Capítulo 1
autora: Yoko Hiyama
beta: Bela-Chan
Era uma floresta densa e fechada. As copas das árvores eram tão grandes que os arbustos se entrelaçavam, formando uma espécie de toldo natural que não permita a passagem da luz. No chão, pilhas de folhas enormes que, misturadas com a água da chuva, exalavam um cheiro peculiar. O silêncio só era quebrado pelo inquietante barulho de insetos.
Era este ambiente inóspito e solitário que servia de estrada para um enorme cão negro que avançava num ritmo ligeiro, porém cuidadoso, parecendo não se importar com a escuridão, só parando de vez em quando para cheirar o ar, como se reconhecesse um mapa invisível através de seu olfato aguçado. Depois de cerca de uma hora de caminhada, encontrou um pequeno córrego e se permitiu alguns minutos de descanso antes de retomar a caminhada. De jeito algum poderia ser surpreendido pelo amanhecer ainda na floresta.
Mais algum tempo e o cão finalmente alcançou a parte mais perigosa da viagem. Sabia que passar por aquele território sem ser percebido seria quase um milagre, mas não havia outra alternativa. Então, o cão farejou o ar vigorosamente, checando se seus inimigos estavam próximos, mas só conseguiu sentir o cheiro da chuva que começava a se precipitar sobre a floresta. Sabia que ela ajudaria a espalhar seu cheiro pelo ar, mas decidiu ignorar o perigo e acelerou um pouco mais, esperando que não percebessem sua presença.
Foi justamente quando estava bem próximo de alcançar seu objetivo que ouviu o barulho que tanto temia: um longo e poderoso uivo, que ele sabia ser um alerta para um grupo nada amistoso de companheiros. O cão agora corria com todas as suas forças, amaldiçoando a chuva que se tornara forte o suficiente para atravessar a proteção das árvores.
Logo percebeu que havia alguns pares de patas em seu encalço, mas tentou não se desesperar. Apenas correu, sem olhar pra trás ou para os lados, tomando todo o cuidado para não escorregar na terra molhada, enquanto os uivos se multiplicavam mais e mais, na mesma proporção em que aumentavam os seus perseguidores.
Até que o inevitável aconteceu. Assim que o cão negro conseguiu vencer um pequeno declive, quase rolando junto com as folhas secas que se acumulavam, três lobos surgiram bem a sua frente, numa velocidade espantosa. Mas, apesar de cercado, o enorme cachorro não se deu por vencido e adquiriu uma postura de guerra, presas perigosamente à mostra, olhos brilhando de antecipação. Seus grunhidos hostis foram imediatamente aceitos e retribuídos, segundos antes do primeiro lobo se jogar na sua direção, fazendo com que ambos rolassem pelo chão, entre ganidos e mordidas.
Era uma batalha desigual, ninguém tinha dúvidas disso. Assim que se via temporariamente livre das presas de um, logo o cão tinha que se atracar com outro lupino. Não demorou muito para que a dor e o cansaço começassem a se mostrar evidentes, mas por mais que procurasse, ele não encontrava uma brecha pra escapar. A enorme perda de sangue também não ajudava.
Mas, apesar de muito ferido, ele sabia que não havia a menor possibilidade de se render ali. Por mais que seus inimigos fossem numerosos e terríveis, ele tinha uma missão pra cumprir e não poderia morrer de jeito nenhum. Este simples pensamento o incentivou a continuar lutando ferozmente, ao mesmo tempo que usava seu poder para convocar seus possíveis aliados que estivessem por perto (1). E apesar daquela floresta não abrigar muitos animais que pudessem fazer frente àquela numerosa e saudável alcatéia, o surgimento de um bando de morcegos, bem como de alguns insetos e outros predadores menores no campo de batalha pelo menos serviu para que o cão pudesse escapar e correr por alguns instantes, antes de ser novamente caçado por seus antagonistas, mais furiosos do que nunca por terem sido obrigados a dividir suas forças.
Trocaram mordidas até que o cão sentiu-se resvalar a fronteira da inconsciência. Mas apesar de saber que se entregar ao sono naquele momento significaria a morte, suas feridas pareciam se multiplicar, explodindo numa dor insuportável, a ponto de impedi-lo sequer de pensar. O cão ainda tentou se arrastar para longe de seus predadores, mas era inútil.
Amaldiçoando sua falta de sorte, ele finalmente se entregou ao torpor.
- Você está bem? - Ouviu uma voz masculina lhe perguntar assim que abriu os olhos com dificuldade.
Que pergunta idiota, é claro que não estava bem. Sentia uma dor lancinante por todo o corpo, como se tivessem martelado vários pregos nos braços, tronco e pernas. Mas por algum motivo que no momento nem lhe interessava descobrir, estava vivo.
Vivo e seguro, deitado numa cama confortável.
- Que bom que acordou... você passou duas noites adormecido - a mesma voz se fez ouvir pela segunda vez - mas é espantoso ver a rapidez com que se curou daqueles ferimentos horríveis...
Sirius olhou pela primeira vez para o seu interlocutor no exato instante em que ouviu o estalar desagradável de um fósforo sendo riscado na caixa. Recuou inconscientemente, se encolhendo na cama de forma quase imperceptível ao ver a chama nascente alcançar o pavio de uma vela, ao mesmo tempo em que revelava uma figura magra, de olhos castanhos e cabelos lisos enfeitando seu rosto sereno e aparentemente cansado.
- Oh, me desculpe. - ele percebeu e afastou a vela - esqueci que vocês não gostam de fogo (2)... é até engraçado... alguém que enfrentou uma dezena de lupinos furiosos ter medo de uma chama tão pequena como essa...
- Quem é você? - ele decidiu cortar o assunto, apreciando muito pouco o fato daquele total estranho estar falando de seus medos.
- Remus Lupin. Muito prazer.
Ele arregalou os olhos ao ouvir aquele nome, seu tronco dando um salto instantaneamente.
- Então você é Remus Lupin? - Ele perguntou, fazendo uma careta de dor graças ao movimento descuidado.
- Sim... e o senhor deve ser Sirius Black. - Ele adivinhou - Estava a sua espera.
- Sou eu mesmo. Em osso e bem menos carne graças a esses malditos lupinos. - ele resmungou, irritado.
- Não fale assim, foi você quem invadiu o território deles e não o contrário. - Remus o repreendeu imediatamente, arrancando mais uma careta de seu interlocutor, desta vez de flagrante insatisfação.
- Não fiz isso propriamente porque estava a passeio, sabia? Tenho uma mensagem de Dumbledore para entregar. - Sirius arrancou o cordão que usava e o estendeu para o outro homem.
- O que é isso? - Lupin perguntou, fazendo uma cara engraçada para a pedra azul que enfeitava uma fita grosseira de couro.
Sirius soltou um muxoxo mal humorado e então segurou a mão livre de Lupin.
- O que está fazen... - Remus arregalou os olhos ao ver que Sirius puxava sua mão em direção à boca, pressionando as presas pontudas seu dedo indicador - ai!
Indiferente, Sirius esfregou o dedo machucado na pedra, sem muita delicadeza. No mesmo instante ela se partiu em duas para revelar um pedaço de papel em seu interior. Remus o pegou e começou a ler, num misto de curiosidade e confusão e, ao final, Sirius notou que o rosto do outro se empalidecia um pouco.
- Não posso fazer isso. - Ele finalmente falou após minutos de silêncio pensativo.
- Não pode fazer o quê? - Sirius já tinha alguma idéia do que o outro estava falando, mas preferiu se fazer de inocente.
- Não posso partir daqui com você. - Remus complementou.
- Ora... - Sirius se remexeu da cama - eu não vou fazer nada com você, mesmo você sendo o que é... Ordem de cima, sabe?
Se Remus se sentiu ofendido com aquelas palavras, não o demonstrou. Parecia ter outras prioridades, como questionar a razoabilidade daquela mensagem.
- Dumbledore não pode me pedir isso! Eu não posso deixar a minha casa, ainda mais para ir ao encontro dele, eu jamais seria aceito de volta.
- Concordo que trazer um lobisomem pro meio de um monte de vampiros empoeirados não foi a idéia mais brilhante que o velho já teve. - e então, aduziu em tom de quem não queria nada - Mas ele me falou meio por alto que você está correndo risco de vida aqui.
Remus olhou pra o outro.
- Não há como viver próximo de uma tribo lupina sem arriscar a vida. O risco sempre existiu...
- É o mesmo entre nós. - Sirius concordou, indiferente - Mas se Dumbledore acha que um lobisomem como você estaria mais seguro em meio a vampiros, é sinal de que você realmente corre perigo de vida aqui.
Remus respirou fundo:
- Por favor, volte e responda que eu agradeço o convite, mas não vou.
- Dumbledore esperava por essa resposta.
- Esperava?
- Sim... e me instruiu a não voltar até que você estivesse convencido a vir comigo.
Remus não se abalou.
- E como pretende fazer isso? Pela força?
- Eu não sou louco a ponto de tentar arrastar um lobisomem de seu próprio território à força. E mesmo se fosse, tenho que reconhecer que não estou na minha melhor condição física no momento.
- Se não pretende me levar à força sugiro que desista, Sr. Black. Eu nunca sairei dessas terras, muito menos com o senhor.
- Nunca diga dessa água não beberei. É um ditado humano muito sábio. - Sirius comentou, tentando cruzar os braços, mas se descobrindo impedido pelas faixas - Droga...
- Não se mexa. - Remus avisou.
A resposta de Sirius foi puxar impaciente as faixas que o prendiam, na tentativa de desfazer-se delas.
- Não faça isso!
- Essas faixas são inúteis! Eu sou um vampiro, esqueceu? - Sirius respondeu, irritado.
- Não, não me esqueci. - Remus não perdeu a paciência, enquanto tentava afastar as mãos do outro dos curativos - Não seja teimoso, sim? Você é um vampiro, mas foi atingido por presas lupinas, não se esqueça disso.
- E daí que são presas lupinas?
- E daí que elas ferem mais profundamente do que você imagina. Não é assim tão fácil se curar de um ferimento desses. Você foi atacado por mais de trinta lobos. É um milagre estar vivo.
Sirius ficou alguns segundos pensativo, como se ponderasse a idéia.
- Falando nisso... como foi que isso aconteceu? Quando eu desmaiei tinha mais de três lobos pendurados na minha garganta.
- Eu os distraí e o arrastei dali. - Remus respondeu, parecendo não muito orgulhoso de seu feito.
- Eles não devem ter ficado muito contentes...
- Bem... não importa. Pelo menos eles pensam que você fugiu e estão calmos. É bom que aproveite a oportunidade pra fugir.
- Desculpe, mas isso está fora de cogitação.
- Como é? - Remus olhou pra ele, confuso.
- Eu te disse que não poderia voltar sem você e não pretendo fazer isso.
- E eu creio que te disse que não vou com você.
- Temos um impasse então. - Sirius comentou e como Remus não se importou em lhe dar alguma resposta, emendou - Bem, acho que serei seu hóspede por enquanto...
Remus pareceu ter sido picado por um inseto, mas quando respondeu não demonstrou nem a metade do aborrecimento que sentia.
- Você não pode ficar aqui. A casa é protegida, mas se o líder descobrir que estou escondendo um vampiro aqui nós dois seremos mortos.
Sirius ajeitou os travesseiros com um gesto teatral antes de responder no seu melhor tom de cinismo:
- Bem, eu não dou a mínima.
Remus tinha uma boa resposta para aquela frase insolente. Mas antes mesmo de abrir a boca, percebeu que o vampiro dormira.
Remus foi obrigado a proteger sua casa magicamente para impedir que os demais percebessem a presença nefasta de Sirius. Quase uma semana havia se passado desde o dia em que o lobisomem tinha resgatado o vampiro da morte certa e o abrigado sob seu teto Mas o fato dele se recusar a partir era um empecilho que ele jamais havia previsto e Remus não sabia o que fazer a respeito.
O que Dumbledore tinha na cabeça para lhe enviar uma proposta tão absurda, ainda mais por meio de um mensageiro como aquele? Remus suspirou, olhando para o vampiro adormecido atentamente. Ainda era de manhã e ele sabia que demoraria a acordar. Seus cabelos longos e pretos estavam espalhados de forma desorganizada, fazendo um bonito contraste com sua palidez cadavérica. Remus não pôde deixar de reparar que o peito de Sirius não se movia, como se esperaria de um humano comum. Óbvio, ele pensou, aquele homem estava morto, não precisava respirar. Mas ainda assim, aquilo lhe parecia muito estranho e sua própria natureza lupina lhe ensinara a ver coisas desse tipo como algo muito errado.
Criaturas da noite como aquele vampiro pareciam sempre muito indefesas durante as manhãs. Um simples movimento e Remus poderia acabar de uma vez com aquele problema, tornando aquele sono eterno.
Desviou o rosto.
Mas claro, não poderia fazer isso de modo algum. Sirius era um homem de Dumbledore e isso era motivo suficiente para que Remus não se atrevesse a fazer coisa alguma contra ele. Não por medo, mas porque ambos tinham inimigos em comum e precisavam unir suas forças se quisessem destruí-los. Por mais que a aliança entre um lobisomem e um vampiro fosse algo inédito e até impensável, as coisas haviam mudado. Havia muita coisa em jogo.
Remus estalou os lábios e só então encarou o vampiro novamente. Sirius Black... Alguma coisa lhe dizia que enfrentaria muita encrenca por causa dele.
- Está com fome? - uma voz cínica feriu seus ouvidos.
Sirius olhou pra cima, um misto de ódio e desespero estampado em seus olhos, e viu aquele ser odiável por trás das barras de ferro enferrujadas que o tornavam prisioneiro. Apesar da escuridão total, Sirius pôde ver claramente o sorriso tranqüilo do outro. Uma balde de madeira estava bem seguro em suas mãos.
- O que você quer de mim, Severus?
- Ora, não seja tão orgulhoso... Está com fome ou não?
- Desça aqui e eu te respondo. - desafiou.
- Você não muda mesmo... Até quando vai manter essa pose orgulhosa?
- Até quando eu enfiar as minhas garras na sua cara, seu desgraçado. - Sirius gritou - Desça aqui!
- Agradeço muito o convite, mas acredite, não me sinto tentado a me arrastar no esgoto junto com você. Vim apenas entregar seu jantar... Confesso que o prato principal não é dos mais apetitosos, mas acredito que você não vai recusar. - dizendo isso, virou o balde num movimento seco, despejando o seu conteúdo fosso abaixo. Uma dezena de ratos guinchou freneticamente ao se ver de uma hora pra outra em queda livre.
Sirius teve que proteger o rosto com os braços para não ser atingido pelos animais. Trincou os dentes quando ouviu o barulho dos ratos se chocando contra a água lodosa na qual estava enfiado até a cintura.
- Oh, sim... - Snape falou como se lembrado de repente daquela última informação - Não perca o seu tempo em tentar usar o seu poder sobre eles. Esses ratos provaram do meu sangue... Você sabe o que isso significa (3). Bom apetite.
Sem esperar por uma resposta, o vampiro se retirou, deixando Sirius pra trás. Segundos depois, o outro arrancava os animais da água apressadamente, cravando os dentes com força em sua carne molhada e mal-cheirosa.
Naquele momento, a fome era mais forte do que seu orgulho.
Sirius abriu os olhos. Se seu coração estivesse vivo certamente estaria batendo freneticamente agora. Mas antes que tivesse a oportunidade de se recuperar do pesadelo, o vampiro se deparou com os olhos castanhos de Remus que o encaravam como se este fosse capaz de ler seus pensamentos e temores mais íntimos.
De repente, ele sentiu que não era a primeira vez que sentia aquele par de olhos queimarem sua alma e este pensamento não lhe agradou nenhum pouco. Tanto que suas presas se sobressaltaram e ele soltou um ruído predador antes de ameaçar.
- Não me olhe desse jeito!
Continua...
Notas da Autora:
(1)Animalismo: É um dos poderes (ou disciplinas) que Sirius possui. Ele tem empatia com animais e pode chamá-los para que o auxiliem numa luta. O fato dele se transformar em cachorro também é um poder chamado Metamorfose.
(2) Rötschreck: Consiste no medo provocado pelo instinto de autopreservação de um vampiro. Já tendo experimentado a morte uma vez, todo o vampiro reage com temor a qualquer ameaça potencial a sua não-vida. Seja o fogo, ou a luz solar, ou mesmo uma amostra de fé verdadeira. Quando totalmente tomado pelo terror, um vampiro foge cegamente dessas ameaças. Porém, este estado é considerado vergonhoso e evitado pelos vampiros a todo o custo. No caso, apesar da primeira reação de Sirius ao fogo ter sido de medo, ele a controlou rapidamente da forma que pôde.
(3) Vitae: É o nome que se dá ao sangue vampírico. Em suma, esta é a fonte de poder de todos os vampiros. Não se pode provar do sangue de um vampiro e permanecer imune. Quanto mais vezes uma pessoa, ou vampiro provar da vitae, mais ligado ele estará ao seu dono. A partir da 3ª vez que um humano, ou vampiro ingere vitae em noites diferentes, ocorre um laço permanente entre vassalo e regente, chamado de Laço de Sangue. Vampiros costumam usar esta técnica para escravizar humanos, ou animais, transformando-os nos chamados carniçais. Um carniçal ama seu mestre incondicionalmente e está ligado a ele. Uma vez consolidado o laço de sangue, a vitae de outro vampiro não tem efeito algum sobre o vassalo. Assim, Severus quis dizer que aqueles ratos eram seus carniçais e, portanto, fiéis a ele.
revisado: 25/06/06
