Não sei quanto tempo fiquei dentro do trailer, vendo o sangue empoçar ao redor do corpo. Provavelmente não muito — minha vontade de sair dali era mais forte do que tudo. E também não sei quanto tempo ela também esteve ali, me observando e observando a cena. Não a ouvi chegar. Talvez ela fosse discreta o bastante. Ou talvez eu simplesmente não tivesse conseguido prestar atenção em mais nada além do que estava na minha frente.

Só a notei quando ela surgiu do meu lado colocando a mão no meu ombro. Quase tomei um susto.

— É melhor irmos agora — ela falou.

— Quem é você?

Ela não respondeu, e de imediato não a reconheci, mas me veio uma estranha sensação de déjà vu quando olhei para ela. Era uma youkai, de cabelos escuros divididos em tranças e uma expressão de quem estava acostumada a fazer as coisas acontecerem do jeito dela.

Ela me virou para a saída do trailer e eu obedeci cegamente. Não foi bem uma obediência — eu mesmo não estava querendo continuar ali. Mas foi assim que me senti sendo seguido de perto por ela para fora do veículo e até a rua.

Quando saí, o frio me atingiu em cheio, e precisei guardar as mãos no bolso para que elas não congelassem de vez. Besteira. Não era o vento gelado que tinha as deixado assim.

Mais adiante, os policiais ainda estavam ocupados demais colhendo seus depoimentos para notarem que alguma coisa havia acontecido. Sequer olharam em nossa direção.

— Vamos — a youkai falou de novo, direcionando meu corpo para o lado oposto aos policiais, a mão ainda em cima do meu ombro, me guiando.

E mais uma vez, a obedeci. A minha boa vontade em cooperar com a polícia tinha ido embora junto com a vida daquele infeliz dentro do trailer. O que eu menos queria era chamar a atenção deles, e ir embora já estava nos meus planos. Então andei em silêncio por onde ela me conduziu, mas bastou eu achar que já tínhamos nos afastados o suficiente para empurrar a mão dela pra longe.

— Muito bem, quem diabos é você? — perguntei, me virando para ela e interrompendo meus passos. A youkai não pareceu se abalar.

Pude olhar bem para ela agora, e entendi de onde tinha vindo a sensação familiar. Era a youkai de dentro da barraca, em quem eu tinha tropeçado. Reconheci a orelha pontiaguda, cheia de brincos, a tatuagem, a mesma energia. Não tinha sido por acaso a presença dela ali.

— Nós só precisamos conversar com você um instante.

— "Nós"?

Ela apontou com a cabeça para um carro estacionado mais a frente. Era um carro de lataria e vidros escuros, do tipo que não se vê nada do lado de dentro. Não conseguia nem mesmo enxergar se mais alguém ocupava os assentos. O breu da rua também não ajudava. Com o motor desligado, passava completamente despercebido.

— Eu não vou entrar aí — eu falei.

— Por que? Está com medo?

A youkai foi até o carro e abriu a porta do passageiro. Uma luz se acendeu lá dentro e vi que mais alguém já ocupava o banco de trás. A pessoa estava na ponta, do lado oposto à porta aberta, mas ainda longe o bastante para que eu visse quem era.

— Vamos, é só uma proposta. Tudo que precisa fazer é ouvir o que a senhora Kishimoto tem a dizer. Na pior das hipóteses, você ganha uma carona.

Eu fui até o carro. Senti o vento cortando a minha pele, secando o suor que tinha me acometido dentro do trailer. Fora isso, a noite estava estática e muda. A luz das sirenes e das ambulâncias tinham ficado muito para trás, mas os sons que o demônio tinha feito antes de morrer ainda zumbiam no meu ouvido.

Na ponta do banco do passageiro, outra youkai. Mais velha, mais bem arrumada. Ela me olhou de maneira penetrante quando me abaixei para olhá-la, e deu duas batidinhas com a mão no assento ao lado dela, me convidando a entrar.

— Acho que vocês pegaram a pessoa errada — eu falei, me levantando.

A youkai mais velha me olhou confusa de dentro do carro.

— Daya — ela falou — você tem certeza-

— Apenas entre — a youkai mais nova — Daya era seu nome? — falou atrás de mim, soando impaciente. Estava colada nas minhas costas, de um jeito que não me daria espaço para recuar a menos que eu a empurrasse. O que, quando penso agora, era o que deveria ter feito. Mas não fiz, e em vez disso, ela forçou meu corpo para dentro do carro. Já irritado com aquela situação, eu cedi. Sentei no banco do passageiro, enquanto Daya fechou a porta e foi para o banco da frente. Só então notei que havia um motorista ali também.

Sem que precisasse de nenhum outro sinal, o carro arrancou e começou a rodar com nós três em silêncio.

— Não se importa que eu fume, não é? — perguntei depois de um tempo, já acendendo um cigarro. Abri um pouco da janela para deixar a fumaça escapar.

— Obrigada por nos acompanhar, senhor Urameshi.

— Como sabem quem eu sou? Há quanto tempo estão me seguindo?

— Todo mundo na Cidade Alta sabe quem você é — Daya falou do banco da frente.

Ótimo, mais essa. Nem precisei perguntar se isso era bom ou ruim. Já tinha minhas suspeitas.

A Cidade Alta tinha virado o reduto dos youkais que viviam no Mundo dos Humanos. Ao menos um dos redutos. O principal, eu diria. Quase nenhum humano pisava lá, e eu nem lembrava quando tinha sido a última vez que eu tinha ido. Não esperava que meu nome ainda circulasse pelo bairro, mas de certa forma, eu entendia.

— Que bom que eu dispenso introduções. Mas eu continuo sem fazer a mais puta ideia de quem vocês são ou o que querem comigo.

— Claro — e a youkai do meu lado me estendeu um cartão de visitas.

O cartão tinha o nome e o logo do Blue Lotus Club, um antigo clube noturno da Cidade Alta. Talvez o mais antigo de lá. Provavelmente o mais infame também. Logo abaixo, o nome dela — Chieko Kishimoto.

— Preciso da sua ajuda com um caso… peculiar. Claro que estou disposta a pagar todos seus honorários de forma generosa. Peço apenas discrição.

— Estão perdendo tempo — Eu tentei devolver o cartão, mas ela gesticulou para que eu ficasse com ele. Guardei no casaco — Não estou aceitando casos novos.

— Você não é detetive?

— Era — respondi.

Kishimoto puxou algo da bolsa e me estendeu novamente. Um envelope. Peguei sem muita vontade, e tirei o conteúdo de dentro.

— O que é isso?

Dentro do envelope estava uma fotografia, tão confusa que precisei ficar olhando por alguns bons segundos para começar a entender. O ambiente da foto era um quarto completamente bagunçado, com coisas espalhadas pelo chão e móveis caídos. No centro, o corpo de alguém, com os membros contorcidos como se tivesse caído de qualquer jeito. A cabeça estava tão desfigurada que era impossível qualquer reconhecimento. O rosto era uma massa embolada de carne, sangue e ossos. Mais sangue se espalhava pelo chão. Os respingos pelo visto tinham tocado quase tudo dentro do quarto.

— Nika era uma das meninas que trabalhava no Blue Lotus — Kishimoto explicou — Essa foto foi tirada semana passada, dentro do camarim.

— E querem que eu ache quem fez isso com ela?

— Nós sabemos quem fez isso, senhor Urameshi.

Eu fiquei calado, esperando que continuasse. A youkai do meu lado estava completamente impassível, nenhuma emoção no rosto, nem boa nem ruim. Apenas os lábios apertados, quase um risco de tão finos. Não se mexeu nem um centímetro. Eu começava a me arrepender de ter saído de casa hoje.

Então Daya, que estava calada até agora, virou o rosto parcialmente do banco da frente.

— Nika se matou — ela falou.

Olhei de Daya para Kishimoto, e de Kishimoto para Daya. Nenhuma das duas falou mais nada. Daya já tinha voltado a olhar para frente, e Kishimoto me observava em silêncio, com os lábios finos e apertados agora curvados para baixo e uma expressão de desgosto. O carro seguia macio pela rua. Só o som fraco do pneu sobre o asfalto quebrando o silêncio.

— O que isso quer dizer? — perguntei.

— O que você ouviu. Nika tirou a própria vida — Kishimoto falou.

— Não há caso nenhum aqui então — falei.

— O caso, senhor Urameshi, é descobrir porquê. Nika não era suicida. Alguém fez ela agir assim. Ou alguma coisa.

— Drogas, depressão, dívidas. Muita coisa faz as pessoas agirem assim.

— Não desse jeito. Eu conheço minhas garotas.

Eu olhei novamente para a foto. O resto do corpo não parecia machucado, apenas a cabeça destruída. O que quer que tinha acontecido ali dentro, tinha sido violento, não apenas pelo estado que ela tinha ficado, mas também pela reviravolta do quarto.

— Por que eu? — perguntei — Não trabalho mais com isso. Não tenho mais minhas fontes. Aposto que metade da Cidade Nova me odeia.

— Você é um de nós — disse Kishimoto — E eu sei que possui experiência com elementos insólitos. Ninguém mais poderia conduzir esse caso.

Soltei um suspiro.

— Eu não sei o que espera que eu diga — falei.

— Diga apenas que aceita, senhor Urameshi.

(…)

O carro me deixou a duas quadras de casa. Não sei como sabiam também a área que eu morava, já que me levaram direto até lá, mas preferi nem perguntar. Penas pedi para me deixarem antes pois queria andar um pouco. Aquela noite ficava mais estranha a cada hora que passava.

— Vocês querem que eu investigue um caso de suicídio. Isso nem faz sentido — eu falei.

Daya tinha saltado do carro junto comigo e, mesmo contra a minha vontade, andava do meu lado. Usava uma jaqueta por cima do vestido fino, e tinha a fechado até o pescoço. Eu parei em uma esquina, ela fez o mesmo. Acendi um cigarro. Só havia nós dois na rua.

— Kishimoto ofereceu um bom dinheiro pelo caso. Tem certeza que quer recusar?

— Eu não preciso de dinheiro.

Ela me encarou.

— Mas precisa de um propósito, não é? Não foi por isso que foi ver do que se tratava o youkai que estava sendo usado como atração pelos humanos? Por ter cansado da vida pacata e da aposentadoria autoimposta?

Eu traguei o cigarro, quase esmagando o filtro entre os dedos.

— Você não sabe nada sobre mim.

Daya encostou do meu lado, se apoiando na parede. Eu ainda não tinha entendido por que ela não havia seguido no carro e me deixado em paz, mesmo depois de eu ter falado que iria pensar no assunto.

Não pensaria nada, claro, não tinha nada para pensar. Mas eu sabia que não iriam me deixar descer enquanto eu continuasse falando não.

— Eu sei que presenciou outro suicídio essa noite — ela disse. Então pelo visto ela tinha acompanhado a cena também.

— O que isso tem a ver? Suicídios são normais. É uma merda dizer isso, mas é verdade.

— Achou alguma coisa do que viu hoje normal?

Não respondi. Apenas me lembrei da sensação que senti dentro do trailer, de como tudo me pareceu estranho. Daquele grunhido maldito, dos olhos brancos, daquela morte inexplicável, apesar de ter visto tudo com meus próprios olhos.

— Está querendo dizer que as duas mortes estão conectadas?

— Eu não sei. O detetive é você. Mas a morte de Nika também foi assim. Estranha. Ela bateu a própria cabeça na parede tantas vezes que conseguiu estourar o cérebro. Você viu o que restou dela naquela foto. Ninguém se mata desse jeito.

Céus. Senti a mesma onda ruim novamente.

— Como você pode ter certeza de que foi isso que aconteceu? — perguntei — Como sabe que não foi alguém que fez isso com ela?

— Por que eu estava lá.

Tirei as costas da parede e olhei para ela, incrédulo.

— Você viu isso acontecer?

Ela fez que sim com a cabeça.

— Mais alguém estava lá na hora?

Dessa vez, respondeu que não.

— Está me dizendo que você foi a única testemunha na morte bizarra dessa garota? Você sabe que isso te coloca como a suspeita número um do caso, não é?

— Então você vai pegar o caso?

Voltei a encostar na parede. Minha cabeça já estava rodando demais. Nem sabia mais que hora da madrugada era aquela, mas meu estômago doía e tudo que eu pensava era que devia deitar. Tudo tinha sido um erro, desde o momento de eu ter decidido fechar o restaurante mais cedo, até entrar no carro e agora continuar a conversa com essa maluca.

Daya veio para minha frente. Me encarou, mas eu desviei o olhar para o lado. Quando eu estava prestes a levar o cigarro para mais uma tragada, Daya interceptou minha mão e pegou o cigarro dos meus dedos. Levou à própria boca, fumou e soltou a fumaça para o lado, os olhos ainda em mim. Depois me devolveu. Teria protestado a ousadia, mas estava cansado demais.

— Por que você se importa tanto assim que eu pegue esse caso? — perguntei. Achei que Daya estava apenas cumprindo seu trabalho, mas aquela insistência era exagerada até mesmo para alguém que só quer mostrar serviço — Qual é sua ligação com tudo isso?

— Nika era minha amiga. Era importante pra mim.

Suspirei e esfreguei os olhos. O cigarro agora tinha uma mancha de batom no filtro e eu acabei jogando fora.

Eu não conseguia tirar da cabeça a conversa com Koenma. Era como se tudo voltasse para aquele dia, para as palavras dele sobre youkais estarem em risco, ou os interesses dele e do Reikai serem diferentes. E eu sei que tinha prometido não me envolver em mais nada que fosse remotamente ligado ao Mundo Espiritual — ainda que, em teoria, eu ainda não soubesse ao certo qual era a ligação.

Principalmente depois da briga que estourou entre nós dois seis anos atrás. Tudo bem, não me orgulho de ter sido um babaca com Koenma, mas também não me arrependo. Na época eu tinha gritado, nossos rostos praticamente a dois centímetros de distância, que não queria saber mais de nada. Que queria que o Reikai se explodisse, e com ele dentro. Demorou anos para que a gente voltasse a se falar. E nunca mais foi a mesma coisa.

E não é como se eu não tivesse consciência que tinha uma parcela gorda de responsabilidade em muito do que aconteceu de lá para cá. Mas aquele era o tipo de coisa que não era problema meu. Definitivamente não mais. Pelo contrário, era exatamente o tipo de coisa que tinha me colocado naquela situação em primeiro lugar. E a hipótese de me comprometer com o que eu não queria me deixava inquieto. Ou de dar a entender a Koenma, ainda que indiretamente, que eu estaria disposto a ajudar o Reikai mais uma vez com o que quer que fosse.

Por isso, eu me arrependi no mesmo minuto que dei um passo para o lado, enfiei as mãos no bolso do casaco, olhei para Daya por cima do ombro e falei:

— Tudo bem, avisa sua chefe que eu aceito. E que vou cobrar caro. Agora me deixa em paz que eu preciso dormir.

Não sei o que eu esperava, mas no mínimo um agradecimento. Ou apenas que assentisse, sei lá. Em vez disso, Daya apenas respondeu:

— Ela não é minha chefe.

E foi embora pelo lado oposto ao meu.