Capítulo 2 - Remus
A última lembrança que Remus tinha de sua mãe vinha de uma noite fria em que os dois corriam descalços pelas ruas de uma cidade qualquer, ainda em trajes de dormir.
Remus não fazia ideia do quê, exatamente, eles estavam fugindo, mas também não se atrevia a perguntar. Sua mãe, por sua vez, apenas corria com todas as suas forças, puxando-o pela mão.
Ela sempre fora uma mulher muito bonita; cabelos castanhos compridos, olhos puxados da mesma cor enfeitando um rosto fino e delicado; mas sua aparência não era nem de perto parecida com a beleza elegante das moças de sua época, cultivada com esmero por cabeleireiros e cosméticos. Pelo contrário, seus cabelos eram tratados com água, sabão e pente e Remus jamais vira sua mãe pintar os lábios em toda a sua vida.
Aquela mulher era dona de uma beleza selvagem, que dispensava qualquer cuidado. Contudo, nos últimos dois anos, Remus viu aquela flor do campo começar a murchar. De uma hora pra outra, sua mãe começou a perder peso e os primeiros fios brancos surgiram em seus cabelos. Foi na mesma época em que os dois deixaram a cidade onde haviam morado durante os últimos dez anos e passaram a empreender uma fuga incessante.
Tudo começou na manhã em que Remus contou para sua mãe sobre os sonhos que tivera naquela noite. Sua mãe sempre demonstrava grande interesse pelos sonhos do filho e o incitava a contá-los quase todas os dias, mas daquela vez, ela não ouviu o que Remus falava com o mesmo sorriso franco, quase aliviado de todas as noites. Pelo contrário, a cada palavra que ele lhe dizia sobre lobos reunidos, uivando sob a luz do luar, sua expressão se fechava mais. Remus, entretanto, continuou a falar, animado, só percebendo o efeito de suas palavras sobre sua mãe quando a viu começar a tremer.
- Mamãe? - ele perguntou, inseguro - A senhora está bem?
Ela apenas fechou os olhos por alguns segundos antes de responder:
- Arrume suas coisas. Vamos embora daqui.
Desde então, os dois passaram os últimos dois anos em intensa peregrinação, não tendo tempo para estabelecer raízes em lugar algum. Sua mãe passou a cuidar de sua educação, pois nunca ficavam tempo suficiente numa mesma cidade para matriculá-lo num colégio. Além disso, o interesse por seus sonhos somente se intensificou. Todas as manhãs, Remus era forçado a fazer um relatório detalhado sobre cada detalhe do que sonhava. Quando não sonhava nada, acabava tendo que inventar alguma coisa para evitar que sua mãe passasse o resto da tarde insistindo para que tentasse se lembrar.
E, claro, bastava que Remus mencionasse a palavra "lobo" para ela o mandar fazer a malas novamente.
Certa vez, cansado de fugir de algo que ele sequer sabia o que era, Remus simplesmente não contou nada a ela.
Foi quando tudo aconteceu.
Ela abriu os olhos no meio da noite, como se pressentisse a proximidade de alguma coisa. E então, sem perder tempo, andou até a cama de Remus e o sacudiu com força.
- Temos que sair daqui, meu filho!
Não levaram nada. Nem dinheiro, nem bagagem, apenas correram com todas as suas forças. Sua mãe parecia desesperada e Remus sentia a garganta apertada pela culpa. Correram muito por alguns minutos, ignorando carros e sinais de trânsito até virarem numa esquina, encontrando uma rua deserta e coberta de névoa.
No fim da rua, parado junto a uma fileira de carros estacionados, estava um homem alto e de cabelos negros, muitíssimo compridos e repicados como se ele tivesse usado a navalha para se livrar apenas de algumas mechas que o incomodavam. Seus olhos eram dourados e muito brilhantes, nada parecidos com qualquer coisa que Remus tivesse visto antes a não ser em seus sonhos, também estava descalço, e vestia-se de uma forma muito rústica e descuidada. Em seu pescoço, uma tira de couro amarrada a um dente de animal chamou a atenção de Lupin.
Ao vê-los correndo em sua direção, o homem simplesmente cruzou os braços e esperou, sem mexer um único músculo.
Aquela visão produziu um efeito devastador em sua mãe. Ela parou de repente, apertando sua mão com mais força, o rosto transtornado pelo desespero. Remus sentiu que ela teve o ímpeto de fugir, mas algo a impediu e ela apenas ficou parada, tremendo da cabeça aos pés, enquanto o outro caminhava na sua direção.
Sua mãe então esperou até que ele estivesse próximo o suficiente para se atirar de joelhos a seus pés, puxando Remus para que fizesse o mesmo, começando a chorar copiosamente.
Remus se ajoelhou, mas, ao contrário de sua mãe, não abaixou a cabeça, preferindo olhar a expressão aparentemente pouco comovida daquele homem.
- Por favor... pelo amor de Deus... - ela implorou com a voz embargada pelas lágrimas. Remus arregalou os olhos, surpreso; nunca tinha visto sua mãe chorar antes.
Os olhos dourados daquele homem abandonaram a figura da mulher e se dirigiram a ele.
- Levante-se! - ele ordenou, severo - Um membro do nosso povo jamais se ajoelha.
Remus obedeceu imediatamente, atrevendo-se a encarar aquele homem nos olhos. Sua mãe, ao contrário, apenas soluçava mais e mais, curvando o corpo até que sua testa tocasse o chão.
- Por favor... não o leve... por favor... - ela sussurrou, sua voz enfraquecida pela falta de ar.
- Você conhece as regras. - sua voz era potente e grossa como o trovão e nenhuma expressão surgia em seu semblante - Levante a cabeça. Eu não escolhi você por isso.
- Mas, ele é meu filho! - ela gritou, esticando o corpo para segurar os panos da calça dele, ainda de joelhos.
- Ele é filho de Gaia. - ele respondeu sem tirar os olhos de Remus - Ele é um Garou e está na hora de retornar ao seu verdadeiro lar.
- Não... não... - ela ainda implorava, cada vez mais fraca.
Ele não se mexeu nem mesmo quando ela levantou a cabeça, buscando o seu olhar.
- Mulher egoísta. Sabe melhor do que ninguém que seu filho nunca será completo até uivar em homenagem à Lua ao lado de seus irmãos e mesmo assim o prende?
Por alguns segundos, o único barulho audível eram os soluços inconsoláveis daquela mulher. O homem esperou até que ela se acalmasse pelo menos um pouco para só então elevar novamente a voz.
- Levante-se, Hope... e diga adeus ao seu filho. Você não é uma de nós, mas há sangue Garou correndo em suas veias.
Sua mãe ficou de pé, encarando o outro com uma expressão que parecia misturar dezenas de sentimentos. Respeito, desespero, medo, tristeza, ódio e amor. Sua mão buscou a de Remus e a apertou com firmeza.
- Você vai ter que me matar se quiser levá-lo embora! - ela finalmente ameaçou, causando um calafrio em Lupin e a primeira demonstração de desagrado de seu interlocutor.
- Você realmente deseja que a primeira transformação de seu filho seja amaldiçoada pelo seu sangue?
O corpo dela começou a tremer ainda mais do que antes, mas, desta vez, Remus percebeu que ela tremia de raiva porque seus dedos estavam quase sendo esmagados pelos dela.
- Eu não vou deixar que leve o meu filho! - ela gritou, sem conseguir impedir que mais duas lágrimas rolassem pelo seu rosto.
- Não é uma escolha sua.
- É uma escolha minha sim! - ela o desafiou, dessa vez abertamente.
O homem respirou fundo, como se precisasse daquele gesto para ter forças para dizer em voz alta as palavras que proferiu em seguida:
- Lamento que pense desse jeito, mas se é o seu desejo...
Remus arregalou os olhos quando viu o outro arreganhar os dentes, como um animal pronto pra atacar e, então, se desprendeu da mão que o prendia, se colocando na frente de sua mãe.
- Remus, não! - ela ordenou, mas ele não lhe deu ouvidos.
- Não toque nela! - ele falou pela primeira vez e sua voz saiu agressiva, grossa como nunca antes, enquanto ele desafiava o homem a sua frente sem demonstrar o menor sinal de medo - Você quer que eu vá junto com você? Ótimo! Mas, não a machuque, ou eu juro que te faço em pedaços!
O outro apenas olhou pra Remus, parecendo satisfeito, antes de abandonar por completo sua postura ofensiva para perguntar:
- Esta é a sua última palavra?
- Sim!
- Não! - sua mãe gritou, perdendo o que restava de forças e caindo de joelhos no chão novamente.
- Então, venha comigo, filho de Gaia. Venha encontrar sua verdadeira família.
Remus agachou-se ao lado da mãe e secou suas lágrimas com os dedos suavemente antes de abraçá-la. Ela apenas deixou-se soluçar em seus braços por alguns instantes, não encontrando forças para segurá-lo quando ele se afastou. Ele então olhou sua mãe pela última vez, sentindo-se incapaz de dizer qualquer coisa, nem mesmo um pedido de desculpas pelo sofrimento que a estava fazendo passar. Sua mãe apenas balançou a cabeça, querendo dizer que ele não precisava fazer aquilo. Mas, ele tinha dado a sua palavra, e jamais poderia voltar atrás.
- Adeus, mãe. Cuide-se bem. - foi tudo que ele foi capaz de falar, antes de lhe dar as costas para sempre e seguir aquele total desconhecido.
Caminharam em silêncio durante muitas horas. Remus não tinha ânimo e nem vontade de iniciar uma conversa com aquele homem misterioso que o fizera abandonar sua mãe, sem demonstrar o menor remorso ao deixá-la para trás, totalmente só.
Mas, horas de viagem deram a Remus a oportunidade de observar melhor aquele homem misterioso. Não havia dúvidas de que era uma pessoa forte não apenas física, como também emocionalmente. Ele mais parecia uma árvore do que uma pessoa, tamanha era sua altivez.
- Está com fome? - ele perguntou a certa altura. Remus abriu a boca para dizer não, mas seu estômago foi mais rápido, produzindo um protesto embaraçoso.
- Tem um restaurante aqui por perto... - ele comentou, um pouco distante, como se fizesse força pra lembrar a localização exata - Ali, naquela rua.
Remus o seguiu e os dois entraram num pequeno estabelecimento de higiene duvidosa. O homem buscou a mesa mais reservada, no canto extremo do salão.
- Boa noite. O que desejam? - uma garçonete surgiu, enchendo suas xícaras com café quente e tirando um bloco de notas do bolso do avental manchado de gordura.
Remus olhou para o outro, que apenas fez um gesto com a cabeça, dando-lhe permissão para pedir o que quisesse.
- Er... quero panquecas, por favor. - Remus falou a garçonete, que deu um sorrisinho antes de anotar o pedido.
- Certo... e o senhor?
- Ah... o mesmo que ele...
- Sim, senhor. - ela respondeu e então deu as costas, afastando-se rapidamente.
Remus estava adoçando seu café quando surpreendeu o outro olhando para o líquido preto com desconfiança e abaixando a cabeça para cheirá-lo antes de finalmente segurar a xícara e provar seu conteúdo. E, então, teve que conter o riso ao ver a força que o outro fazia pra conter uma careta de desagrado.
- Tente com açúcar. - sugeriu, empurrando o açucareiro na direção do outro, solidário – Mas, não bote demais.
O outro tomou o vidro, virando-o na direção do café, mas sua sobrancelha se arqueou ao ver que o pó branco estava grudado no fundo do recipiente. Balançou duas vezes e nada. Impaciente, ele chacoalhou o açucareiro uma terceira vez, com mais força, batendo com a palma da mão no fundo. Foi o suficiente para que uma montanha de açúcar caísse sobre o café, espalhando líquido para todos os lados.
Remus conteve uma risada com custo enquanto o homem bufava, irritado, tal qual um animal impaciente. Aquilo fez com que o gelo entre os dois se quebrasse de alguma forma.
- Tome o meu. - Remus empurrou a xícara na sua direção.
- Obrigado. - ele falou, ainda parecendo aborrecido com o açucareiro. Sorveu um pouco do café, desconfiado, antes de olhar diretamente pra Remus.
- Posso perguntar quem é você? E pra onde está me levando?
- Você deveria estar mais interessado em saber quem é você. - ele respondeu, enigmático.
- Oh... E, por acaso, o senhor sabe quem sou eu?! - Remus se espantou, sua pergunta soando como um desafio, duvidando que aquele total desconhecido pudesse saber algo sobre si mesmo que ele não conhecia.
- Exato. - e fazendo uma pequena pausa antes para tomar o cafá, ele prosseguiu, muito sério - Você pertence a uma das raças mais nobres e poderosas que ainda caminha pela terra, Remus. Você é um Garou.
- O quê?
- Você é um lobisomem. - ele esclareceu, fazendo com que sua expressão de assombro aumentasse ainda mais.
- Você é louco. - Remus finalmente falou, depois de alguns segundos de observação muda - Eu vou voltar pra casa.
- Fique onde está e ouça. - o outro falou, já mostrando os caninos numa ameaça.
Remus, que tinha pousado as palmas das mãos na mesa com o intuito de se levantar, manteve-se sentado ao ver o olhar ameaçador que o outro lhe dirigira.
- Você nunca se adaptou com as outras pessoas. Por mais que se esforçasse. Você sempre sentiu que era diferente de todos os outros...
- Eu e cerca de 80% da população humana... - Remus respondeu, sem se deixar convencer.
- Desde criança você sente falta de alguma coisa... - ele continuou, indiferente - Nas noites de Lua Cheia, particularmente. Você fareja melhor do que os outros e pode sentir o mais suave dos perfumes a distância. Às vezes, você tem sonhos estranhos... onde percebe que o seu corpo está diferente e que não está mais acompanhado de pessoas e sim de lobos... você sonha que está uivando pra Lua junto com eles... e você se sente completo.
- O quê? - Remus começou a falar, mas o outro não lhe deu a chance de dizer coisa alguma.
- E quando você acorda... o vazio está lá novamente... você está só... no meio de multidões.
- Isso não prova coisa alguma. - Remus finalmente falou, depois de um longo silêncio.
- Eu não estou querendo provar algo que você já sabe...
- Eu sei?
- Sim, todos os Garou sabem o que são na verdade... por mais que se enganem.
A garçonete retornou, trazendo dois pratos e os depositando sem muito cuidado na mesa, depois de passar rapidamente um pano úmido para limpar toda a sujeira.
- Deixando essa história de lobisomem de lado... - Remus voltou a falar assim que a mulher se afastou, tentando ignorar o sofrimento que o mero ato de segurar os talheres provocava àquele homem - Você poderia me responder algumas perguntas?
- Pode falar. - ele disse, desistindo do garfo e passando a cortar a panqueca e espetar os pedaços com a faca.
- Quem de fato é você?
- Meu nome é Orion Wolfric.
- E como conheceu a minha mãe?
Ele mastigou algumas vezes um pedaço grande demais de panqueca antes de responder:
- Eu a cobri.
Remus arregalou os olhos de susto:
- Isso quer dizer que você... é meu pai?
- Esse tipo de coisa não existe entre nós. Somos irmãos. Nada mais, nada menos.
- Minha mãe sabia?
- Que eu sou um Garou? Claro que sabia! Ela também faz parte da família, apesar de não ser lupina.
- E pra onde você vai me levar?
- Pra sua verdadeira casa, onde você terá que provar o seu valor antes de se tornar um de nós.
- Provar meu valor? Como?
- Você verá. - ele respondeu, enigmático, deixando claro que Remus não conseguiria arrancar mais nada dele.
- E se eu disser que não quero ir embora com você?
- Eu te direi que você está mentindo.
Remus não fez novas perguntas e os dois comeram em silêncio. E, ao final, o menino teve que ajudar o lupino a pagar a conta. Após isso, os dois ganharam novamente o ar frio da noite.
- Venha. Temos um longo caminho pela frente. - o Garou falou, muito sério, já começando a andar.
Remus poderia ter corrido. Poderia pelo menos ter tentado voltar pra casa, mesmo que tivesse dado sua palavra de que iria sem reclamar. Mas, não o fez. Ao invés disso, ele apenas seguiu aquele homem, deixando para trás a vida que tivera nos últimos anos.
Continua...
