hotel, com a vista da cidade dividida. O céu nublado era tenebroso, a manhã demoraria para chegar.

Ela se virou.

Desafiando a gravidade, havia uma criatura com a suas quatro patas coladas na parede. Seus olhos vermelhos brilhavam na sombra e seus dois pares de orelhas, um longo e um curto, estavam levantados, como se estivessem tensos.

"Eu permito que você fale." Estér fez um sorriso educado. "Qu'ube."

A criatura saltou da parede para o parapeito da sacada. Deixando a sombra, Kyuubey apresentou a brancura de sua pelagem e a graciosidade de sua longa e volumosa cauda. [Eu posso?]

"Por favor," Estér confirmou.

Kyuubey sentou no parapeito e encarou a mulher. [O você achou de Leona Julieta Contreras? Ela atende as suas especificações?]

A mulher assentiu. "Oh sim, finalmente você encontrou a garota certa. Eu diria até que você superou o meu requerimento."

[Bom saber, mas isso levanta outra questão.]

Estér não demonstrou surpresa alguma. "Diga."

A imagem da mulher refletiu nos olhos vermelhos da criatura. [Por que você ainda não tomou a alma dela?]

"Porque ela me teme, me odeia, me ama, confia em mim... E tudo é genuíno." Estér sorriu. "Eu tenho certeza que as magias que eu possuo não podem influenciar a opinião que ela tem sobre mim. Eu nem sei quando foi a última vez que tive um relacionamento real."

[Eu não entendo.] Kyuubey balançou a sua longa cauda. [O que isso te impede de cumprir o nosso acordo?]

Estér revirou os olhos e suspirou. "Eu vou traduzir para você: ela muito única e preciosa. Seria um desperdício juntar ela com a escória dentro de minha gema."

[Preciosa e única para você, eu suponho...] Kyuubey fechou os olhos e fez um leve aceno com a cabeça, como se estivesse ponderando. [Leona sabe que você absorve as almas de outras garotas mágicas?]

"Quase." Estér sentiu o intuito venenoso da criatura. "A sua informação de que ela já havia matado uma garota mágica provou ser útil." Ela ergueu as sobrancelhas, sorrindo. "Esta noite, ela confessou para mim sobre isso, e então eu comecei a associar a história dela com a minha. Ela irá entender que vidas são tomadas em nome da sobrevivência, é como o universo funciona, não é?"

[Mesmo após tanto tempo estudando em como ter um relacionamento cooperativo com vocês, humanos, ainda continuamos a aprender novas abordagens.] Os olhos de Kyuubey brilharam em carmesim. [Contudo, você decidiu quebrar um acordo de novo.]

"O acordo ganha-ganha continua. Eu cedo a minha vontade e me torno uma bruxa, você terá toda a energia que está em minha gema." Estér assentiu. "Com a sua garantia de que a Terra e seus habitantes permaneçam seguros." E então ela sorriu. "Isso seria fácil se você me levasse para longe desse planeta com a sua tecnologia."

[Nós já dissemos para você que não aceitamos. Você nos traiu uma vez e sua magia é perigosa.]

"Aaawww, Qu'ube, está com medinho de mim?" Faíscas negras surgiram da gema na tiara dela. "Pois bem, eu estou preparando o meu próprio plano de fuga, e de quebra eu estarei ajudando você quanto a Irmandade das Almas."

As pequenas orelhas de Kyuubey viraram para a mulher. [O que você sabe sobre eles?]

"Agora está interessado?" Estér disse, erguendo as sobrancelhas, "eu sei que eles prosperaram tanto que começaram a investir em bases de pesquisa. Matriarca realmente quer se livrar de você, mas eu pretendo redirecionar os esforços deles para desenvolvimento aeroespacial." Ela olhou para o céu escuro. "Se tem algo bom nessas últimas décadas de tensões e conflitos entre nações, foram os avanços nos veículos espaciais. Foram lançadas duas sondas, Voyager 1 e 2, ambas destinadas a alcançar os limites do nosso sistema solar. É bem inspirador."

[Você pretende deixar esse planeta através de tecnologia humana? Com um plano mirabolante envolvendo a Irmandade das Almas?] Kyuubey utilizou a sua cauda para apontar para a janela do hotel. [Você deveria tomar a alma de Leona enquanto ainda pode.]

"Por que a impaciência?" Estér expressou um sorriso sarcástico. "Você já esperou tanto, por que não esperaria mais?"

[Há uma quota.]

"Quota?" A mulher parou de sorrir. "Que tipo de quota? Energia?"

[Exatamente.] Kyuubey se espreguiçou, curvando as costas e empinando a traseira. [Nós já estimamos, com grande precisão, a energia que você irá liberar quando se tornar uma bruxa. Eventualmente, essa energia será o suficiente para alcançar a quota. Nesse caso, nós iremos tomar uma decisão.]

"Eu não posso dizer que compreendo essa história de quota, mas..." Com um leve semblante de repulsa, Estér perguntou, "Que decisão?"

[Esse mundo será destruído.] Kyuubey disse com a sua indiferença inumana. [Tudo que você estima e protege será tirado de ti.]

"Ah é?" Estér respondeu, com desdém, "isso não funcionou na última vez."

[Nós já antecipamos isso, mas dessa vez você ficará vagando no vácuo do espaço. Mesmo que não seja afligida pelo desespero, você não terá para onde ir, não haverá sementes para purificar a sua gema. Será apenas uma questão de tempo.] Com a pata, Kyuubey apontou para janela do apartamento do hotel. [Mas você ainda tem uma escolha. Tome a alma da garota agora mesmo, teletransporte para longe desse planeta, se torne uma bruxa. Esse mundo permanecerá seguro, esse é o nosso acordo.]

Os longos cabelos brancos da mulher nua balançaram com a brisa fria, enquanto ela abriu um sorriso. "Essa é a sua fraqueza."

[O que disse?]

"Excetuando essa quota, que mais parece uma desculpa barata, todo o resto não me surpreende. A sua chantagem não poderia ser mais lógica, de um ser que pôs a razão como a virtude absoluta. Isso era previsível, essa É a sua fraqueza." Os olhos rosas de Estér brilharam. "Estime o quanto quiser, você nem sequer compreende o poder que eu tenho agora, a história não irá se repetir." Com uma expressão triunfante, ela afirmou, "os humanos alcançarão as estrelas, e quando esse dia chegar, você terá muito a responder."

[Eisheth Zenunim.]

Ao ouvir aquele nome, a mulher parou, todos músculos de seu corpo nu tensionaram.

[Berço da fé, mantenedora da humanidade.] Kyuubey se virou, olhando para a cidade. [Você ainda tem essa desilusão? Depois de todo esse tempo, você não reparou no que está acontecendo com aqueles que você jura proteger? Não somente a tecnologia está evoluindo, mas a sociedade, as idéias. A humanidade chegou em um ponto na história onde eles têm a consciência de que as ações de cada indivíduo estão interligadas com todos os demais de sua espécie. Paz, ordem, cooperação, equilíbrio... Esses valores vão sendo gradativamente mais presentes nesse mundo.]

"Sério que você vê isso?" Estér pressionou os lábios, seu corpo tremendo, ameaçando perder a compostura. "A humanidade chegou em um ponto na história onde eles podem extinguir a si mesmo."

[Para isso há contratos que eu posso fazer com certas garotas. E há você para protegê-los, como você acabara de admitir.]

Ela rangeu os dentes.

[Nós já testemunhamos a evolução de muitas sociedades, podemos antever o que deve acontecer, naturalmente, pois esse é o único caminho para a sobrevivência.] Kyuubey olhou para o céu, para uma abertura nas nuvens, com a lua revelada. [Se os humanos alcançarem as estrelas, nós não precisaremos dar nenhuma resposta, pois eles serão como nós. Eu apenas me pergunto, se esse dia chegar, o que você irá-] Uma força invisível comprimiu o corpo da criatura e a fez levitar. [O que está fazendo? Você me permitiu falar.]

"Eu não permiti você usar esse nome." Estér fez um gesto com a mão, como se estivesse dando um peteleco no ar.

Kyuubey voou na velocidade de uma bala, atingindo a parede de outro prédio, marcando-o em vermelho.


A pomba e o leão

Na região árida da Austrália, sentada em uma pedra, Estér aguardava.

'Vestindo' apenas a sua segunda pele rosa, Leona apareceu, primeiramente em um ponto distante de onde a outra mulher estava, mas ela corrigiu quase que instantaneamente. Ela segurava cinco sementes da aflição em suas mãos, sangue escorria de sua boca e narinas.

Estér ergueu as sobrancelhas. "Você teve problemas."

Leona nada disse ao comentário, apenas caminhou em direção a ela, mas os seus sentidos e pernas falharam. Ela caiu para frente.

"Leona!"

Ela sentiu o imediato abraço de Estér, que devia ter teletransportado. [Eu fui burra. Eu achei que tinha matado uma bruxa, mas ela curou os ferimentos. Eu-]

"Eu não quero explicações," Estér disse, "mostre-me o ferimento."

Tendo uma respiração curta e rápida, Leona se esforçou para ficar de pé. Uma porção de pele rosa se moveu, deixando a área do peito, revelando um ferimento que esguichou sangue vermelho vivo sobre a outra mulher.

"O lado esquerdo do seu coração foi perfurado, sua cavidade torácica foi preenchida com sangue, impedindo os seus pulmões de expandirem." Os olhos de Estér tiveram um flash brilhante. "Simples."

O sangue que havia acabado de esguichar parou em pleno ar e começou retornar ao ferimento. Depois, o mesmo aconteceu com o sangue que estava sobre Estér e no solo.

"Ah..." Leona puxou ar, sentindo os seus pulmões inflarem, enquanto o sangue expelido também retornava pela a sua boca e narinas. Ela sentiu seus pômulos enrubescerem.

Vendo o ferimento fechar sem deixar nenhuma marca, Estér disse, "está feito." Ela se virou retornou para a rocha onde estava sentada antes. As cinco sementes da aflição que haviam caído no chão começaram a levitar e seguir a mulher exótica.

Leona ficou onde estava, respirando lentamente, com cuidado. Nada estava errado, a cura havia sido perfeita como sempre.

Estér sentou na rocha, enquanto as sementes orbitavam o seu braço. Elas finalmente se aproximaram e pousaram gentilmente na palma de sua mão.

Um problema resolvido, mas era o menor de todos. Leona se aproximou. "O que vamos fazer?"

Estér respondeu prontamente, "Podemos sair."

A mulher de cabelos rosa escurou franziu o cenho. "Sair?"

"Sim, e retornar a nossa vida antes de quando eu pus você na Irmandade das Almas. Nós já conversamos sobre isso." Estér sorriu e deu de ombros. "Somente eu e você, vivendo juntas, caçando bruxas... Sem treinamentos dessa vez. Você não precis-"

"Caçar bruxas?" Leona a interrompeu. "Essas novas bruxas? Pois é o que só vai ter de agora em diante. O disfarce delas é virtualmente perfeito. Como vamos caçá-las? Nós vamos matar todas as garotas mágicas que encontrarmos? Ou você pretende consumir as almas delas? Você consegue tomar a alma de uma bruxa?"

"Oh, por favor!" Estér balançou a cabeça, incomodada. "Não é hora para ser infantil."

"Como você acha que vai ser como era antes?" Leona abriu os braços. "Como eu vou conseguir viver contigo e essa sua gema corrompida, sempre me lembrando que todo mundo vai morrer quando você virar uma bruxa."

Estér suspirou e disse, "Se."

Leona levantou a voz, "Não parecia ser um 'Se'!"

E Estér levantou uma sobrancelha.

"Você toda hora me perguntava sobre o progresso da construção do foguete. Sempre insinuando que tinha que ficar pronto a qualquer custo." Lágrimas de raiva desceram pelos pômulos da Leona. "Eu tava me sentindo que estava correndo contra o tempo! E deve ser algo sobre o Kyuubey que você não me contou, pois você sempre evita esse assunto."

Estér virou a face e trouxe a sua mão aos lábios, pensativa, seus dedos trêmulos.

"Mas você tá diferente agora..."

"Diferente..." Estér repetiu o que a outra mulher disse.

"É. Ultimamente, você parece mais... relaxada. Você começou a vir com essas idéias de ir embora. Você estava perguntando menos sobre o foguete."

"Ultimamente..." Novamente ela repetiu.

Deixando Leona mais impaciente. "Sim! Desde o ano passado, eu acho. Olha pra mim!"

Estér fechou os olhos e murmurou, "Tanto tempo... Eu esqueci..."

"O que disse?!" Leona apontou para si mesma e vociferou, "OLHA PRA MIM!"

"Nada." Estér voltou a olhar para a sua amada, recuperando qualquer traço de compostura que havia perdido. "Não há nada a dizer, Leona. Me desculpe."

Mais lágrimas desceram dos olhos de Leona, com ela pressionando os lábios e fungando o nariz. Ela então balançou a cabeça e disse, "O foguete foi destruído, nosso plano de décadas, e não tá nem aí. Até parece que desistiu."

Estér respondeu com frieza, "Eu já vivi tempo o bastante para estar acostumada com os revéses da vida."

"É minha culpa, você sabe disso. Eu quis manter Inquisidor vivo, mas não é só isso, eu não consigo liderar. Quando as coisas saíam do controle, eu me senti perdida, procurando por ti." Leona assentiu. "Você sabia que eu iria fracassar, por isso que está agindo assim pra me proteger."

"Você fez melhor do que eu esperava." Estér arregalou os olhos, pedindo, "Pare de não ter fé em si mesma!"

Outra lágrima de Leona desceu. "Eu ainda posso consertar isso."

Estér paralisou por um momento, ficando muito séria. "Como?"

Leona se aproximou ainda mais de Estér, em passos lentos.

Tão perto que a mulher de cabelos brancos teve que levantar a cabeça para continuar olhando para aquele par de olhos rosa escuros.

Leona esboçou um leve sorriso. "Você sempre poderia ter tomado a minha alma. O mundo estaria salvo."

"Nós já conversamos sobre isso. Eu já perdi a conta de quantas vezes," Estér afirmou, "eu não fiz porque eu te amo."

"Você tem uma existência longa e solitária, eu fui descobrindo essa parte de você enquanto eu me tornava uma adulta." As lágrimas umedeceram os lábios sorridentes de Leona. "Eu imaginava essa dor silenciosa quando eu pensava sobre esse plano do foguete dar certo. Depois, eu comecei a senti-la também."

Com a respiração controlada, Estér escolheu as palavras, "Leona, por favor, não..."

"Você não precisa tomar a minha alma," Leona disse assentindo, mais determinada, "eu irei teletransportar você para os confins do universo. Será tão longe que nem Kyuubey vai conseguir te achar."

Estér disse na forma mais contundente possível, "Se fizer isso você vai se tornar uma bruxa imediatamente."

"Você não estará só," Leona respondeu sem hesitar, "e eu estarei aonde meu coração pertence."

"Me mostra a sua gema da alma."

Leona viu as sementes da aflição deixarem a mão de Estér e voltarem a flutuar no ar. "Você não pensando..."

"Sim, estou." Estér demandou, com toda a seriedade, "Me mostre, agora."

Enquanto Leona expressava desgosto, um pequeno calombo que estava em seu calcanhar esquerdo, coberto pela pele rosa, começou a mover. O calombo viajou pelas conexões que se formavam entre as porções de pele rosa, até chegar na palma da mão. A pele rosa recuou, revelando a gema da alma com tom rosa mais escuro do que o usual, podendo ser confundido com uma cor roxa.

Ao ver aquilo, Estér olhou no fundo dos olhos de Leona enquanto pegava a gema.

Leona viu uma das sementes flutuantes se aproximar de sua gema, então um fio de escuridão foi sendo sugado da gema para a semente. "Minha gema está poluída, mas eu sou experiente o bastante para saber que essa quantidade não é o suficiente para influenciar as minhas faculdades mentais."

Sem responder, Estér fechou os olhos e respirou fundo enquanto terminava de purificar gema.

Sentindo-se ignorara e vendo a sua gema brilhar com pureza, Leona bradou, "Minha decisão não mudou, pois nunca seria o desespero que me move, mas a minha liberdade de estar contigo!"

Estér levou a gema em sua mão até a gema corrompida que estava em sua tiara. A gema na mão se dissolveu em uma essência rosa escura, que espiralou em direção a gema na tiara.

Sem mais palavras. Estér se levantou e abraçou o corpo colapsado de Leona, sentindo todo o peso. Com os olhos ainda fechados, ela sentiu e ouviu o ar do deserto, assim como o ar de seus pulmões.

Quando seus braços não podiam mais sentir nenhum peso, e seus dedos não podiam mais sentir o toque da pele, Estér abriu os olhos. A visão estava borrada, ela piscou e sentiu um par de trilhas de líquido quente descer pela a sua face. Ela tocou o líquido com o dedo e depois o lambeu. Em lento degustar, ela sentiu o gosto salgado.

"Por que eu ainda choro?"

A pessoa que teria alguma chance de responder essa pergunta não estava mais presente. Seria uma chance ínfima, Estér concluiu, não melhor que os outros.

Então, Estér viu uma mancha negra se aproximar rapidamente pelo céu.

Uma garota, vestindo um traje fúnebre, aterrissou, recolhendo as suas majestosas asas de energia escura. Seu olhar lilás era de animosidade e cautela.

A célebre convidada havia chegado em tempo. Estér sorriu. "Bom dia, Homura-chan."


Próximo capítulo: A árbitra