Esclarecimento: Só reiterando que esta história não me pertence, ela é uma adaptação do livro de mesmo nome, de Merline Lovelace, que foi publicado na série de romances "Clássicos Históricos Especial", da editora Nova Cultural.
Capítulo 14
Peeta apoiou um pé na curvatura da proa, examinando o horizonte. Acima dele as velas de linho, pintadas de verde para camuflá-las, inflavam e panejavam aos caprichos do vento. Cinco esguias naus de guerra acompanhavam a dele. Em meio à vastidão do mar azul, a ilha de Lemnos descansava ao Sol da tarde. Não havia sinal das velas do inimigo nas águas ao redor da ilha, nem qualquer evidência de movimentação anormal no seu principal porto, Myma.
- Outro alarme falso, hein, capitão ?
Peeta assentiu para o oficial ao seu lado.
- Sim, é o que parece. Mas sinalize para que os outros barcos permaneçam alertas: poderia ser uma armadilha.
- Ah ! Seria tão bom ! É a terceira vez que saímos como loucos para ajudar nossos aliados contra um suposto ataque e não há nenhum barco inimigo à vista ! - o homem gordo, de corpo com formato de barril, cuspiu na água - Mas, claro, a esquadra inteira de Esparta pode ter vindo e ido enquanto nos arrastávamos neste balde furado.
- Já comandei barcos mais velozes - admitiu Peeta, com um sorriso seco, olhando para o ponto onde o nome da embarcação estava escrito.
Batizada como Dorkas por causa das velozes gazelas que escalavam agilmente as montanhas, a trirreme sem dúvida não fazia jus ao nome. Fora o azar no sorteio que o fizera ficar com aquele barco velho e de casco que vazava, que deveria ter ido há meses para os estaleiros a fim de ser reparado. Quando ele voltasse para Atenas, os cidadãos ricos responsáveis pela manutenção do Dorkas ouviriam um bom sermão sobre atenienses que negligenciam suas obrigações, principalmente as que dizem respeito à segurança do Estado.
Assim que pensou em retomar para casa, ele sentiu uma súbita dor no baixo-ventre. A imagem de um rosto pequeno, com queixo atrevido e beligerantes olhos cinza dançou diante de seus olhos. Em seus lábios desenhou-se um sorriso sonhador ao recordar a mesma carinha coberta pela pintura branca de Aspásia. Ficou vermelho de paixão ao lembrar da noite do casamento de Annie. E...
A voz do oficial interrompeu-lhe os sonhos:
- Se não houver batalha hoje, ao menos poderemos aportar e conseguir mantimentos frescos. Quem sabe carne fresca também - acrescentou, com malícia - Não fizemos nada além de navegar atrás de boatos por várias semanas. Quero usar meu remo de forma diferente esta noite.
Peeta endireitou-se, lançando um sorriso rápido para o oficial.
- Vai manter seu remo a seco, homem. Permaneceremos no porto apenas o tempo necessário para pegar água e comida. O almirante quer que retomemos de imediato para a base, se não houver ação aqui.
Ignorando as reclamações do marinheiro, o capitão foi até a passagem entre os bancos do barco. A tripulação inteira reclamava. Fazia parte da natureza deles, apesar de Peeta admitir para si mesmo que as reclamações tinham justificativa, desta vez. Desde a partida de Atenas, há duas semanas, tinham conseguido poucas presas, com apenas um pequeno ataque num comboio coríntio para aquecer o sangue. Mais uma vez ele amaldiçoou seu azar no sorteio. Em vez de navegar sob as ordens de um almirante que respeitava e em quem confiava, mesmo em águas cheias de inimigos, ficara com o mais antigo e conservador oficial da armada. Sua missão era ir ao extremo norte do império, protegendo os mercadores gordos e suas cargas preciosas de prata e outros bens da Trácia. Ele sabia que era vital manter abertas as rotas de navegação que davam a Atenas sua riqueza e poder, mas, ainda assim, preferia estar do outro lado da península, patrulhando o mar Jônico com Cinna, o almirante da Frota Oeste. Seu instinto dizia que quando o inimigo finalmente aparecesse para lutar, iria fazê-lo em águas próximas de seus portos-base. Era lá, tinha certeza, que as batalhas decisivas seriam travadas. Enquanto o marinheiro disciplinado que havia dentro dele concordava com a importância vital do trabalho de escolta, o guerreiro que sempre fora desejava ardentemente estar no meio de uma batalha.
Não mostrou nenhum desses sentimentos quando aportaram em Myma. Um grupo dos pais da cidade foi ao porto recebê-los, juntando-se às libações lançadas na água em agradecimento pela passagem segura através do canal; Peeta recolheu as informações que pôde sobre os barcos inimigos avistados, mas recusou os convites de ficar pelo restante do dia e à noite.
Tinham ainda cinco horas de boa luz e soprava uma brisa constante. Se o vento permanecesse, poderia retornar através do mar Trácio, nesse mesmo dia, e chegar ao porto de Atenas por volta do meio-dia, no dia seguinte. Com sorte, uma presa de valor estaria à sua espera em Potidéia. Ele - assim como seus homens - precisava de ação para manter os instintos de combate apurados.
Mas quando aportaram em Potidéia, no entanto, as bandeiras nas torres de vigia indicavam que estavam em estado de alerta mínimo. Frustrado, mais uma vez o capitão fez o ritual de libação, liberou a tripulação e foi apresentar seu relatório.
- Então, felizmente não encontraram nenhum inimigo - disse o almirante de barba grisalha - Com tão poucos barcos que o Conselho nos destina, não quero perder nenhum em combates que não sejam decisivos.
- Temos o dobro dos barcos que a Frota Oeste tem - disse Peeta, com deliberada ironia.
O almirante lançou-lhe um olhar de ira:
- Já tivemos esta discussão anteriormente, capitão. Recuso-me a liberar você ou qualquer um de meus barcos para ajudar o tresloucado Cinna. A tarefa dele é manter os coríntios presos no golfo, e ele pode fazer isso facilmente com os barcos que comanda, se não tentar nenhuma de suas infantis manobras circenses.
Foi com esforço que Peeta conteve a resposta que teve vontade de dar. Não era a primeira vez, nas últimas semanas, que desejava que a lei que requeria capitães com menos de cinqüenta anos se aplicasse também aos almirantes. Era absurdo dar o controle geral da frota a alguém considerado velho demais para comandar um barco numa batalha.
- No entanto - prosseguiu o almirante com ar ofendido - , parece que fui vencido. Esta manhã chegou uma embarcação trazendo novas ordens. Péricles, com o consentimento do Conselho, ordena que você retorne. Deve seguir para Atenas imediatamente. Lá, deverá assumir um barco mais rápido e ir apresentar-se ao almirante Cinna, o mais depressa possível - ao ouvir aquilo, o capitão não conseguiu impedir-se de sorrir.
- Sim, senhor ! - respondeu de imediato.
- Hum ! Que os deuses velem por você em seu novo posto - disse o almirante, dispensando-o. Mas em seguida chamou-o: - Oh, havia também uma carta para você naquele barco. Está em seu alojamento.
Com ânimo renovado, Peeta seguiu pela praia, admirando a seqüência de excelentes abrigos para barcos. Nessa noite iria ao templo de Poseidon, decidiu, e sacrificaria um ótimo carneiro em agradecimento por ter sido liberado da tarefa de escolta. Depois precisaria de soldados que o ajudassem a percorrer a praia, os bares e prostíbulos à procura de sua tripulação.
Ao mesmo tempo que abria a porta de seu alojamento, chamou o escravo que o servia. Só depois de mandar o homem sair correndo, com uma lista de tarefas, foi que se lembrou da carta. Foi para o quarto e encontrou o pergaminho enrolado sobre a mesinha junto da cama, onde mantinha os mapas e material para escrever. Removendo o lacre de cera, desdobrou-a e leu:
"Sua esposa já está segura em casa. Explicarei tudo quando retomar a Atenas.
Péricles".
Peeta leu e releu as poucas palavras. Esposa ? Era óbvio que Péricles se referia a Katniss, usando alguma espécie de código.
Mas por quê ? E por que dizia que ela "já" estava em segurança ?
Examinando a parte de trás do pergaminho, conseguiu verificar a data no lacre rompido. Uma dúzia de possíveis explicações para a mensagem enigmática se atropelaram em sua mente; nenhuma fazia sentido e todas o deixavam preocupado.
Era evidente que aquela mensagem fora enviada com a finalidade de tranqüilizá-lo, no entanto causara efeito exatamente oposto. Um peso gelado comprimiu-lhe o peito e de súbito as horas que faltavam para o dia clarear e seu barco partir pareceram-lhe infinitas.
A sensação ruim transformou-se em verdadeiro medo quando a porta se abriu dando passagem para o exausto e apavorado Thresh, que entrou cambaleando.
- O que foi ? - perguntou o capitão, a voz urgente enrouquecida pela tensão - Por que veio à minha procura ?
- Foi a senhora Katniss - disse o marinheiro, confirmando os temores de Peeta - Quando Esparta atacou, a senhora foi levada pelo Conselho... eles determinaram que ela deve morrer.
Enquanto Peeta lutava para controlar a fúria, os olhos de Thresh apertaram-se, demonstrando sofrimento.
- Finnick, filho de Demian, mandou-me procurá-lo, capitão - era impressionante ver aquele homenzarrão com os olhos cheios de lágrimas - , porém creio que o encontrei tarde demais.
- Por que acha que é tarde demais ?
- O barco em que viajei atingiu um recife na primeira noite. Levei-o para a costa, roubei um cavalo e viajei dois dias até o porto amigo mais próximo - contou ele, e parou para respirar.
- E...?
- Prometi uma pilha de suas moedas a um mercador se me trouxesse até aqui em seu barco. Ele mandou seu capitão usar o chicote para fazer os escravos remarem mais depressa, no entanto temo que tenhamos levado tempo demais para chegar. Temo que já a tenham matado, capitão.
Um músculo se contraiu no rosto de Peeta:
- Quando você partiu de Atenas ? Que dia ?
- Não sei dizer - murmurou Thresh, balançando a cabeça, demonstrando confusão e cansaço - Oito, não, nove dias atrás.
- Tem certeza ? Pense, homem !
- Sim, nove dias atrás - confirmou o marinheiro, depois de pensar um pouco - Foi exatamente antes da festa de Ártemis dos Poços.
O alívio percorreu o corpo de Peeta como a água da primavera descendo as encostas, e sentiu que sua alma se descontraía e clareava.
- Recebi hoje uma mensagem de Péricles - apressou-se a dizer ao angustiado Thresh - Foi escrita depois que você deixou Atenas e enviada junto com as ordens da frota. Ele diz que ela está salva.
O imenso marinheiro emitiu um suspiro de alívio:
- Graças aos deuses !
Os dois homens seguraram os braços um do outro por um momento, depois separaram-se com olhares tímidos, como que embaraçados pela emoção que os dominava.
A barba suja de Thresh abriu-se para revelar um sorriso:
- E pensar que fiz meu traseiro ficar em carne viva naquele maldito barquinho por nada ! Eu juro, não entendo como comerciantes conseguem viajar a vida toda em barcos como aqueles.
- Vamos - disse Peeta, com um sorriso - Relaxe e aplaque sua sede com um pouco de vinho. Você tem menos de seis horas para se recobrar. Seguiremos para casa com o nascer do Sol.
Bons ventos e a energia de Thresh incentivando os remadores fizeram o Dorkas avançar numa velocidade que surpreendeu a todos, inclusive Peeta. Três dias depois de deixar Potidéia viram o Partenon altivo, dominando Atenas.
Depois de uma apressada cerimônia de atracação, Peeta deixou tudo a cargo do seu segundo em comando e seguiu com Thresh para a entrada da cidade.
Mas não puderam caminhar tão depressa quanto pretendiam e avançaram lentamente do porto até os portões da cidade.
Multidões de refugiados obstruíam o caminho, seus pertences empilhados ao redor de acampamentos improvisados, os animais e as crianças fazendo um barulho infernal que aumentava a confusão.
Cada centímetro de espaço aberto ao longo da grande passagem entre as Longas Muralhas estava ocupado. Montes de dejetos, dos animais e dos humanos, acrescentavam um odor característico e desagradável à lenta caminhada.
- Grande Zeus - murmurou Peeta - Por que o Conselho não organizou instalações e sanitários para esta gente ?
- Vieram muito mais refugiados do que esperávamos, capitão. Todos os templos e prédios públicos estão cheios de gente - explicou Thresh - Cada praça e campo de esportes está com uma porção de tendas armadas. Dizem que há gente dormindo até nos grandes potes de argila onde estocamos grãos e óleo de oliva, junto da ágora.
O grandalhão contornou uma pilha de lixo e acompanhou o passo de Peeta, que andava o mais depressa que podia.
Por fim passaram pelos portões da cidade e começaram a subir a colina que levava ao Partenon, enquanto o coração dele acelerava-se a cada passo.
- Não vai ver Péricles ? - perguntou Thresh, já que era sempre o que o capitão fazia ao chegar.
- Não, vou ver minha família primeiro. E a senhora Katniss.
Era estranho, pensou Peeta com um sorriso tenso. Todas as semanas em que a mantivera detida, durante o tempo que a provocara e depois, quando haviam passado a compartilhar os prazeres da carne, pensava nela como Tétis ou sua pequena nereida. Fora só depois de partir de Atenas, deixando-a em sua casa, que passara a pensar nela como Katniss. Foi a mulher que o atormentara em pensamentos naqueles longos dias no mar, não a nereida. Era Katniss que ansiava ver novamente, abraçar e proteger.
E foi Katniss que seus olhos procuraram assim que cruzou o portal de casa. Não a viu, nem ninguém mais chegado, entre aquela gente toda que enchia o pátio.
Uma voz aguda elevou-se de um grupinho:
- Capitão !
Peeta cumprimentou a mulher idosa cujo marido cuidara de uma de suas plantações de oliva havia alguns anos. Apesar do marido dela ter morrido há tempos, ele tomara providências para que a senhora, que não tivera filhos, tivesse abrigo e bom tratamento.
- Sinto-me abençoada por ser a primeira a recebê-lo em casa - soluçou ela; aproximou-se desmanchando-se em lágrimas, pegou-lhe uma das mãos e cobriu-a de beijos.
- Agradeço muito, avó...
Ele usava o modo carinhoso com que a chamava há anos e tentou, sem sucesso, libertar a mão que ela segurava.
- Disseram que o senhor deveria chegar hoje - continuou a velha, trêmula - A senhora nos contou que a mulher de Ítaca, de rosto pintado, que aquece a cama de Péricles, deu a notícia.
- Sim ? Oh... ótimo ela ter ficado sabendo... - atrapalhou-se ele, ainda lutando para libertar a mão - Bem, quero ir vê-la agora.
A velha assentiu, sem soltá-lo, e informou:
- Ela está ali. Sob a árvore.
Peeta voltou-se, esperando ver a mãe, porém deparou com Katniss sentada num banco de pedra, no outro extremo do pátio, que era o único ponto ainda iluminado pelo Sol. Ela encontrava-se banhada em suave luz malva-dourada, imóvel e bela como uma estátua feita por um mestre escultor. A túnica verde-pálido, presa nos ombros por pinos prateados, descia em linhas suaves insinuando as linhas do corpo. O cabelo escuro estava preso no alto da cabeça e era mantido no lugar por um diadema de prata. E seus olhos, oh, pelos deuses, seus olhos ! Ele achou que poderia se afogar naqueles olhos tão profundos.
Começou a ir na direção dela, mas foi detido pela velha:
- Espere ! Espere ! - pediu ela, aflita - A senhora Cassandra precisa ver também !
Achando que a velha agia de modo tão estranho e enigmático quanto a mensagem de Péricles, Peeta soltou-se, impaciente, e seguiu adiante. Nesse momento sua mãe saiu da cozinha e em vez de ir recebê-lo e abraçá-lo, como sempre, imobilizou-se, os olhos fixos nele e levou as mãos aos lábios, como se tencionasse conter um grito.
O que, por Hades, estava acontecendo ali ?, perguntou-se ele diante do jeito contido da mãe. Voltou-se novamente para Katniss e só então notou a pequena figura ao lado dela.
- Papai ! Olhe para mim, papai !
Valerie afastou-se de Katniss, que retirou as mãos que a amparavam, e ficou em pé, de forma um tanto instável. Peeta sentiu o medo apertar-lhe o estômago ao ver os bracinhos dela movendo-se no ar, para manter o equilíbrio. Moveu-se num impulso de correr até a filha, mas foi detido pelo olhar de advertência de Katniss.
- Veja, papai ! - gritou Valerie, entusiasmada - Eu consigo !
Com Katniss caminhando atrás dela, bem perto, a criança deu três pequenos passos. Passos desconjuntados, inseguros; abaixava um ombro e tinha de torcer o quadril para puxar a perna esquerda, mas eram passos, os primeiros passos que via sua filhinha dar.
Nesse momento a perna doente falhou e Katniss segurou-a por baixo dos braços, antes que Valerie caísse no chão.
- Você viu, papai ? - perguntou a garotinha, ansiosa - Você viu ?
Peeta ficou parado, imóvel e incapaz de pensar. Acima dos murmúrios dos refugiados, percebia os soluços de sua mãe. Engoliu em seco uma vez, depois de novo, até que conseguiu falar, com a voz embargada:
- Sim, camarão. Eu vi.
O sorriso triunfante de Valerie fez com que recuperasse o controle dos movimentos. Em poucas passadas percorreu a distância que o separava delas, o coração pulsando com uma emoção que não conseguiria definir, nem expressar. A filha gritou de prazer quando Peeta a ergueu nos braços, bem alto, e girou com ela, a túnica cor-de-rosa predileta panejando e os olhos cintilando de emoção. Quando apertou-a ao peito, ela passou os braços por seu pescoço e lhe deu um beijo molhado. Ele sentiu um impulso ardente de apertá-la entre os braços, com toda a força, mas contentou-se em mergulhar o rosto nos cachos macios, vibrando ao escutar a risada deliciada da menina.
- Katniss disse que vou melhorar ainda mais, papai ! - contou, cheia de alegria.
Por cima da cabeça da filha, Peeta encontrou o olhar firme de Katniss.
- E Katniss disse que tenho de praticar todo dia ! - passava a mãozinha no rosto do pai, procurando chamar-lhe a atenção - Olha, Katniss disse também que...
O choro da senhora Cassandra tornou-se diferente, mais parecido com uma risada, enquanto corria para o filho.
- Oh, pare com isso, Valerie ! - pediu à netinha - Chega de tantos "Katniss disse". Vamos, venha para o meu colo enquanto papai cumprimenta a... enquanto papai cumprimenta a senhora dele.
Apesar de ainda molhados e avermelhados pelo pranto, os olhos da mãe enviavam-lhe, aflitos, uma mensagem. Peeta entregou-lhe Valerie e voltou-se para Katniss. Um murmúrio de expectativa ergueu-se das pessoas que os rodeavam, atentas.
Com expressão tão séria e solene quanto a dela, Peeta pegou a mão de Katniss.
- Agradeço aos deuses por encontrá-la bem, minha senhora. E lhe agradeço, do fundo do coração, pelo presente que deu a mim e a Valerie.
Ela passou a língua pelos lábios, nervosa, mas falou com voz firme:
- É muito bem-vindo, meu senhor.
O silêncio ergueu-se entre eles e ela procurou desesperadamente algo para falar, mas o que poderia dizer ao homem que deixara uma amante e ao voltar encontrava uma esposa ? O que ele estaria pensando por trás da expressão séria e solene ? Não conhecia aquele Peeta quieto e intenso. O Peeta de seus sonhos tinha um sorriso alegre, zombeteiro, que costumava despertar sua raiva e sempre a encantava; tinha um olhar denso de paixão, no entanto travesso e brincalhão como o de um menino. Nunca percebera nele essa fria e distante... reserva. Será que era assim que pretendia tratá-la, agora que se via ligado a ela por uma união indesejada que só podia desprezar ? Ia ter em relação a ela, sempre, essa atitude cheia de respeito e terrivelmente gelada ?
Bem, ele não precisaria forçar-se a agir dessa maneira para colocá-la em seu lugar, pensou Katniss, com um brilho iluminando-lhe os olhos cinza e erguendo o queixo. Ia decidir a questão, de uma vez por todas e imediatamente.
- Precisamos conversar em particular, meu senhor - disse ela, com a franqueza de sempre.
- Também acho - assentiu ele, com a testa franzida.
Segurou-a por um braço a fim de levá-la para o quarto e os curiosos abriram passagem, com o desapontamento evidente em cada rosto. Era óbvio que esperavam um espetáculo mais completo, pensou Katniss. Como o que o capitão dera ao partir, acrescentou, com amargura. Pensavam que ele a tomaria nos braços e a beijaria com a mesma intensidade com que o fizera no dia da partida. Bem, todos se haviam enganado, concluiu, tentando ignorar a dor e o desapontamento que essa conclusão lhe causava. Entrou no quarto à frente dele e esperou enquanto Peeta fechava a porta, as mãos doendo, tal a força com que cerrara os punhos.
Quando ele se voltou para encará-la, Katniss viu-o como um homem estranhamente desconhecido na penumbra do quarto sem janelas. Ele não se aproximou e Katniss tratou de erguer os ombros, ignorando a pressão dolorosa que lhe apertava o peito. Como num turbilhão, passavam-lhe pela mente os milhares de modos que imaginara para aquele reencontro. Agora lhe pareciam exagerados e irônicos, como parte de uma tragicomédia. Ecoavam em sua mente todas as orações que fizera para os deuses e deusas, os pedidos de que ele a perdoasse por tê-lo colocado nessa situação impossível.
Enxugando na túnica o suor frio que lhe umedecia as palmas das mãos, ela respirou fundo e disse:
- Não precisa temer. Eu não vou mantê-lo preso a este casamento.
Ele cruzou os braços:
- Não vai ?
- Não. Sei que ele não aconteceu por sua escolha. Mas eu também não o escolhi - ela acrescentou, demonstrando que ainda tinha coragem e orgulho - Nenhum de nós, na verdade. Aconteceu, mas pode ser desfeito.
- Pode, mesmo ?
Peeta não parecia disposto a facilitar as coisas para ela. Muito bem, não precisava de ajuda para ir até o fim.
- Sim, pode. Eu não estou grávida.
- Não está ?
Katniss sentiu que seus dentes rangiam, de tanto que os apertou. Que as sombras levassem a alma negra dele ! Peeta a odiava.
- Não, não estou. Meu período veio na semana passada. Pode me colocar de lado com a consciência limpa. Também não fui fértil em meu primeiro casamento, por isso ninguém irá criticá-lo por agir assim. Não que fossem fazê-lo, de qualquer modo.
- Não o fariam ?
O espírito combativo de Katniss, empurrado pela dor da rejeição, acabou por explodir em chamas pelo modo deliberadamente desagradável dele.
- Não, maldito seja ! Pare de se divertir desse jeito comigo ! - desabafou, a voz subindo até se tornar um grito furioso - Você sabe muito bem que ninguém iria condená-lo por se desfazer de uma mulher espartana ! A sobrinha do homem que está sitiando a cidade ! A mulher que lhe daria filhos que não poderiam ter o seu nome ! Não que eu queira criar os filhos de um idiota, de um imbecil, de um... - ela engasgou, procurando uma ofensa mais adequada para o momento. Achou-a: - De um poeta !
Peeta descruzou os braços e caminhou lentamente para ela, com um sorriso indefinível começando a desenhar-se em seus lábios.
- Ah, docinho, agora eu sei que estou mesmo em casa !
- Não ria ! Não ouse rir de mim ! Não se divirta às minhas custas... não agora ! E não toque em mim !
Fustigada pela dor e pela fúria, Katniss bateu nas mãos que ele lhe estendia e tentou escapar. Mas ele segurou-a pelos pulsos e levou-lhe os braços para as costas, imobilizando-a e puxando-a com força para si.
- Seu completo idiota ! - berrou ela, desesperada - Não pense que pode...
Batidas fortes na porta fizeram-na calar-se, vermelha e com os olhos chispando.
- Peeta ! O que está acontecendo ?
Os olhos dele não deixaram os dela nem por uma fração de segundo.
- Nada que seja do seu interesse, mãe.
- Estamos ouvindo os gritos de Katniss claramente, na casa inteira, no pátio e...
- Vá embora, mãe.
Katniss respirava fundo, tentando acalmar o coração e, de repente, percebeu que estava cometendo um grande erro. A cada inspiração, seus seios roçavam a sólida parede que era o peito dele. Através dos tecidos que se interpunham entre suas peles, o calor do corpo de Peeta passava para o dela com a violência de um raio lançado com todo o poder do braço de Zeus.
O pânico deu lugar à fúria e Katniss rezou para que ele não notasse como seus mamilos traidores enrijeciam, reagindo ao contato. Ficaria ainda mais humilhada se ele descobrisse como o desejava, quando não queria mais saber dela. Afinal, não poderia manter-se assim, frio, se a quisesse... nesse momento caiu em si e perdeu o rumo dos pensamentos ao sentir o membro ereto encostado em seu ventre.
Surpresa, ela ergueu o rosto para ele.
- Peeta - murmurou, quase sem voz - O que... o que vai fazer ?
A risada que ela adorava ainda não se fazia ouvir, mas já cintilava nos olhos dele.
- Vou levá-la para a cama, docinho. Posso ter perdido o nosso casamento, porém que as sombras eternas me consumam se eu perder a parte da cama !
- Mas...
Os lábios dele a impediram de prosseguir e tornaram-se tudo em que ela conseguiu pensar dali por diante. Quentes, firmes, doces. Tocavam-lhe a boca, cobriam-na, apossavam-se dela. As mãos fortes apertaram-lhe os pulsos, ainda mantidos às costas, e ele puxou-a para si, até que seus corpos colaram-se um ao outro. Katniss perdeu-se no sabor, no desejo, no cheiro enlouquecedor dele. Pela primeira vez na vida, perdeu completamente as forças. Seus joelhos amoleceram e só não desabou no chão porque os braços firmes a sustentaram.
- E depois... - sussurrou ele, bem junto de seu ouvido - Depois de fazermos o que maridos e esposas fazem em suas câmaras nupciais, você vai me dizer como foi que nos casamos. E eu lhe direi como nós não vamos nos divorciar.
P. S.: Nos vemos no Capítulo 15.
