Extra - Tonks
- Você sabia, Remus? - ela lhe perguntou certa vez, como quem não quer nada - Que seu pai era apaixonado pela minha mãe?
Eram crianças ainda. Remus tinha um pouco mais do que quatorze anos e havia sido aceito pela tribo há alguns meses. Mas, apesar de ter demonstrado o seu valor para os demais, ele ainda tentava se adaptar ao novo estilo de vida que lhe era imposto, aprender novos hábitos e costumes, saber o que era considerado valoroso e o que era motivo de vergonha entre os Garou. Para tanto, Orion decidiu pedir o auxílio dela, confiando no fato de que tinham a mesma idade e que, graças a isso, deveriam se entender melhor.
Tonks inicialmente aceitou aquela missão com extrema má vontade, mas, depois de alguns meses de convivência com Remus, sua opinião mudou drasticamente. Ao contrário dela, agitada por natureza, Remus era uma criança mansa. E, diga-se de passagem, bem mais interessado em aprender a cultura de seu povo do que ela. Aliás, se Tonks tivesse que dizer qual era o defeito mais irritante que seu novo amigo tinha, com certeza ela falaria sobre sua incrível capacidade de perder horas ouvindo, fascinado, todas as histórias que os mais velhos tinham para contar.
Mas, apesar de Tonks preferir imensamente as aventuras e caçadas às histórias contadas por lobos velhos, ela e Remus se davam bem. Tanto que ela passou a reparar melhor no amigo de uns tempos pra cá, percebendo algumas coisas interessantes nele como, por exemplo, o interesse vívido que parecia nutrir pelo chefe da tribo. Volta e meia ela o pegava acompanhando todos os movimentos que seu pai fazia de longe, ou o surpreendia apenas observando Orion durante os longos minutos em que ele costumava ficar parado, apenas olhando o fogo crepitar na fogueira.
A partir daí, o Alpha se transformou no grande trunfo que Tonks sempre retirava da manga em meio a uma boa barganha. Sempre que ela queria que Remus fizesse alguma coisa por ela e encontrava alguma resistência, tudo o que tinha a fazer era oferecer alguma informação interessante sobre o líder da tribo e seu amigo logo mordia a isca.
Aquela vez não era diferente. Ela queria nadar no rio, mas Remus estava mais interessado em ler uns pergaminhos amarelados. Então, ela simplesmente jogou aquela informação no ar, fazendo com que os olhos do lupino se arregalassem de surpresa.
- Como você sabe disso? - ele perguntou, parecendo totalmente esquecido dos tais pergaminhos, que, antes, pareciam tão importantes.
Ela deu um sorriso malvado.
- Só conto se você nadar comigo.
Remus deu um suspiro paciente:
- Está certo.
Na hora, Tonks ficou animada com a concordância do outro, porém, mais tarde, quando ele cobrou maiores detalhes sobre a tal paixão, ela não pôde deixar de sentir uma ponta de arrependimento por ter usado um assunto daqueles como meio de barganha.
- Bem... Todo mundo meio que sabia disso. - ela respondeu depois de alguns segundos de hesitação.
- Mas, como?
- Eles eram muito próximos. Estavam juntos quase que o tempo todo. Mas, nunca se encostaram.
- Então, como vocês sabem que eles eram realmente apaixonados? Eles podiam ter sido grandes amigos.
Tonks ficou alguns segundos em silêncio, como se refletisse sobre a prudência de continuar a contar.
- Bem... quando a minha mãe adoeceu, o Sr. Orion deixou tudo de lado pra ficar com ela dia e noite. E quando ela faleceu... bem, ele ficou muito mal... Passou semanas sentado ao lado do túmulo dela. Todos pensaram que ele acabaria morrendo também.
- Isso é tão triste... - Remus lamentou, olhando para o chão cheio de pedregulhos que formava o caminho entre a tribo de lupinos e o rio - Se eles se amavam tanto deveriam ficar juntos.
- O que está falando, seu bobo? - Tonks riu - Eles jamais poderiam ficar juntos.
- Ora... por que?
- Por milhões de motivos. O principal de todos é que a litania (1) não permite. Você, que adora meter o nariz em todos aqueles pergaminhos, deveria saber disso. Já pensou que vergonha seria se um líder de tribo colocasse um filhote impuro no mundo?
- Qual a importância disso?
Tonks soltou uma exclamação impaciente.
- Você ainda não sabe de nada sobre o que é ser um Garou, Remus.
- Provavelmente você está certa. - ele disse sem demonstrar qualquer alteração na voz – Mas, não acho que a minha opinião mudaria mesmo que eu soubesse.
- Sua opinião não faz o menor sentido. - ela lhe respondeu, severa - É muito importante pra nós ter filhotes saudáveis, ou em breve encontraremos a nossa destruição.
- Não somos feras reprodutoras.
- Não estou falando isso.
- Então pare de usar esse tipo de justificativa.
- Eu apenas estou fazendo o que você não consegue. Pensar como um Garou.
- Me diga, Tonks... Se você se apaixonasse por um Garou... o que faria?
- Eu nunca vou me apaixonar por um Garou! – Tonks se indignou.
- Vamos lá... É só uma hipótese. - Remus insistiu, paciente.
- Não precisa perguntar. Eu não faria absolutamente nada.
- Nem sequer falaria pra ele?
- Não! Pra quê? Seria pura perda de tempo.
Remus respirou fundo.
- Então é melhor mesmo que isso nunca aconteça com você.
Pelo menos em uma coisa Tonks era forçada a concordar com Remus: teria sido realmente muito melhor se ela não tivesse se apaixonado por ele.
Tonks às vezes pensava que aquilo só podia ser uma maldição forte o suficiente a ponto de passar de mãe para filha. Não que ela estivesse muito preocupada em buscar explicações. Tudo o que ela queria era esquecer aqueles sentimentos que a atormentavam a ponto de impedi-la de pensar em qualquer outra coisa.
Mas, sempre que ele a olhava daquela maneira doce e paciente, sempre que ele falava com ela, ou cedia a algum de seus caprichos, seu coração saltava no peito exatamente da mesma forma que acontecia quando lhe permitiam fazer parte de alguma caçada. No começo, até tentara negar aquele sentimento, mas por mais que ela tentasse se afastar, o resultado era sempre o mesmo. Não demorou muito para se dar conta que seu mundo girava em torno de Remus.
Nos últimos tempos, ela pensava muito naquela conversa que teve com Remus a respeito de seus pais. E, de repente, ela se pegava desejando ter a mesma opinião do amigo a respeito. Pelo menos assim, ela teria coragem para lutar pelo amor dele.
Aliás, achava extremamente irônico o fato de ter sido justamente ela a se apaixonar por um Garou, enquanto Remus mostrava interesse unicamente pelos livros. Sim, deveria ser castigo pelas palavras orgulhosas que ela dissera naquele dia.
Mas, tudo o que precisava fazer agora era esquecê-lo de qualquer jeito. Deveria manter-se longe dele o máximo de tempo possível. Mesmo que ele não compreendesse seu afastamento, que ele tentasse se aproximar e falar com ela como sempre se falavam. Ela deveria resistir. Ser fria. Ser forte. Mesmo sendo tão difícil.
De vez em quando, ela se pegava desejando que alguma coisa muito séria acontecesse com a tribo e que a deixasse tão ocupada que não teria sequer tempo de pensar em Remus. Sim, porque as coisas que ela precisava fazer em seu cotidiano não eram suficientes para afastar seu pensamento dele. Pelo contrário, volta e meia ela acabava se colocando em perigo e também aos companheiros, graças às suas distrações durante as caçadas.
Mas, apesar de desejar que algo acontecesse, aquele era um pensamento muito ligeiro, que ela logo tratava de espantar de sua cabeça com toda a rapidez possível. Tonks nunca poderia imaginar que, muito pouco tempo depois, veria seus desejos transformados em realidade.
Quando Greyback retornou, depois de meses enfiado num exílio voluntário, e imediatamente desafiou Orion para um duelo de vida e morte pelo domínio da tribo, ninguém duvidou que seria mais uma vitória fácil para o Alpha, por mais que o outro parecesse estranhamente mais forte do que antes.
Mas, não foi isso que aconteceu. Tonks sequer podia acreditar no que seus próprios olhos estavam presenciando. Certa vez, Remus tinha mostrado a ela um poema lupino muito antigo, que dizia que, para sobreviver à uma luta de vida ou morte, um Garou deve antes escolher entre uma das alternativas: viver ou morrer. Tonks sempre acreditou que tudo o que alguém precisava para ser capaz de vencer uma luta era força e nada além e, por isso, achou aquele poema muito estúpido. Chegou a caçoar de Remus, dizendo que vontade de viver não era nada em comparação a uma boa porção de músculos bem desenvolvidos e de uma mandíbula bem resistente.
Mas, durante a batalha entre aqueles dois lupinos, ficou claro para ela que Orion não demonstrava a mesma paixão que o tornara invencível no passado e que suas presas procuravam a carne do oponente sem a mesma segurança de um líder. Até mesmo seus reflexos, antes tão ligeiros, pareciam tê-lo abandonado, porque ele não conseguia se esquivar das investidas de Greyback com a mesma eficiência que demonstrara no passado.
Tonks reparou também que, ao contrário de Orion, Greyback parecia estar mais certo do que nunca sobre o resultado daquele duelo e lutava sem parecer se importar com os ferimentos, nem com o risco de perder a vida.
O tempo todo, os versos do poema dançavam na cabeça de Tonks, como um mantra. Enquanto os dois lupinos empinavam os corpos, apoiando o peso um no outro pra poder morder a vontade. Tudo o que ela via era aquele que havia escolhido a vida e aquele que optara pela morte.
Remus só se juntou ao grupo de expectadores no exato instante em que Orion desabava pesadamente no chão, exausto e muito ferido, mas, ainda assim sem oferecer a garganta (2) ao oponente. Tonks se voltou imediatamente na direção de Remus, encarando o amigo ofegante e confuso, ciente de que ele logo entenderia ainda melhor do que ela o que estava acontecendo.
- O que está acontecendo aqui? - ele perguntou ao ver Greyback afundando a pata no peito do Alpha, grunhindo, como se exigisse que o outro se rendesse. Orion apenas grunhiu de volta, feroz, recusando veementemente a conceder a vitória ao outro por vontade própria - Não... Orion...
Remus deu um impulso na direção dos dois oponentes, mas Tonks previu seus movimentos e o deteve antes que ele pudesse interferir, suportando bravamente quando os olhos dourados de Remus se afundaram nela, repletos de ódio, exigindo, sem dizer uma palavra, que ela o soltasse.
Mas, apesar de sentir seu coração pesado como pedra, ela apenas apertou ainda mais seu braço.
- Você não vê, Remus? Ele fez sua escolha. Nós não podemos interferir.
O olhar de Remus se suavizou do ódio para o desespero antes que ele desviasse o rosto na direção dos dois duelistas, bem a tempo de ver os dentes de Greyback se fechando na garganta de Orion com força, até ele finalmente parar de respirar.
Um pesado silêncio se seguiu mesmo quando Greyback largou a jugular do Garou para uivar, vitorioso, ainda com as patas sobre o peito do outro. Ninguém ousava sequer se mexer, ou estavam ocupados demais para assimilar todas as mudanças que a morte de um líder como Orion representava para eles. Remus tentou dar as costas pra aquela cena, mas, novamente, Tonks o impediu, sabendo que o novo Alpha não perdoaria qualquer demonstração de discordância com seu novo reinado.
Aquele silêncio perdurou até mesmo durante o enterro do antigo líder. Era como se nenhum daqueles lupinos conseguisse acreditar que Orion tinha sido derrotado. Ainda mais por Greyback, que, durante todos aqueles anos, sempre encontrava derrotas humilhantes todas as vezes em que desafiava o Alpha para um duelo.
Todos sabiam que as coisas mudariam radicalmente com a liderança de Greyback, mas ninguém se julgava poderoso a ponto de desafiar alguém capaz de derrotar Orion. A marca da força do antigo líder parecia gravada como o fogo na mente daqueles lupinos e eles sabiam que tudo o que tinham a fazer era se submeter à liderança do mais forte. Mas, apesar de ter desejado tantas vezes ter outros problemas para se preocupar, Tonks se descobriu totalmente indiferente ao novo "reinado" de Greyback, mesmo sabendo perfeitamente o que poderia significar ter Greyback como líder. Ela não era capaz de pensar em qualquer outra coisa além da segurança de Remus, pois sabia que o filho do antigo líder passaria a ser alvo constante das atenções de Greyback. O novo Alpha não era tolo o suficiente para pensar que Remus mais cedo ou mais tarde não tentaria vingar seu pai e tomar de volta a liderança assim que tivesse a oportunidade. E, por mais que seu amigo demonstrasse não se importar com nada daquilo naquele momento, ela sabia que seu líder aguardaria ansiosamente por uma oportunidade de se livrar daquela ameaça.
Muito por causa disso, a lupina passou a se submeter heroicamente à verdadeira tortura que era deixar suas caçadas de lado para fazer companhia a Remus e seus livros durante horas intermináveis de silêncio. A morte de Orion tinha feito com que Remus ficasse ainda mais taciturno do que de costume. Ele aumentara consideravelmente suas horas de leitura, porém, deixando um pouco de lado as lendas e costumes dos Garou para pular para um outro tópico: Vampiros. Tonks não conseguia imaginar o motivo, mas, parecia que Remus vinha se empenhando com todas as suas forças em ler tudo que havia a sua disposição sobre aquelas criaturas, tomando notas do que considerava mais importante. Tanto empenho, somado ao fato dele não dizer uma palavra sobre o que se passava em seu interior, deixava Tonks ainda mais preocupada e ansiosa a ponto de precisar conter a vontade de sacudir Remus pelos ombros só para ver se ele largava aqueles livros estúpidos e demonstrava qualquer tipo de sentimento.
Naquela tarde, os dois estavam sentados diante do rio como costumavam fazer quase todas as tardes, quando, cansada de ter de se submeter aos desmandos do líder durante toda a semana e estressada por não conseguir passar da página 20 de um livro chatíssimo que andava se forçando a ler durante as horas em que fazia companhia a Remus, Tonks finalmente sentiu-se com ânimo para desabafar.
- Você não vai fazer nada? - a pergunta era mais uma acusação frontal.
Os olhos de Remus se levantaram do livro, interrogativos.
- Do que está falando, Tonks? Fazer o quê?
- Ora... não sei... - ela hesitou - alguma coisa que não seja enfiar o nariz nesses livros.
- Tonks... - Remus respondeu, paciente - Eu não estou conseguindo te entender.
Tonks soltou um muxoxo impaciente:
- Desde que o Sr. Orion faleceu você não faz nada além de ficar aqui, na beira do rio, lendo um livro atrás do outro... eu esperei esse tempo todo pra ver se você parava com esse silêncio e falava alguma coisa... qualquer coisa... mas, você não reage!
- Você não deveria se preocupar tanto assim comigo. - Remus a interrompeu e, apesar de ter dito aquilo com o mais doce dos tons, aquela fala pareceu atravessar o coração de Tonks como uma bala de prata.
- Por que eu não deveria me preocupar tanto assim com você?! - ela estourou, levantando-se e jogando o livro para longe.
- Porque não é necessário... eu estou bem. - Remus manteve o mesmo tom, apesar da visível irritação de sua amiga - Aliás, eu sinceramente acho que você não deveria passar tanto tempo assim comigo. Eu sei que você está preocupada com o que Greyback pode vir a fazer, mas ficar por perto só vai te deixar em perigo também.
- E você pensa que eu me importo com isso? - ela quase gritou, fazendo força para conter as lágrimas depois de ser atingida por aquelas palavras.
Alguns segundos de silêncio se seguiram. Os dois se encararam, os olhos dela furiosos, os dele tranquilos e tristes. Remus foi o primeiro a quebrar o mutismo:
- Sabe, eu tenho pensado muito numa conversa que nós dois tivemos há alguns anos... você se lembra quando me contou sobre os nossos pais? - Remus perguntou, deixando nascer um pequeno sorriso ao lembrar-se da indignação da sua amiga frente às suas palavras.
- Sim, eu também tenho pensado muito nessa conversa... - Tonks confessou, sincera, parecendo um pouco mais calma.
- Pois então... eu penso naquela discussão que nós dois tivemos naquele dia... e, pela primeira vez, consigo entender o que você quis dizer. Quero dizer, meu pai teve a opção de escolher entre a nossa tribo e o que ele verdadeiramente queria e, pela primeira vez, escolheu ser egoísta. Ele sabia que Greyback nos conduziria aos piores destinos... mas, mesmo assim, não foi capaz de vencer o seu próprio desejo de deixar este mundo pra finalmente poder se juntar a quem ele amava. Depois de tantas renúncias, uma única atitude egoísta e Deus sabe onde vamos parar agora...
- Remus...
- Sim, eu entendo o que você falou sobre pensar como um Garou... - Remus concluiu antes que ela pudesse dizer alguma coisa - ... e, agora, posso dizer que admiro isso. Mas, eu nunca serei como vocês porque sou um covarde.
Tonks teve vontade de dizer que não era nada daquilo, que a errada era ela, que a covarde era ela. Teve vontade de abraçá-lo e soluçar durante horas. Teve vontade de confessar o tanto que ela sofreu desde o momento em que tinha se apaixonado por ele, mas que não era capaz sequer de dizer em voz alta os seus verdadeiros sentimentos. Não por orgulho, nem por respeito à lei dos Garou, mas por medo de ser rejeitada por Remus e por toda tribo que abrigou sua mãe e ela há tantos anos. Porém, tudo o que conseguiu fazer naquele momento foi reprimir aquela explosão de sentimentos e esticar o braço na direção de Remus, tocando seu rosto numa carícia suave antes de responder com firmeza.
- Você não é covarde, Remus. - ela respirou fundo, antes de continuar - Eu sei disso e nada me convencerá do contrário, o que quer que aconteça.
Os dois se encararam durante alguns segundos, antes que ela desse as costas ao lupino, incapaz de ficar ali mais um minuto sem chorar.
Tonks nunca seria capaz de imaginar que aquela seria a última conversa que os dois teriam antes de Remus ser condenado ao ostracismo por Greyback.
Por amar um vampiro.
Fim
1. Litania. É a lei dos Garou, base de toda a sociedade Garou.
2. Oferecer a garganta significa desistir da batalha, se entregando à clemência do oponente. A Litania prevê que uma derrota honrosa deve ser respeitada e que não se deve matar um Garou depois que ele se rende dessa forma. Aliás, a mesma lei permite a qualquer Garou desafiar seu líder em tempos de paz, mas nunca em tempos de guerra.
