Cap 001 – Começa Uma Partida de RPG.

Timóteo não possuía muito conhecimento técnico científico, mas era persuasivo. Conseguiu um espaço naquela feira de ciência mesmo propondo um assunto controverso. Seu estande era o menor de todos, tendo somente uma mesa redonda de bar e duas cadeiras de plástico. Para chamar atenção havia uma plaquinha com os dizeres: "me convença de que a Terra não é plana". Muitas pessoas aceitaram o desafio, mas, como a maioria também não tinha muito saber acadêmico, não se chegou a nenhuma comprovação. Timóteo se sentia vitorioso. Como não havia sofrido uma derrota definitiva, parte de seu ego considerou que tinha ganhado o dia.

Se aproximava de onze da noite, o evento tinha terminado e os participantes já estavam desarmando seus estandes. Timóteo era um dos últimos a se recolher quando uma voz inesperada se fez presente. - Oi, me chamo Clemente. Ainda aceita discutir o assunto? - O homem que se dirigiu ao conspiracionista era um idoso com o cabelo todo grisalho. Apesar de aparentar ter uma idade avançada, seu porte era altivo.

Timóteo estava cansado, por isso ficou tentado a rejeitar o convite. Mas, no final, a curiosidade venceu e ele permitiu que o senhor se sentasse a sua frente. - Muito bem, quer começar argumentando?

- Sim. A propósito, você está certo, em parte. - Timóteo ficou surpreso com a resposta direta, mas seu ânimo murchou logo em seguida. - A Terra já foi plana, já foi oca e já foi tão grande quanto o universo. Isso é, ela agora é esférica, mas, a depender da época, ou da região, ela já assumiu outras formas.

- Onde quer chegar? - Timóteo se perguntava se o homem a sua frente estava desperdiçando seu precioso tempo de descanso com algum tipo de gozação ou se era louco.

- Quando foi que você chegou a essa conclusão sobre o nosso planeta? Após uma palestra conservadora ou depois de ver muitos vídeos na internet? Onde eu quero chegar: você nunca viu com os próprios olhos as dimensões da Terra. Como pode ter tanta certeza?

- Tenho fé!

Antes de prosseguir, Clemente bateu com a palma da mão direita na mesa duas vezes e em seguida apontou para Timóteo de uma maneira acusatória. - É esse o problema! É a fé! Duas ou três almas dividindo o mesmo alvo mental não causam muitos problemas. Mil ou duas mil, já é outra história. A Terra é redonda, meu caro, isso posso garantir. Mas ela pode não continuar assim se várias pessoas como você se juntarem no mesmo pensamento. Você é muito encantador com as palavras, é por isso que eu estou aqui. Vim garantir que as coisas continuem no mesmo fluxo.

- Tá bom, você já teve seus quinze minutos de holofote. Estou fechando.

Antes que Timóteo pudesse reagir, Clemente tirou de um dos bolsos de sua calça um objeto fino e preto, que mais parecia uma batuta de maestro. - Sabe, uma boa quantidade de jovens acredita que dá para fazer muito estrago com esse objeto, uma simples varinha. - Clemente apontou seu objeto mágico na direção de Timóteo e entoou um feitiço que deveria ser somente imaginário. - Avada Kedavra! - Um raio verde emergiu da ponta da varinha e acertou Timóteo em cheio no peito.

O homem das teorias perigosas tombou de costas para o chão vitima de um mal súbito misterioso. Seu corpo havia simplesmente desistido de viver. Legistas o examinariam, mas não encontrariam nenhuma causa, natural ou não. Clemente se levantou, guardou a arma do crime de volta no seu lugar e calmamente se dirigiu até a saída da feira.

XXXXXX

A dupla estava de vigia no terraço de um prédio próximo. Situado diante deles, no sexto andar, havia o quarto de hotel ao qual estavam espionando. Ao lado de Clemente, conversando com ele, havia um homem vestido com uma bata africana branca, mas cheia de adornos coloridos.- Tem certeza que esse é o homem certo, Clemente? Ele parece tão decadente.

- Não sou eu que faço as regras. - Baguera, colocando suas mãos em uma posição de concha, enfeitiçou um inseto pequeno, um besouro, até este ficar colorido e emitir uma luz brilhante. O animal foi até a janela que era alvo do interesse dos dois magos e esperou.

Dentro do quarto de hotel, que estava uma bagunça, um homem de vinte e sete anos se esparramava na cama. Deitadas com ele, uma em cada lado, havia duas fãs de seu trabalho. Marcos Mignola, que era descendente de pai italiano, era vocalista da banda No Faith Left. Como um bom rockstar estereotipado, naquela noite, que se seguia a um show, ele comemorou o sucesso da turnê com uma mistura explosiva de sexo, drogas e rock n´ roll.

O quarto estava em silêncio, suas amantes já tinham adormecido, porém o espírito do rockstar estava inquieto. O último hit de sua banda não saia de sua cabeça, repetindo em sua mente a exaustão. A música Spirit Hollow falava sobre desesperança. Sobre como era viver uma vida sem sentido, um dia atrás do outro e nada a mais. Como a No Faith Left era uma banda tirada a gótica, ninguém entendeu ou levou o pedido de ajuda muito a sério.

Marcos estava olhando para o teto quando começou a tremer e a engasgar. Mesmo não conseguindo se mexer direito, o barulho que fez foi alto o suficiente para acordar as moças. Temendo que fossem envolvidas em um caso de overdose, as duas se vestiram de modo rápido e desleixado, e em seguida fugiram do quarto. Assim que o rockstar foi deixado sozinho, o besouro enfeitiçado foi até ele e entrou em sua boca.

O inseto, assim que entrou no sistema digestivo de Marcos, apaziguou os efeitos da droga sintética que minava sua fisiologia. Sem que ninguém pudesse estar ali para testemunhar, o corpo de Marcos foi erguido por uma força invisível a uma distância de um metro e meio da cama. O jovem gritou, mas o seu desespero permaneceu inaudível diante de uma explosão de energia mística. O raio azul foi emanado do seu corpo e terminou de destruir o quarto que já havia visto dias melhores.

Marcos desmaiou e sua consciência foi teletransportada para outro plano. Antes de abrir os olhos, o rockstar sentiu areia por entre seus dedos. O clima era agradável, a temperatura parecia não estar muito acima de vinte graus. Marcos se pôs sentado e se perguntou em voz alta. - Eu morri?

- Não. Mesmo com tantas tentativas de sua parte. - Aquele ser destoava do cenário paradisíaco. Parecia ter saído de uma das capas do No Faith Left. O homem era de uma brancura sobrenatural, dando a impressão de que sua pele era feita de porcelana. Seus olhos e o seu cabelo desgrenhado eram totalmente negros. Suas roupas eram folgadas e também escuras. Assim que Marcos pôs os olhos sobre o homem pálido ele entendeu que aquele não era uma pessoa, mas sim uma entidade. E ele estava certo.

- Onde estou? Quem é você?

- Quanto ao lugar, é você que tem que responder a essa pergunta, afinal estamos dentro de um dos seus sonhos. - Marcos passou alguns segundos olhando a sua volta. De fato aquele cenário era conhecido. Uma memória de infância, uma manhã cheia de brincadeiras com familiares, seus irmãos, primos e outros parentes da mesma faixa etária. - Eu sou Morfeu, líder dos Guardiões do Véu. Vivemos para garantir que nenhuma crença mundana desestabilize o Véu da Realidade.

Com um sorriso de canto de boca, Marcos falou: - Você deve ter escolhido o irmão errado. Enzo é o meninão da família, é ele que gosta desse negócio de RPG.

De repente o cenário paradisíaco se tornou quente e vulcânico, simplesmente infernal. Morfeu triplicou de tamanho e perdeu a pouca cordialidade que tinha. - Eu poderia ter deixado que você morresse como mais um zé droguinha, engasgado em seu próprio vômito. Você tem sorte de ser muito influente, de ter a fé de multidões em suas mãos. Tanto poder e você o desperdiça se drogando!

Após o esporro da entidade, a consciência de Marcos voltou ao seu corpo. No mundo astral não havia dor, mas, de volta ao plano físico, o rockstar sentiu as escoriações resultantes de ter despencado após flutuar há uma certa altura. Marcos olhou para o que restou do quarto alugado. Estava muito pior do que uma bagunça corriqueira, o astro se perguntou se seu agente conseguiria passar o pano sobre essa situação. Suas amantes haviam sumido, ele deduziu corretamente que haviam debandado assim que houve os primeiros sinais de problemas.

Alguém bateu à porta três vezes. Marcos pensou em ignorar o chamado, mas houve novas batidas. Quanto mais o tempo passou mais elas se tornavam urgentes. O rockstar tinha quase certeza que eram funcionários do hotel exigindo explicações. Após se vestir de maneira quase decente ele foi abrir a porta. Para a sua surpresa aquela dupla não parecia fazer parte do corpo de funcionários. Um deles era bem idoso enquanto o outro, de meia idade, tinha a pele bem escura.

- Você está dentro ou está fora? - Perguntou Baguera. Sequioso por um propósito em sua vida, Marcos foi compelido a dizer "sim". Praticamente sua boca emitiu seu veredito sem que ele conseguisse a controlar.

XXXXXX

Francisco, mas conhecido como Chico Javier, morava sozinho em sua casa, que era conjugada a uma oficina. Ele era solitário, pois sua esposa falecera e suas filhas, já adultas, foram seguir os seus caminhos. O ferreiro era um homem aposentado, mas, para se manter ativo, continuava no seu ofício.

O dia parecia ser como qualquer outro. Ele começou com Chico montando um bagageiro de ferro. Daqueles para vender bujão de gás em motos. Pela tarde, início da noite, o ferreiro passou o seu tempo assistindo programas policialescos. Chico sabia que esse tipo de entretenimento só fazia com que ele se sentisse mais indignado com o mundo, mas era só isso o que tinha pra ver na tevê aberta.

Como de costume, as sete da noite era a hora do seu desejum. Primeiro Chico coou seu café e depois separou a manteiga e as fatias de presunto. Foi nesse momento que percebeu que o pão tinha acabado. Aborrecido com o imprevisto, ele vestiu uma roupa menos desleixada e foi até a padaria mais próxima.

Era só cruzar a rua, mais fácil impossível. Porém, o coração bom de Chico estava ali para complicar as coisas. Uma criança de quatro anos se desvencilhou da mão protetora da mãe e correu desembestada pela estrada. De maneira ameaçadora, um carro em alta velocidade vinha em sua direção. O impacto parecia iminente. Até que, em uma decisão desapegada que não era de seu feitio, Chico se jogou na frente do carro e empurrou a criança para fora do perigo.

- Eu morri? - A consciência do idoso foi parar bem acima do chão. Olhando para baixo ele conseguiu ver uma ambulância. Dois paramédicos estavam atendendo um homem deitado no asfalto. Chico forçou sua vista, quem estava estatelado no chão era ele.

- Por que todos perguntam isso? - Chico sabia que deveria sentir medo, pois o ser diante dele tinha um aspecto bizarro. Porém a criatura lhe passava tanta paz… Era como que se, só pela sua presença, a vitória da esperança estivesse garantida. O ser espiritual tinha a forma de um grande olho cheio de aros ao redor. Nesses aros haviam vários outros olhos, mas estes bem menores. - Devido ao seu ato altruísta, você foi escolhido para fazer parte do Coro Celestial.

- "Coro"? Mas eu nem sei cantar! - A criatura não tinha boca, mas, mesmo assim, Chico sentiu uma expressão divertida vinda dela.

- Eu sou Miguel, o líder dos Sete Céus. Preciso de homens como você, de grande fibra moral, para acabar com o sofrimento do mundo. O que estou lhe pedindo não é algo banal. Porém, sem minha intervenção, seu corpo físico não vai aguentar.

- Se você deixar que eu morra voltarei a ver minha esposa?

- Como arcanjo de alta patente, sim, não posso mentir. Você voltaria a Vê-la. Porém, lembre-se de suas filhas. Vale a pena sacrificar seus dias com elas só para ter seu reencontro?

O pesar no coração de Chico era tanto que ele não conseguiu nem verbalizar a sua decisão. Com um aceno positivo de cabeça, a alma do ferreiro deixou as alturas e voltou até a sua prisão de carne. Os enfermeiros deram um passo para trás quando notaram que o paciente, dado quase como morto, se sentou no asfalto de supetão. Como um personagem saído dos quadrinhos, as feridas e os hematomas foram sarando. Não houve nem processo de cicatrização, simplesmente sumiram.