Capítulo 1

"I can't believe the things that happen to me

I guess that I should have seen a long, long time ago1"

All the Love in the World, The Outfield

Desde o início, a ideia de Saori, a dona do orfanato, para restaurar e ampliar o orfanato, parecera maravilhosa a Mino. Como atual funcionária e ex-moradora do local, a ideia de ampliá-lo para que mais crianças pudessem usufruir de um lar, mesmo que temporário, parecia um sonho que se tornava realidade; pois era exatamente o que a jovem faria caso tivesse recursos para tal.

O único problema nisso tudo era que Saori a designara para cuidar de toda a burocracia dessa reforma, e Mino detestava esse tipo de trabalho.

— Vamos lá, Mino, você sabe que sem a sua ajuda esse projeto não será a mesma coisa — insistiu Saori agora que ambas tinham a chance de conversar a sós em seu escritório.

— Fico feliz em saber que acredita na minha capacidade, Saori, mas...

— Bem, você não seria a coordenadora do orfanato se eu não acreditasse, não é? — brincou sua chefe e Mino assentiu, sentindo-se um pouco constrangida.

— Eu sei. É claro que sei disso — a jovem prosseguiu já um pouco cansada de argumentar naquela discussão —, mas daí a me colocar a cargo das questões sobre a obra do orfanato e lidar com arquitetos para aprovar plantas e outros detalhes, pode ser um pouco demais. Eu não entendo nada de construções, só sei lidar com as crianças.

Mino se sentia um pouco angustiada, afinal, sua chefe parecia acreditar que ela era capaz de realizar coisas muito além de suas capacidades; e, provavelmente, acabaria se decepcionando.

— É exatamente por isso que eu sei que você é a melhor pessoa para cuidar disso — explicou Saori. — Você ama essas crianças como se fossem suas. Quem melhor do que você para tomar decisões sobre um lugar que é totalmente voltado para o bem-estar delas?

A jovem não tinha uma resposta para isso. Ela realmente se importava muito com aquelas crianças e faria de tudo por elas.

— Além disso, Ikki, o arquiteto que contratei, já está ciente de que você não é uma profissional nessa área. A maioria das pessoas não é, na verdade. Portanto, ele vai te explicar as coisas e dar os direcionamentos que forem necessários — a dona do orfanato prosseguiu antes que ela pudesse argumentar novamente. — Você só precisa contar suas ideias a ele, e Ikki vai reuni-las de uma maneira plausível em seus desenhos.

'Quando as obras começarem de fato, é ele quem irá lidar com o mestre de obras e pedreiros. Ou seja, não há com o que se preocupar, além de fazer o melhor possível pelas crianças. O que me diz?

Mino sacudiu a cabeça e suspirou resignada.

— Nem sei por que ainda tento discutir com você — resmungou, mas sem conter um sorriso. — Você sabe que isso é chantagem emocional, não sabe? — questionou encarando sua chefe que soltou uma gargalhada divertida.

— Talvez — afirmou Saori sorrindo também. — Isso significa que você está dentro?

— É, eu estou dentro — Mino concordou já imaginando a alegria e empolgação das crianças quando as obras começassem.

— Ótimo — Saori respondeu animada. — Vou te passar o contato do arquiteto, assim vocês podem combinar um dia para se reunirem e começarem a decidir as coisas. Tenho certeza de que vocês se darão muito bem.


A conversa com Saori durou mais alguns minutos, porém, logo Mino se despediu e foi para casa. Por mais que amasse seu trabalho, sentia-se esgotada depois daquele dia cansativo e tudo em que pensava era dormir.

Após se acomodar em sua cama, depois de um banho e um bom jantar, a jovem começou a verificar as mensagens em seu celular e, antes que caísse no sono, achou melhor enviar uma mensagem ao arquiteto; pois acabaria esquecendo de fazê-lo no meio do corre-corre que eram seus dias.

Mino:

Boa noite, desculpe entrar em contato a essa hora.

Meu nome é Mino e trabalho para Saori.

Ela me passou seu contato para que possamos conversar sobre as obras do orfanato.

Como já passava das onze da noite, Mino acreditava que só receberia uma resposta no dia seguinte, mas, aparentemente, estava enganada.

Ikki:

Boa noite, Mino. Tudo bem?

Fico feliz com essa notícia.

Desde que Saori falou comigo sobre a ideia dessa obra,

estou ansioso pra começar.

Essa resposta a surpreendeu. Pelo pouco que pesquisara sobre ele na internet, Ikki Amamiya estava acostumado a trabalhar nos projetos de edifícios e construções amplamente conhecidas. Por que estaria interessado em um simples orfanato?

Mino:

Sério? Eu pensei que arquitetos preferissem trabalhos mais grandiosos.

Ainda mais alguém que teve a oportunidade de trabalhar no projeto do Audi Forum2.

Ikki:

Pelo visto, estou em desvantagem.

Alguém andou pesquisando meu nome na internet rs

Mino corou ao ler essas palavras. Sentia-se uma stalker naquele momento.

Ikki:

Mas respondendo à sua pergunta, é realmente sério.

Eu quero muito trabalhar no projeto de restauração e ampliação do orfanato.

Pode não parecer à primeira vista, mas aquele prédio tem mais de 300 anos e,

Isso por si só, já o tornaria grandioso, mas o projeto arquitetônico dele é magnífico.

Isso sem mencionar toda a história que aquelas paredes guardam.

Trabalhar em algo assim é realmente um privilégio.

Ao ler aquelas mensagens, a jovem ficou cada vez mais surpresa com o homem com quem falava. A cada palavra que ele escrevia, Mino percebia que aquele não era um homem que estava simplesmente interessado em enriquecer ou em crescer em sua profissão. Havia paixão em suas palavras. Claramente, arquitetura era algo que Ikki amava; e isso era muito incomum nos dias de hoje. Era algo que deveria ser valorizado, sem dúvidas.

Mino:

Nossa! Eu não fazia ideia de que o prédio do orfanato

era algo tão importante em termos arquitetônicos.

Ikki:

O quê? Precisamos remediar isso!

Mino riu. Ikki quase soava como uma criança falando de seu brinquedo favorito; e, talvez, de certa forma, fosse isso mesmo.

Mino:

Você pode me explicar tudo quando nos reunirmos para falar sobre as obras,

Porque algo me diz que, se continuarmos a falar sobre isso agora,

Não vamos dormir essa noite rs

Ikki:

Tem razão kkkk

Como já deu pra notar,

Esse é o tipo de assunto que me deixa animado

E eu ia ficar falando por horas e horas, te entediando.

Mino:

Não é isso. Juro.

Na verdade, nunca achei arquitetura tão interessante quanto agora,

Mas realmente preciso dormir, pois acordo bem cedo.

Ikki:

Sério mesmo?

Porque a maioria dos meus amigos me mandam calar a boca

em poucos segundos de conversa quando começo a falar sobre o meu trabalho.

Mino:

É sério.

Inclusive acho que nossa reunião pode ser no orfanato,

Assim você pode me explicar tudo mostrando os detalhes

Que eu nunca ia perceber sozinha.

Ikki:

Essa ideia de um tour pelo orfanato é perfeita!

Quando podemos fazer isso?

No fim de semana preciso fazer uma viagem de negócios,

Mas amanhã e quinta estou disponível.

A jovem não esperava que Ikki se oferecesse para aquele tour tão prontamente, contudo, aparentemente estava subestimando a paixão que ele sentia por seu trabalho.

Mino:

Pode ser na quinta, então.

Se quiser, pode almoçar comigo e as crianças no orfanato e,

Enquanto elas estiverem nas aulas da tarde, fazemos o tour

E já começamos a analisar as mudanças que devem ser feitas.

Ikki:

Está combinado.

Nos vemos em breve, então.

Mino:

Certo. Boa noite, Ikki.

Ikki:

Boa noite, Mino.

Mesmo após sair do aplicativo de mensagens e bloquear seu celular, Mino continuou fitando o objeto. Não se lembrava da última vez em que tivera uma conversa tão espontânea com alguém; ou que tivera a estranha sensação que a percorria naquele momento. Uma sensação que só poderia descrever como euforia.

Evidentemente, não era sempre que tinha essa sensação ao conversar com um estranho; e não podia dizer que ficava satisfeita com isso, tendo em vista que não sabia quase nada sobre Ikki. Realmente era ridículo sentir vontade de passar a noite inteira conversando com um desconhecido, mas a sensação ainda estava lá, por mais ridícula que fosse. E permaneceu até que ela pegasse no sono.


1 "Eu não posso acreditar nas coisas que acontecem comigo,

Acho que eu devia ter percebido há muito, muito tempo.". Tradução Livre.

2 Criado pelo escritório Creative Designers Internacional (CDI) em 2006, a sede da Audi no Japão é um edifício de 5.173 m², rico em formas geométricas e carregado de cortes. Por seu formato inusitado, o projeto foi batizado de The Iceberg – O Iceberg, em português.