Cap 002 – Maldições Novas e Antigas.
Um Véu da Realidade impede que as pessoas comuns consigam manipular, sentir ou enxergar a verdade mágica que existe no mundo. Feitos que seriam considerados pelos mundanos como milagrosos ou impossíveis só estão ao alcance apenas de pessoas evoluídas conhecidas como magos. Esses magos fazem alianças e desses enxavos nascem os clãs. O clã dos Programadores do Éter é mais um deles.
Era uma madrugada fria de sexta-feira. Samara dormia tranquilamente sem desconfiar de uma ameaça que estava se aproximando a galope. A paz da jovem não duraria muito tempo. Sua mãe, a senhora Sabrina, afanou o seu celular. A casa onde as duas viviam era pequena. Não havia luxos, mas era acolhedora. A maior parte dela não havia sido rebocada ainda. A sala era um corredor que dividia espaço com a cozinha. Dos dois quartos, o da filha, era improvisado. Só havia uma tevê, que ficava na sala. Sabrina não gostava de deixar Samara diante da mídia sem sua supervisão. Por isso não havia aparelhos nos outros cômodos.
Ao pegar o celular da garota, a primeira ação de Sabrina foi acessar a opção de "Galeria". Haviam muitas fotos e vídeos ali, o que fez com que a triagem da matriarca durasse alguns minutos. Havia uma situação que Sabrina já desconfiava, mas ela queria uma prova cabal para ter certeza sobre o assunto. Assim que encontrou o que queria, ela foi até Samara e a despertou de maneira violenta. A colegial acordou assustada com o surto da mãe. Mal ela sabia que aquele ataque de raiva inicial mudaria completamente sua vida dali por diante. - Que pouca-vergonha é essa?!
O coração de Samara gelou quando ela percebeu que sua mãe tinha em mãos fotos e vídeos comprometedores. A jovem sabia que devia ter apagado aquelas provas, mas não conseguiu se desvencilhar daquelas boas lembranças. -Mãe, eu ia te contar. O que sentimos uma pela outra é amor! É algo puro!
- Amor que nada! Isso é antinatural! - Nos minutos que se seguiram, Sabrina arrumou a mochila de escola da filha de qualquer jeito. Empurrando as primeiras roupas que via e tirava do armário da menina. Sabrina teve a preocupação de colocar dinheiro, mas não muito. Durante essa arrumação, Samara gastou seu tempo pedindo perdão.
Segurando e puxando sua filha pelos pulsos, Sabrina expulsou Samara de casa. Durante todo o processo de banimento, a adolescente fez um escândalo. Não poupando gritos. Quando finalmente foi jogada para o lado de fora, a adolescente começou a espancar a porta de entrada da casa. Ela batia tão forte na madeira que suas mãos começaram a doer.
Depois de alguns minutos, Samara finalmente percebeu que não seria perdoada. Ao menos não naquele dia. Foi então que ela decidiu ir até o ponto de ônibus mais próximo. A adolescente sentou em um dos bancos de espera e ficou ali, chorando copiosamente. Foi só quando a tristeza apaziguou que a garota começou a ser prática. A rua estava deserta e escura. Aquele cenário era perigoso para qualquer um, principalmente para uma mulher da sua idade.
Devido a briga, Samara havia esquecido de pegar o seu celular. Durante os próximos quinze minutos ela ficou calculando qual seria o melhor plano. Foi então que o pensamento óbvio iluminou sua mente. A melhor opção era ela, a mulher que, indiretamente, era responsável por Samara ter se desentendido com sua mãe. Agora só faltava que, na rua escura e vazia, algum táxi ou ônibus aparecesse.
Não havia uma alma vivente visível. Nem moradores de rua, viciados ou garotas de programa. A solidão deixou Samara temerosa a princípio, mas, pensando bem, ela chegou a conclusão que havia condições piores. Mesmo com os postes iluminando os caminhos, a noite estava sem luar e com o semblante carregado. Devido aos ventos cortantes e gelados, a adolescente se encolheu ao máximo. A intenção era acumular o máximo de calor possível. Atitude que ela fez praticamente a nível instintivo.
- Menina, o que está fazendo aí vestida desse jeito?! - De tão transtornada, Samara não tinha percebido que estava vestida com sua roupa de dormir. Um pijama rosa cheio de rostos em miniatura da Hello Kitty. - Entra aí que eu te levo para sua casa. Esse bairro tem uma fama ruim, ainda mais a essa hora. - O taxista era homem, isso deixou Samara receosa em aceitar sua carona. Mas, como também era perigoso manter-se ali, ela escolheu o risco que lhe pareceu o menor.
Como não tinha casa para voltar, Samara pediu ao taxista que a levasse para outro endereço. O prédio onde morava sua namorada. A viagem foi longa, mas, pra sorte da adolescente, o taxista não cobrou nada. Mesmo não sendo vidente, ele conseguiu pressentir que a jovem não estava passando por uma fase boa. Antes que a moça saísse do carro, ele entregou a ela um panfleto e lhe deu um sorriso.
Demorando menos tempo do que previra, Samara tocou na campainha do apartamento de Regina. Assim que a porta foi aberta, e que elas se viram, as duas se abraçaram. - Eu avisei que uma coisa assim poderia acontecer. - Disse a namorada. Ela adivinhou o que tinha acontecido devido a visita naquela hora inesperada.
Regina tinha vinte e sete anos, uma década mais velha do que Samara. Independente, ela morava e se bancava sozinha. Por isso foi capaz de convidar sua amante para dividir o apê. A ideia para a adolescente lhe pareceu vantajosa, então, logo ela aceitou.
O apartamento de Regina foi projetado para servir de moradia para um solteiro. A maioria dos cômodos eram geminados. Minimalista, a programadora tinha poucos objetos. O que mais chamava a atenção, chegando até a destoar do restante, era um computador de última geração. O aparelho tinha dois monitores e um teclado anatômico.
Preocupada com sua namorada, Regina não voltou a dormir naquele fim de noite. Ela consolou Samara até que a adolescente conseguisse pegar no sono. Para ajudá-la nesse processo, a programadora deu para a jovem um remédio tranquilizante. Regina, de início, temeu que tivesse exagerado na dosagem, mas, no fim, tudo deu certo.
Enquanto Samara dormia, Regina ligou o seu computador. A tela preta da direita era povoada por símbolos, letras e números verdes que pareciam chover. A da esquerda era mais convencional, mesmo assim só mostrava linhas de códigos. Era preciso ter, pelo menos, uma base de estudo para saber o significado daquela linguagem. Praticamente espancando as teclas ao digitar, Regina programava com fúria enquanto tinha em mente a mãe da sua namorada.
- Já que não quer ver o "mal" entrar em sua casa, vou me assegurar que nada mais entre. - Regina tinha a mania de falar consigo mesma. Solitária, as vezes sua voz era a única companhia. Ela era uma Programadora do Éter. A característica mais marcante desse clã era fazer magia utilizando tecnologia como meio. Computadores modernos (como era esse o caso), videogames antigos e até televisores quebrados. Eles eram muito versáteis.
Regina enxergava o Véu da Realidade através de seu computador. Cada linha de código que, para a maioria, pareciam ser letras aleatórias, eram secretamente informações sobre o mundo. Com uma edição de linhas ela conseguia reescrever praticamente qualquer coisa. Desde a cor da parede de seu quarto até a localização de um casebre no fim da cidade. Bastava digitar no seu teclado. Regina era uma maga poderosa.
Quase que no outro lado da cidade, uma mãe chorava deitada na cama. Em posição fetal, Sabrina despejava sua tristeza abraçada a um quadro que continha uma foto da família. Pai, mãe e dois filhos. A imagem da família tradicional brasileira. O pai perdeu a vida em um acidente de carro. O corpo do filho desapareceu quando este foi tomar um banho de mar. Agora, no ponto de vista de Sabrina, uma tragédia igual se abateu a sua filha.
Sabrina, mesmo após fazer o que fez, ainda se preocupava com a filha. Por isso não conseguiu dormir aquela noite. Assim que se levantou da cama, a matriarca enxugou suas lágrimas e foi abrir a janela do seu quarto para receber uma luz matinal. O ferrolho estava duro, mais parecia que pesava uma tonelada. Então, ela foi até a cozinha para pegar uma faca para usá-la como alavanca. Nada. A mãe solo testou as outras janelas da casa. Todas estavam em igual situação. Fechadas, inflexíveis.
O desespero tomou conta de Sabrina. O seu coração começou a bater fora de ritmo. Um suor gelado escorreu por sua pele. Na próxima tentativa de sair, ela colocou a chave principal na fechadura da porta de entrada. Assim que a girou, houve um som de trinco. A chave quebrou e ficou presa. Sabrina demorou a internalizar o que tinha acontecido. Quando percebeu sua situação, começou a gritar e a puxar a maçaneta em vãs tentativas de que conseguiria sair. Seus clamores por ajuda, nenhum deles, alcançaram a rua.
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A prática de magia se torna mais fácil em lugares onde o Véu da Realidade é mais fraco. Kahndac, uma nação desértica próxima do Egito, é um exemplo. Só os que vivem nessa terra, e os poucos que têm contato indireto com ela, sabem de sua existência. Devido à sua localização, ele é árido e tem um dos climas mais quentes do planeta, chegando facilmente aos cinquenta graus a sombra. Kahndac é uma região pequena, nem aparece na maioria dos mapas.
O país é agrário e subdesenvolvido. Ele sofre com uma grande concentração de renda. Enquanto noventa por cento da população trabalhava para sobreviver em situações precárias, uma elite se aproveitava dos lucros. A religião predominante é uma vertente do islamismo, pouco conhecida no exterior, chamada Jinn-al-Nar. Apesar de ainda interpretarem Mohâmede como seu principal profeta, eles dão uma atenção maior aos djinns.
Os djinns são seres mágicos que foram criados a partir do fogo. Apesar de não envelhecerem, podem ser mortos. Essa tarefa, no entanto, é extremamente difícil. Como os humanos, eles precisam comer e podem escolher entre o bem e o mal. Há um clã de magos que se especializou em utilizar os poderes dos djinns, os aprisionando em objetos, geralmente garrafas. Eles são chamados de Invocadores e são preponderantes naquela nação. A maioria deles ficava restrita ao Oriente Médio, com poucos vivendo fora do país.
Devido à influência de grupos islâmicos mais conservadores, as mulheres têm muitos dos seus direitos tolhidos. As que nascem com o dom são fortemente desencorajadas a praticá-lo. Porém, esse problema não era o que tirava o sono de Fátima. A jovem de pouco mais de vinte anos vivia um dilema ao esperar um bebê enquanto ainda era solteira. Situação que em sua cultura era considerada escandalosa. Fátima não se preocupava com a punição que provavelmente recairia sobre ela. Em seu coração só havia o desejo de vingança.
Algumas pessoas consideravam a família de Fátima rica, porém, em termos técnicos, ela se enquadraria mais em classe média alta do que burguesia. Desde pequena a jovem se tornou curiosa sobre as coisas que moviam o mundo. Aos treze, ao encontrar um livro de sua avó que pegava mofo em um canto qualquer, seu interesse pelas artes místicas dos Invocadores brotou. Até o momento sua curiosidade era puramente teórica. Porém, depois do mal que lhe fizeram, ela estava disposta a passar por cima de tudo.
Os três meses de gestação já estavam aparecendo. Os seus familiares, em uma tentativa de esconder sua "condição vergonhosa", a trancaram em um quarto dos fundos da casa. A iluminação entrava por frestras de luz das janelas trancadas. Por uma portinhola, Fátima recebia comida e água. Seus dejetos também passavam por ali. Sem nenhum pingo de nojo, a mãe dela os descartava.
Durante o seu encarceramento, a jovem ouviu uma conversa. Seus pais estavam planejando a realização de um aborto discreto. Ela odiava o pai da criança que estava sendo gerada em seu ventre, mas ao mesmo tempo não queria que lhe tirassem o seu bebê. Fátima sentia amor por aquele ser, ela nem sabia explicar o motivo. Talvez fosse instintivo, supunha.
As únicas "armas" que Fátima tinha em seu poder eram um giz de cera branco e uma flauta de brinquedo. O giz estava desgastado, mas era a única coisa que ela encontrou naquele quarto com capacidade de escrever. Já aquela flauta foi usada pela moça muitas vezes quando criança. Agora ela seria usada para, por falta de uma garrafa, conter o djinn.
A moça tinha que ter cuidado, pois provavelmente não teria outra chance. Foi com o giz que ela desenhou três círculos concêntricos e no meio deles repousou a flauta. Em seguida, desenhou todos os símbolos que ainda lembrava do livro de sua avó. Assim que o giz sumiu em suas mãos, depois de tanto uso, a jovem começou sua invocação.
A magia começou com uma fumaça discreta que apareceu dentro do quarto. Ela foi se condensando até se tornar sólida. Diante de Fátima surgiu um ser azul, com orelhas pontiagudas e rosto tatuado. Ele se vestia de um jeito que lembrava um sultão caricato de conto de fadas. A garota não conseguiu traduzir o que estava escrito na face do djinn. Porém, o livro de sua avó já tinha a advertido sobre a praga de Salomão que todas aquelas entidades tinham estampadas em alguma parte do corpo.
- Só concedo três desejos, nem mais e nem menos. - Disse o djinn exibindo um tom de voz surpreendentemente humano. - Não posso interferir em questões ligadas diretamente na vida ou na morte das pessoas. Não posso ressuscitar ou matar, tornar alguém imortal ou criar magicamente um feto em uma mulher. Também não absolvo pecados.
Fátima ficou menos impressionada com a aparição da entidade do que imaginava. Usando as duas mãos como apoio, a jovem se levantou. Suas costas estavam doendo devido ao tempo que passou com posturas incomodas, sentada ao chão. - Eu só quero uma coisa. - Ela disse. - Vingança.
- O que quer é uma maldição? Deixa eu adivinhar, o pai do seu filho te prometeu o mundo, mas não quis te assumir? - Fátima não conseguiu responder. Nem precisava. Seu rosto dizia muito. - Qual maldição seria, de sua preferência?
Fátima estava associando sua vingança com assassinato. Como o seu djinn não podia matar, a moça começou a imaginar punições severas. Em sua mente se juntaram tantos destinos malignos que ela não conseguiu decidir por um só. - Não conheço muito essa área da magia. - Disse Fátima. - Você pode escolher uma pra eu usar contra aquele traste? Seja criativo.
Quando o djinn ouviu o desejo de sua mestra, ele deu um sorriso estranho, que parecia largo demais para o seu rosto. Pela primeira vez naquela negociação Fátima sentiu medo de verdade.
