Aquela seria a minha última sequência.
O último ato de todo o meu plano.
Levantei a lapela do casaco, a fim de me proteger do frio. Com esse ato, acabei por levantar um pouco as alças da pequena sacola que segurava entre os dedos. O outono havia entrado com tudo neste ano, a julgar pelos ventos fortes que eram capazes de cortar o próprio ar. Havia poucas pessoas circulando pelas ruas naquele horário, mas não me importava com a solidão momentânea. Logo eu estaria onde precisava estar. Alguns casais passavam por mim, rindo ou trocando confidencias. Outras vezes crianças passavam de mãos dadas com seus pais apontando para as vitrines, com seus brilhantes olhinhos que já pediam por presentes. Eu não pude evitar um sorriso, pois uma vez já havia tomado as mesmas atitudes dessas mesmas crianças.
Elevei um pouco o antebraço para que pudesse verificar as horas no visor do relógio digital. 20:45. Torcia para que não o encontrasse estudando até àquelas horas. Por mais que minha visita fosse rápida, eu ainda precisava de um certo tempo. Alguns minutos seriam mais do que suficientes. Se tudo sair como planejado. Havia gastado umas boas horas da minha tarde na cozinha preparando aqueles biscoitos e, a julgar pela aparência, estavam com uma "carinha" boa. Coloquei todo o meu carinho em cada etapa da receita e me sentia satisfeita com o resultado. Só que antes dos biscoitos, o mais importante era o que havia junto com os biscoitos. Uma resposta poderia acabar ou não com as minhas esperanças.
Assim que cheguei à casa de Shaoran, bati a campainha. Após alguns minutos – que perduraram como a eternidade – a porta se abriu, revelando um rapaz de minha idade. Os olhos de cor âmbar esquadrilharam minha face em busca de respostas, mas logo se detiveram na pequena sacola que carregava. Meus olhos verdes esmeraldas aproveitavam aqueles instantes para poder admirá-lo novamente em segredo. Quando Shaoran voltou os olhos para os meus, não pude evitar sentir um calor tomar minhas bochechas. Tentei sorrir, meio que sem jeito, e estendi a sacola em sua direção. Imaginando que ele estaria tão sem graça quanto eu, o vi pegar as alças da sacola. As peles dos nossos dedos se encontraram brevemente e, mesmo sem querer, senti borboletas no estômago.
-Muito obrigada, Sakura. - Agradeceu Shaoran levando a mão livre até meu cabelo, afagando-o. - Por que não entra e tomamos algo, como um chocolate quente?
-Adoraria. Está bem frio aqui fora.
Aceitei o convite feito por meu amigo que me deu espaço para entrar em sua casa. Após me ajudar a retirar o casaco e colocá-lo no cabideiro no canto do hall de entrada, o acompanhei até a sala de estar. Observei Shaoran deixar a sacola sob a mesa de mogno que ficava entre dois sofás de três lugares, assim como, que a lareira estava acessa, ajudando a manter o interior do cômodo em uma temperatura agradável. Enquanto Shaoran havia ido até a cozinha preparar nossos chocolates quentes, me sentei no tapete próxima do fogo, estendendo a palma das mãos. O calor das chamas aquecia aos poucos meu corpo que se permitiu relaxar. Por um instante, presumi que Meiling não estava em casa, considerando o silêncio. Caso estivesse presente, eu não tinha dúvidas de que ela viria atender a porta junto com Shaoran. E, claro, não perderia a chance de tomá-lo todo para si.
Eu podia ser tudo, mas não era idiota. Eu sempre soube da paixão de Meiling pelo moreno, uma vez que a própria não fazia o menor esforço de esconder tal fato. Sempre que tinha a oportunidade, Meiling tentava abraçá-lo ou beijá-lo, usando como justificativa o amor que dizia carregar em seu peito. Meu sangue fervia com tais atitudes de Meiling, mas havia algo que eu não poderia negar. Ela ao menos estava tentando conquistá-lo. Já no que se refere a mim... Sou muito tímida para demonstrar meus reais sentimentos. O que eu mais desejava era poder ser desinibida quanto Meiling e dar a Shaoran todo o amor que guardei apenas para ele. Perdida em meu próprio mundo, não escutei os passos de Shaoran vindo da cozinha para a sala de estar.
Assustei-me quando o vi estender uma caneca de chocolate quente fumegante em minha direção. Coloquei uma mecha do meu cabelo na altura do pescoço atrás da orelha esquerda, pegando-a da mão de Shaoran pela alça. Levei o objeto até perto dos lábios e assoprei algumas vezes antes de conseguir tomar ao menos um gole. O vi se sentar a minha frente na posição de índio, deixando a sua caneca próxima dos pés que estavam protegidos do frio por uma meia de lã grossa. Em seguida, retirou da sacola uma pequena embalagem plástica transparente que foi preenchida com biscoitos caseiros e por fim amarradas com uma fita cor-de-rosa. Para deixar as pontas enroladas como cachos, utilizei a parte de dentro da minha tesoura escolar. Junto dos biscoitos, havia um pedaço de papel.
Shaoran abriu a embalagem e seus dedos finos pegaram o pedaço de papel. Quase que por impulso, retirei aquilo de sua mão como se fosse um objeto que pudesse machucá-lo. Precisei me manter firme ao chão, sabendo qual seria seu próximo passo. É agora. Antes de ler o que havia escrito, Shaoran me pediu permissão com seu olhar. Engolindo em seco, assenti. A mensagem "Eu te amo. E você?" não parecia ser tão simples quanto parecia. Um misto de sentimentos me atingiu em questão de segundos. Uma vontade de ficar e saber sua resposta e, ao mesmo tempo, uma vontade de sair correndo dali. Tomando cuidado para não derramar o chocolate quente, me levantei e abandonei a caneca na mesa de mogno. Meu estômago dava voltas e mais voltas, de forma que continuar tomando algo doce não iria me ajudar. Quando me virei para encarar Shaoran, ele já estava em pé, o pedaço de papel totalmente aberto em sua mão.
-Fique aqui, Sakura. Eu já volto.
-Mas, Shaoran... - Gaguejei procurando indício de resposta em sua face ou em seu olhar. Contudo, ali continuava Shaoran, suas emoções tão bem guardadas em si mesmo.
-Confie em mim.
Dizendo isso, o vi sair da sala de estar.
~*~*~
Aqueles minutos de espera me torturavam. Caminhei até a janela e abracei a mim mesma, a cabeça tombada para o lado, observando o gramado da família de Shaoran. Minha mente trabalhava freneticamente, as várias opções de resposta vindo como uma roleta-russa. Quando me virei nos calcanhares decidida a ir embora, Shaoran reapareceu no cômodo. O observei de cima a baixo, com o coração batendo tão forte como um tambor. Entre seus dedos, estava o fatídico bilhete encontrado no meio dos biscoitos. Respirei fundo e comecei a caminhar na direção de Shaoran, pronta para sair dali. Quando me desviei para passar ao seu lado, ombro com ombro, o moreno segurou meu braço. Meus olhos verdes esmeraldas se dilataram e me detive em seus dedos que me impediam de partir.
-Você ainda não teve a sua reposta.
-Não sei se quero saber a resposta. - Sussurrei para o vento, sentindo a pressão daqueles instantes em meu corpo.
-Pois eu irei dizê-la. A resposta é sim.
Soltei-me de Shaoran, subitamente raivosa. Parei a sua frente, apenas a distância dos nossos pés nos separando. Eu torcia para que aquilo não fosse uma brincadeira de mau gosto. É verdade em que todos aqueles anos de convivência e amizade, Shaoran jamais mentiu para mim. Ainda me lembro da primeira vez que coloquei meus olhos nele, que havia sido transferido da Inglaterra para a nossa escola e acabou por se tornar nosso colega. A princípio Shaoran se manteve fechado para qualquer um. Era como se gostasse que as pessoas tivessem medo dele. Contudo, eu iria confrontá-lo. Todos em nossa turma se davam bem e tentavam ser gentis com o "novato", de forma que Shaoran não tinha motivos para nos repelir. Quando consegui fazer que falasse ao menos "oi", senti como a batalha havia sido ganha. Contudo, ainda havia guerra.
Os próximos passos foram convidá-lo para almoçar com meu grupo e fazer com que Shaoran interagisse com os demais. Não vou dizer que foi fácil, pois Shaoran sabia ser desagradável e irônico quando queria. Só que eu não poderia desistir. Vê-lo sozinho me angustiava, como se uma aura de tristeza o cercasse. Eu não planejava me apaixonar, mas é como dizem, nós não estamos no controle de nada. Mesmo sem saber a razão, eu sentia sua falta nos momentos em que estava ausente. Passei a me perder nos seus poucos sorrisos, que, quando surgiam, revelavam adoráveis covinhas. Passei a querer ser observada como aquela que poderia secar suas lágrimas ou abraçá-lo quando a escuridão tomasse conta dos seus dias. Queria ser o seu descanso para aqueles dias em que tudo desse errado. Eu queria ser seu tudo.
-Está falando mesmo sério? - Perguntei me sentindo frágil e indefesa.
-Como nunca falei antes. - Disse Shaoran levando a mão até minha bochecha, acariciando o local com o polegar. - Eu também amo você.
Sorri e esfreguei levemente a pele na sua. A mão que anteriormente estava em minha bochecha, desceu para a minha cintura, me trazendo gentilmente até si. Houve um pequeno choque entre nossos corpos e eu suspirei. Neste momento olhamos um para o outro, deixando o silêncio preencher aqueles instantes. Se isso for um sonho, eu não quero acordar. Palavras agora não eram mais necessárias entre nós dois. Tudo de que precisávamos estava bem ali. A outra mão livre de Shaoran tomou minha nuca, forçando-a para frente. Um novo momento de tensão. Uma corrente elétrica tomava conta dos meus ossos e, em câmera lenta, vi seus lábios entreabertos se aproximarem dos meus, em um encaixe perfeito. Permiti que meu corpo relaxasse nos braços de Shaoran, sabendo que ali era o meu lugar. E sempre seria.
