Algo havia mudado em Red depois que aquele Pikachu havia aparecido. Leaf deveria estar feliz, ela supunha. Red parecia sempre tão preso no próprio mundo que era como se a realidade não existisse para ele, o que a preocupava. Estava tudo bem enquanto eles eram crianças, mas depois que crescesse, como Red iria sobreviver sendo associal daquela forma?

Com Pikachu perto dele, Red se soltava mais. Nos três anos que Leaf havia vivido com aquele garoto, ela nunca o havia visto tão feliz quanto como ele ficava perto de Pikachu.

Então, considerando tudo isso, Leaf deveria estar feliz. Talvez até mesmo grata. No entanto, tudo que ela sentia era o ardente desprazer daquela criaturinha estar compartilhando o mesmo espaço que Leaf.

Pokémon eram animais. Criaturas violentas que agiam por puro instinto. Por isso, nenhum Pokémon era digno de confiança – eles eram úteis, mas era isso. Os pais de Leaf haviam considerado Pokémon parte da família e haviam pago caro por isso. Pokémon eram ferramentas que ajudavam nas atividades humanas, fora isso, era pura projeção de sentimentos humanos em criaturas sem coração.

Por isso, Leaf não podia aceitar que era um Pikachu que estava trazendo Red para fora de sua concha. Era inaceitável e desesperador que Red estivesse caindo na armadilha dos olhos grandes e bochechas gordinhas – Pikachu iria ser a morte de Red, como aquele Pokémon havia sido a morte dos pais de Leaf. Ela não podia permitir isso. Aquele rato amarelo estava sonhando se achava que Leaf permitiria que Red se machucasse.

– Sabe, você tá fazendo uma cara bem assustadora. – Blue sorriu de lado, cutucando a bochecha de Leaf. – Parece até que está armando um assassinato.

– Estou planejando.

– Hmm? Planejando o quê?

Guerra.

Eles haviam sido liberados do laboratório – já que Pallet não tinha um hospital – pouco mais de três semanas depois do ataque. Red havia explicado o ocorrido para o Professor Carvalho, que depois de considerar por um tempo, decidiu permitir que o Pikachu vivesse com Red e sua família. Se todos estivessem de acordo, é claro.

Todos os dias Leaf se perguntava como aquele velho pesquisador se considerava um adulto responsável. Red tinha 9 anos e quase morreu por culpa daquele rato amarelo. Como ele ousava pensar que permitir que Red ficasse com o rato era razoável? Pior ainda, como ele ousava deixar a responsabilidade de dizer não para a pobre Dahlia? Red iria se ressentir disso para sempre. O mínimo que um adulto responsável poderia fazer era levar a culpa de dizer não, considerando o quanto isso facilitaria para a família.

– Eu não vejo porquê não. – Dahlia disse, com um belo sorriso. – O Red está tão feliz desde que o Pikachu apareceu! Ontem, ele não parava de falar sobre o Pikachu! Achei que iria derreter de tanto chorar de felicidade!

A dor da traição esfaqueou o coração de Leaf, que sentiu todo o corpo gelar. Leaf aspirou, trêmula. Tudo bem, talvez Dahlia tenha se deixado levar pelos sentimentos. O Pikachu parecia estar fazendo bem para o Red agora, mas Leaf sabia a verdade. O diabinho era uma bomba relógio que iria estourar no rosto de Red se ela não fizesse nada. Ela tinha que dar um fim nessa loucura.

– Está tudo bem para você se o Red ficar com o Pikachu, Leaf? – O professor colocou a mão no ombro de Leaf, seguro e paternal. – Está tudo bem se você não deixar. O Pikachu ainda pode ficar no laboratório e o Red pode visitar sempre que quiser.

Expirando aliviada, Leaf assentiu para si mesma. É claro, mesmo que ela negasse, o Pikachu ainda ficaria perto de Red, mas pelo menos não estaria na mesma casa que ela. Embora não fosse o ideal, Leaf deveria ter confiado mais no Professor Carvalho. É claro que ele não iria jogar a culpa de ter que jogar o Pikachu fora nela, então se ela negasse, o Pikachu só teria que ficar no laboratório ao invés de na casa deles. Simples, fácil.

Leaf cometeu o erro de olhar na direção de Red. O menino estava com o Pikachu em sua cama, olhando para ela implorando. Nunca, na vida de Leaf, ela havia visto tanta emoção nos olhos de Red. Eles sempre pareciam obscurecidos, prendendo Red dentro de si mesmo.

– Ele pode ficar. – Leaf falou, antes que pudesse se impedir.

O sorriso de Red era brilhante, mostrando todos os dentes. O Pikachu parecia feliz também, apesar de sua postura parecer mais predatória que exuberante para Leaf. Deixando os ombros caírem, Leaf só pode sentir culpa.

Ela perdeu a primeira batalha.

– Ele não pode dormir aqui. – Leaf deu um pisão no chão do quarto deles, fazendo um estrondo que ressoou pela casa inteira.

– … Ele não gosta de ficar sozinho. – Red a encarou, com grandes olhos vermelhos e beicinho.

O Pikachu parecia afrontado e estapeou a cabeça de Red com sua cauda. Leaf estava indignada, como aquele bichinho ousava?

– E você, se você bater nele de novo– Ela começou a ameaça, mais rosnando que falando. O Pikachu virou para ela, com uma expressão de desprezo, e deixou a eletricidade vazar preguiçosamente de suas bochechas.

Leaf congelou bem onde ela estava.

– Mas acho que ele pode dormir na poltrona do papai. – Red concedeu, agarrando Pikachu pelo torso. – Leaf, escuta…

Leaf saiu do quarto, seu peito quase dormente com a velocidade que seu coração estava batendo.

Foi sua segunda derrota.

O sinal para o recreio soou pela escola – uma moça batia um par de sinos que ficava na porta do armazém, basicamente – e as crianças saíram correndo para fora da sala, para almoçar e brincar. Leaf ficou para trás, apesar de suas amigas a terem convidado para almoçar debaixo da sombra de uma árvore, que no verão era o lugar favorito de Leaf para almoçar.

Na sala, Red ficou para trás também, como sempre. Red não tinha amigos além de Blue, então almoçava sozinho quando Blue não ficava com ele. O que estava acontecendo agora, vendo que Blue puxou uma cadeira para ficar ao lado de Leaf.

– Sabe, se ele está teimando em ficar com o Pikachu, deixa ele. Você não tem que ficar segurando a mão de quem quer se ferrar sozinho. – Blue falou, colocando seu almoço na mesa de Leaf. – E se ele tá te ignorando, ele que é o imbecil.

Desde a briga no quarto, Red estava evitando Leaf como se fosse a praga. O que doía como se Leaf estivesse tendo seu coração arrancado. Quando Leaf chegou em Pallet, ela também se isolou de todos e só ficava pelos cantos, chorando. Ninguém sabia o que fazer com ela. Mas Red havia ficado ao lado de Leaf, mesmo quando ela soluçava de saudade de seus pais ou acordava no meio da noite gritando de terror pelo que havia presenciado. Uma presença silenciosa, mas constante. Red era um garoto gentil, ele só era terrível em demonstrar.

Saber disso só deixava Leaf ainda mais conflituosa. Se afastar de Pikachu era tão terrível que Red, esse menino gentil e cuidadoso, estava disposto a cortar relações com ela? Só de pensar nisso, Leaf queria chorar. De repente, ela era a mesma garotinha que havia chego em Pallet, três anos atrás. Uma garotinha assustada, chorosa e sozinha.

– Ele só está confuso, Blue. – Leaf defendeu, mais para si mesma que para Blue. – O Red tem dificuldade de se expressar e se ele estiver tendo problemas, não vai ter com quem conversar se você ficar aqui.

– Você tem que estar brincando! Eu não vou ficar perto dele quando ele tá te tratando assim! – Blue gesticulou nervosamente. – Leaf, eu conheço o Red desde que nasci, ele é um pivete egoísta! Ceder para as birras dele só faz ele piorar!

– Ele precisa de você. Ele precisa de mim também, só… Não quer aceitar isso. – Leaf disse, em tom de finalidade. – Por favor, Blue, eu vou ficar mais tranquila se souber que você está com ele.

Blue era um livro aberto. Leaf era boa com sentimentos, ela sabia ler as pessoas, mas com Blue ela nunca precisava se esforçar. Por isso, ela sentiu uma pontada de culpa quando o rosto de Blue desabou com mágoa.

– Tá bom. Se é o que você quer. Mas eu não vou ser legal com ele! Arceus sabe que ele não merece. – Pegando sua lancheira da mesa de Leaf, Blue caminhou até Red.

A culpa foi substituída por alívio. Leaf sempre podia contar com Blue e isso era uma vitória.

Quando Red voltou para casa, ele tinha um olho rosto. E Pikachu estava todo arranhado.

– O Blue me deu um soco. – Red explicou. – Ele me disse pra te pedir desculpas.

– Eu vou matar ele. – Leaf prometeu, a voz grossa com a raiva que ela estava sentindo.

– Pika pi! – O Pikachu concordou, o que fez Leaf quase vomitar.

– O Pikachu não gostou e tentou eletrocutar ele. – Red continuou a contar. – A Eevee não gostou disso e atacou o Pikachu. Os dois brigaram, a Eevee perdeu. Acho que o Blue…

– O Blue vai pedir desculpas por ter te machucado. – Leaf decidiu. – E você vai pedir desculpas por ter machucado a Eevee.

O Pikachu soltou um som quase zombeteiro. Leaf se recusava a olhar diretamente para ele. Se ela olhasse para ele, ela certamente iria perder.

– Acho que o Blue não quer mais ser meu amigo. – Red continuou, como se não tivesse ouvido Blue.

– Bobagem. O Blue sempre vai ser seu amigo, vocês dois são praticamente irmãos.

Os dois ficaram alguns minutos em silêncio, com Leaf cuidando das feridas de Red. É claro que ela sabia que Blue estava irritado, mas ele precisava ter sido tão violento? Honestamente. Os dois podiam ter só conversado, ao invés de sair atirando socos para todos os lados.

– Você é minha amiga, Leaf?

– Que pergunta é essa? Claro que sou! Sempre vou ser sua amiga.

– Mas você tá brava comigo.

– Eu não estou brava com você, Red! Eu estou brava com o Blue, isso sim!

– … Eu não entendo você.

Colocando as ferramentas do kit de primeiros socorros na mesa, Leaf virou e abraçou Red.

– Você não precisa entender, Red. Eu só quero proteger você.

-...

O Pikachu parecia estar rindo, por algum motivo. Leaf se perguntou se isso significava uma derrota ou uma vitória.

– Você precisa se desculpar com o Red. – Leaf aconselhou imperiosamente, seguindo Blue no caminho para casa depois da escola. – Ele acha que vocês não são mais amigos.

– Ele se desculpou com você?

– Ele não precisa se desculpar comigo.

– Então não se desculpou. – Blue chutou uma pedra longe. – Eu não vou falar com ele até ele se desculpar.

Leaf agarrou Blue pelo braço, o virando para ela.

– Eu não preciso que o Red se desculpe, Blue. Ele é ingênuo e não entende o que está fazendo. Eu preciso que você fique perto do Red para ele não ficar sozinho com o Pikachu.

– Red, Red, Red, sempre ele, né? - Blue bateu a mão de Leaf para longe. – Quer saber, Leaf? Por que você não fica grudada nele, ao invés de me seguir? Vocês estão se falando de novo, agora que eu quebrei a cara dele! Acho que já fiz mais que o suficiente e já que o seu precioso Red não faz nada de errado, você pode…

Por favor. – Leaf agarrou o braço dele de novo. – Ele vai eletrocutar o Red. Eu fico pensando nisso toda a noite…

Blue estava com raiva, isso era claro na postura e expressão, mas quando Leaf o encarou desesperada, ele parecia estar engolindo algo intragável. A mágoa era clara, nessa tempestade de emoção, e mais uma vez Leaf sentiu a culpa de estar machucando um dos seus melhores amigos. Ela sabia que Red não era bom com palavras e por isso, Blue não entendia bem como Red pensava. E Leaf sabia que quem deveria estar fazendo essa ponte era ela, só que no momento, a prioridade era garantir que Red ficasse seguro. O resto poderia vir depois.

– Tá bom. – Blue cedeu, parecendo querer chorar.

– Obrigada! – Leaf sentiu uma onda de alívio passar por ela e puxou Blue para um abraço apertado.

Blue era do tipo que gostava de afeto físico. Ele estava sempre tocando Red e Leaf, colocando um braço ao redor deles ou cutucando seus rostos. Blue adorava quando Leaf o abraçava, embora jamais iria admitir isso. Hoje, ele segurou os ombros de Leaf e a empurrou, passando por ela para procurar por Red.

Essa foi a vitória com mais gosto de derrota que Leaf já teve.

Com Red sendo vigiado por Blue, Leaf podia se concentrar em garantir que a casa ficasse 100% segura contra o diabinho. Tentar limitar o tempo de Red com o Pikachu era impossível, por isso era dever de Leaf garantir que o tempo gasto perto daquele rato fosse o mais seguro possível.

Por sorte, Red havia concordado em deixar o Pikachu dormindo na sala, então Leaf não tinha que se preocupar com o momento mais vulnerável de seu dia. Era só trancar a porta e as janelas, depois que Red dormisse. A mesma coisa com Dahlia, Leaf entrava de fininho no quarto da mulher, trancava as janelas e a porta. Leaf só tinha que garantir que seria a primeira a levantar no dia seguinte, para destrancar tudo.

Blue havia dito que Pikachus são temperamentais e quanto se sentem ameaçados, descarregam toda a eletricidade armazenada em suas bochechas como defesa. O que queria dizer que se Pikachu se sentisse incomodado pela presença de Red, como já havia feito antes, não tinha como impedir um ataque. Então, subitamente, todos os casacos de Red que não eram sua capa de chuva feita de borracha sumiram.

As crianças da sala começaram a caçoar de Red de novo, por conta disso. Ainda mais depois que Leaf o presenteou com luvas de borracha combinando com o casaco, jurando para Red que era moda em Kalos. Leaf lidou com aquelas crianças terríveis, depois disso, para garantir que Red não ficasse desconfortável em usar as luvas e o casaco – as crianças agora corriam na direção oposta se ela sequer aparecesse na linha de visão deles, mas valeu a pena.

Finalmente, havia a fiação da casa. Se Leaf tivesse escolha, ela teria cancelado a eletricidade da casa e eles estariam usando velas. Ter tanta eletricidade perto de um Pokémon elétrico soava como uma péssima ideia. Entretanto, Dahlia nunca permitiria isso, então Leaf gastou sua mesada comprando protetores de tomada e assegurou que a casa inteira estivesse equipada com eles.

Inflamáveis também não podiam ficar perto de Pikachu, então Leaf começou a guardar cobertores e almofadas da sala, antes de dormir. Quando ela notou que a cozinha estava cheia de inflamáveis e Pikachu tinha acesso à cozinha a noite inteira, Leaf começou a levar álcool, azeite, bebidas, o que parecia que iria pegar fogo para o quarto com ela, antes de dormir. Ela só tinha que acordar duas vezes mais cedo para pôr tudo no lugar, de manhã.

Dahlia, Blue e Red estavam todos dando olhares estranhos para ela, que Leaf recusava a analisar. Não importava o que eles estavam pensando,pois essa família Leaf o conseguiria proteger.

Sempre que alguém dependia de Leaf, parecia que ela estava condenada a falhar. A única coisa pela qual Leaf havia ficado responsável era garantir que todos dormissem seguros. Leaf sempre teve sono leve, por isso, ela tinha certeza de que seria moleza proteger o Red durante a noite.

Quando Leaf acordou naquela manhã, a cama de Red estava vazia e a porta, que Leaf tinha certeza de trancar e colocar a chave embaixo de seu travesseiro, estava aberta.

Com o coração quase saindo pela boca, Leaf tropeçou pelas escadas. O Pikachu sempre dormia na sala. Se ele não estivesse lá…

Na poltrona que costumava ser do pai de Red, ambos garoto e Pokémon dormiam juntos, com o cobertor de Red os cobrindo. Leaf os encarou incrédula. Talvez, sentindo seu olhar, Red acordou.

– … Ele não gosta de ficar sozinho. – Ele sussurrou. Uma justificativa.

No segundo andar, Dahlia estava batendo na porta de seu quarto, que Leaf havia trancado na noite anterior. O gosto dessa derrota amargou a boca de Leaf.

Dando as costas para Red, Leaf saiu de casa.

Ela sabia que estava sendo injusta. Red era muito novo, ele não entendia a gravidade do que havia feito. Uma criança nunca entenderia o perigo que era se tornar apegado a um animal selvagem.

Ainda assim, o estômago de Leaf se contorcia com o sentimento de ter sido traída. O que era ridículo, em momento nenhum Leaf havia dito para Red que ele não podia sair do quarto, só que o Pikachu não dormiria no mesmo lugar que ela. Leaf acreditou que era subentendido que o Pikachu não dormiria no mesmo lugar que nenhum outro membro da família. Leaf disse para si mesma que Red, quem não entendia bem as coisas nem quando eram ditas diretamente para ele, tinha entendido algo que não foi verbalizado.

O erro era completamente de Leaf, como de costume.

Uma criança andando de pijama sozinha numa manhã em Pallet, onde todo mundo se conhecia, chamava muito atenção. Leaf conseguia ver de canto de olho as donas de casa que saíram para pegar o jornal ou garrafas de leite sussurrando uma para a outra: "Aquela não é a menina da Dahlia? Será que aconteceu alguma coisa?". Até o fim da manhã, a cidade inteira estaria comentando sobre a explosão de Leaf. Além de não conseguir mantê-los seguros, Leaf ainda tinha conseguido envergonhar Dahlia.

Quando Leaf havia percebido sua derrota, ficar naquela casa foi demais. Ela precisou sair, para esfriar a cabeça. Estar em movimento sempre ajudava Leaf a pensar com clareza. Mas essa decisão impulsiva iria fazer Dahlia virar alvo de fofoca. A vergonha queimava dentro de Leaf. Ela queria desaparecer, sumir dali. Um lugar para poder se esconder.

Leaf tinha um destino em mente.

Entrar escondida no quarto de Blue havia sido moleza. Era fim de semana e normalmente Blue dormia até o começo da tarde, então Leaf não ficou surpresa em encontrá-lo roncando na cama. Eevee, que estava dormindo nos pés de Blue, levantou a cabeça para focar em Leaf quando a percebeu, confusa.

Ver a Pokémon dormindo com seu treinador jogava sal na ferida mais recente de Leaf, mas ela realmente precisava de um lugar para ficar. Então com lágrimas queimando em seus olhos, Leaf levou o dedo indicador até a boca, pedindo silêncio, enquanto com a outra mão fechava a janela pela qual havia entrado.

Ninguém incomodava Blue nas manhãs de sábado. Ele ficava insuportável se acordassem ele antes de meio-dia. Mesmo se entrassem no quarto para avisar do sumiço de Leaf – ela conteve a pontada em seu peito quando pensou nisso –, ela tinha um plano.

O armário de Blue era maior que o quarto de Leaf e Red. Tudo que Blue usava ficava no começo, a parte de trás estava cheia de quinquilharias que Leaf vivia pegando no pé de Blue para ele jogar fora. Nesse momento, ela estava grata que ela guardou todo aquele lixo, inclusive a grande estátua de Clefairy feita de pedra da lua que o Professor Carvalho tinha ganho de um amigo no natal passado.

Ficava fácil fazer um esconderijo ali atrás. O armário tinha janelas pequenas na parte superior da parede, então entrava luz natural. Apesar de ser cheio de quinquilharia, estava limpo e não cheirava mal.

Desde o dia que seus pais foram devorados, lugares pequenos haviam se tornado um conforto para Leaf. Depois daquilo acontecer, Leaf havia se escondido em uma alcova próxima, que mal tinha espaço para ela, uma garotinha de sete anos, se enfiar. Se esconder atrás daquela estátua de Clefairy que Blue tinha insistido em guardar em seu quarto dava um sentimento parecido.

Sozinha de novo, Leaf se arrumou em seu esconderijo e encarou a parede, pronta para se deixar desaparecer por algumas horas. Ela iria sair dali, eventualmente. Iria se desculpar com Red e Dahlia, enfrentar os olhares de julgamento e preocupação como havia feito antes, depois de chegar em Pallet. Ela encontraria um jeito de proteger Red.

A Eevee de Blue era um caso à parte. Quando Blue ganhou ela de presente, ele fez um monólogo inteiro de como Eevee eram mais animais de estimação do que qualquer coisa. Eevees eram tão dependentes de humanos que não sobreviviam sozinhos na natureza. Eles haviam sido geneticamente alterados através de criação especializada para isso. Por isso, para Blue que sonhava em ser campeão, o presente foi um insulto.

A amargura não durou muito. Blue amou a Eevee assim que pôs as mãos nela. Por mais que quisesse parecer durão, Blue era uma manteiga derretida.

Embora Blue não soubesse na época, esse monólogo confortou Leaf. Portanto, quando Leaf conheceu Eevee, ela estava insegura, sim, mas não tinha motivos para acreditar que a Eevee comeria Blue vivo.

Com Pikachu, era diferente. Pikachu tentou matar Red duas vezes e o havia machucado muitas outras vezes. Ficar com aquela criatura era ridículo. Mas agora, Red estava preso com o Pikachu. Ele havia se apegado.

Blue era um treinador competente. Mesmo que o Professor Carvalho tenha intencionado que Eevee fosse um animal de companhia, Blue a havia feito um Pokémon de batalha. Se Blue estivesse com Red, Leaf estava tranquila, pois era da natureza de Eevee agradar os humanos aos quais ela dependia e se Blue pedisse que ela os protegesse contra o Pikachu, Eevee o faria e muito bem, pois Blue era um treinador competente.

Talvez Blue pudesse vir morar com eles por tempo indeterminado. Pelo menos até Red entender que Pokémon só podiam ser confiados como ferramentas dos humanos.

Ouvindo os roncos de Blue, o pensando logo se tornou ridículo, também. Blue nunca largaria seus privilégios para morar numa casinha de dois quartos, nem se fosse para ajudar um amigo.

Eevee seguiu Leaf para dentro do armário, fechando a porta atrás dela. Talvez Leaf devesse se sentir mais acuada, estando sozinha numa sala fechada um Pokémon. Entretanto, Eevee era diferente. Era uma Pokémon criada justamente para ser um animal de estimação, uma companhia. Um suporte emocional.

Mesmo Leaf aceitasse estar na presença de Eevee, ela nunca chegava muito perto. A aceitação estava bem longe de ser afeição. Talvez por isso, Eevee não se encostou contra Leaf, como fazia com Blue quando ele estava chateado. Ao invés disso, a Pokémon deitou no assoalho, olhando para Leaf, se fazendo presente.

Leaf estava grata.

Eventualmente, o Professor entrou no quarto de Blue, o acordando. Apressadamente, ele explicou que Leaf havia desaparecido. De seu esconderijo no armário, Leaf se abraçou e se encolheu.

Com um tom mais alarmado, Blue notou que Eevee não estava mais com ele e começou a chamar por ela. Eevee olhou na direção da porta, como se quisesse responder. Leaf rezou para que ela ficasse quieta, mesmo que soubesse que Eevee responderia seria o correto. Afinal, agradar seu humano era da natureza de Eevee.

Eevee ficou quieta atrás da caixa que a escondia. Blue entrou no armário e pegou roupas rapidamente, fechando a porta atrás de si, continuando a chamar por Eevee.

Leaf encarou os olhos redondos e marrons de Eevee. Algo quente floresceu em seu peito, antes que Leaf cruelmente esmagasse esse sentimento.

Blue esteve preocupado com Leaf, ultimamente. Até deu um soco em Red, e fez Eevee puxar briga com o Pikachu, por conta disso. O comportamento de Eevee certamente era extensão disso – Eevee achava que Blue gostaria que ela ficasse com Leaf. Não era nada além disso.

A luz entrando pelas janelinhas estava alaranjada. Estava anoitecendo.

Leaf ainda não tinha ido para casa. Leaf não queria ir para casa.

Do outro lado da porta, Leaf estava ouvindo Blue chorar sobre o desaparecimento dela e de Eevee. Um dia inteiro de procura e não haviam encontrado uma única pista das duas. Leaf sentia seu estômago revirar. Ela era uma pessoa terrível.

Eevee estava agitada. Ouvir seu dono sofrer certamente estava mandando todo tipo de impulso para ela. Leaf rezava para que Eevee ficasse ali, se Eevee saísse do armário, Blue certamente a descobriria. Leaf não conseguiria encarar Blue agora.

Do outro lado, Leaf escutou a porta do quarto abrir o Professor Carvalho conversar num tom gentil com Blue. O garoto pareceu se acalmar. Leaf soltou o ar pelo nariz, vendo Eevee se acalmar também.

Levou um tempo, mas eventualmente, o Professor saiu do quarto e Leaf voltou a ouvir os roncos suaves de Blue. Leaf olhou para Eevee, que estava olhando para a porta intensamente. Leaf era uma pessoa terrível.

Sorrateiramente, Leaf saiu do armário.

Leaf parou na frente de sua casa, incerta. As luzes estavam apagadas. Talvez se ela fosse direto para cama, na manhã seguinte ela poderia fingir que nunca saiu de casa.

Com suspiro, Leaf desistiu dessa noção estúpida. Ela teria que enfrentar umas conversas bem desagradáveis amanhã, então era melhor ir dormir logo.

Colocando a mão na maçaneta, Leaf abriu a porta. Uma mão a agarrou pelo ombro.

– Dahlia, ela está aqui. – O Professor Carvalho chamou, agarrando Leaf com força.

Leaf olhou para trás, vendo Dahlia se aproximar, com lágrimas em seus olhos. A lanterna que ela estava segurando foi esquecida no chão. Atrás dela, Red e Pikachu estavam olhando para Leaf, que rapidamente quebrou o contato visual.

Pela primeira vez desde que chegou em Pallet, os olhos vermelhos de Red, brilhando no escuro, fizeram, Leaf se sentir desconfortável.

Dahlia se ajoelhou no chão, jogando os braços em volta de Leaf e quase a sufocando com a força de seu abraço. O Professor Carvalho soltou Leaf e a estava encarando com um olhar de pena que fazia o estômago de Leaf revirar.

– Precisamos conversar. Por quê não entramos um pouco? – O Professor Carvalho sugeriu, abrindo a porta.

Logo que entraram dentro da casa, Red foi mandado para o quarto, junto de Pikachu. O menino não discutiu muito e rapidamente desapareceu para o segundo andar. Leaf foi colocada no sofá, com Dahlia, enquanto o Professor Carvalho usava a cozinha para fazer uma bebida quente – chá de camomila para Dahlia, chocolate quente para Leaf e café extra forte para ele mesmo.

No sofá, Dahlia havia passado da fase de choro incessável de alívio por Leaf estar bem e agora estava possessa de raiva pelo que Leaf havia feito. Pelo menos, o mais possessa que Dahlia conseguia ficar com alguém.

– Colocamos Pallet inteira atrás de você! Os vizinhos viram você ir para o laboratório do Professor Carvalho, então achamos que você podia ter entrado no cercado dos Pokémon por engano, já que o Blue não sabia onde você estava e o professor não de achou dentro da casa, mas não tinha nada lá… Então achamos que você tinha fugido para a floresta, ou se afogado na praia, ou entrado na grama alta… – Ela abraçou Leaf de novo. – Quando a Eevee também sumiu, achamos que você tinha fugido com ela! Nunca mais some assim de novo! Eu achei que ia ter um treco!

– Desculpa… Eu não queria deixar ninguém preocupado… – Leaf murmurou, sentindo a vergonha tão intensamente que seu corpo inteiro parecia mais pesado.

O Professor Carvalho veio da cozinha e colocou uma caneca na frente de cada um, se sentando na poltrona que costumava ser do pai de Red e que Leaf estava propositalmente olhar na direção.

– O importante é que te encontramos bem, Leaf. Tenho certeza que o resto da cidade vai ficar aliviada, também. – Ele deu um sorriso gentil para Leaf. – Águas passadas não movem um moinho, mas quando uma pedra obstrui a passagem, o rio não consegue seguir seu curso. Por quê você fugiu, Leaf?

O tom era firme, apesar da gentileza e cuidado nos olhos do professor. Dahlia empurrou Leaf, a segurando pelos ombros para fitar o seu rosto.

– Sim, querida, nós queremos entender… A minha porta estava trancada, e o Red disse que você fugiu depois que viu ele com o Pikachu…

Leaf brincou com a bainha da camisa de seu pijama. Era um pijama de frutinhas com o fundo azul, bem bonitinho. Agora, ele estava sujo e suado. Leaf não achava que ela conseguiria usar este pijama de novo.

– Não estamos bravos. – O professor garantiu. – Estamos preocupados com você.

Se eles estivessem bravos, seria muito mais fácil. Leaf só teria que ficar com raiva também. Mas agora, com os dois olhando para ela com tanta preocupação, Leaf se sentia sufocada. Ela sabia que teria que se explicar, mas não queria dizer que seria fácil.

– O Pikachu… O Red fica muito feliz quando está com ele, então não queria tirar o Pikachu dele… – Leaf começou. – Mas os Pokémon são perigosos. O Red não entende isso, mesmo quase morrendo por causa deles. Então, eu achei que… Se eu tomasse conta de tudo, o Red podia ficar com o Pikachu e mesmo assim, o Red e a Dahlia ficariam seguros.

Mas Leaf estava errada, porque mesmo que as únicas coisas que ela tinha que fazer eram trancar umas portas e prestar atenção em Red durante a noite, ela ainda tinha falhado.

– Oh, meu amor. – Dahlia puxou ela de volta para um abraço. – Eu sinto muito, eu deveria ter percebido antes… Eu não deveria ter concordado em deixar o Pikachu ficar aqui em primeiro lugar, eu fui egoísta. Eu sinto muito!

Leaf achava que ouvir um adulto admitir que havia errado em relação a isso a faria se sentir vingada, mas ver Dahlia de coração quebrado só fez ela se sentir pior.

– Foi negligência nossa, Leaf. – O Professor Carvalho concordou. – Blue tem me falado que você não estava bem com o Pikachu morando aqui há semanas, mas você é bem madura para sua idade, então achei que se você se sentisse incomodada, conversaria conosco. Só que no fim, você ainda é uma criança.

Envergonhada, Leaf abaixou a cabeça. Então, até o Professor achava que Leaf deveria ter mais senso do que agir da forma que ela agiu.

– Não foi um erro seu, Leaf. Por favor, não se culpe. – O Professor continuou. – Você é uma criança, por isso, cometeu erros. Mesmo que seja madura, ainda precisa de orientação e cuidado dos adultos. Nós, como adultos em sua vida, deveríamos sim ter notado que algo estava errado e conversado com você antes.

Lentamente, Leaf abanou a cabeça, concordando. É verdade que ela havia ficado indignada com a negligência dos dois e por isso, tentou tomar controle de tudo ela mesma. Algo dentro de Leaf se pacificou, naquele momento, fazendo Leaf se sentir mais calma. Segura.

– A Eevee ficou comigo hoje. – Ela confessou. – Me escondi no armário do Blue e ela ficou comigo.

O Professor quebrou numa risada calorosa.

– Te procuramos na casa toda, menos naquele bendito armário. – Ele balançou a cabeça. – Fico feliz que a Eevee tenha te feito companhia. Apesar de ter ficado aflito com o ela sumindo, o Blue ficaria feliz por isso, também.

Leaf esperava por isso. Afinal, Eevee não teria ficado com ela se isso fosse desagradar Blue.

– Sobre o Pikachu… – Dahlia mordeu o lábio inferior. – Se você quiser, podemos mandar ele de volta para o laboratório. O Red vai entender, Leaf. Essa também é sua casa e você não tem que ficar com medo de morar aqui.

Os olhos de Leaf se encheram de lágrimas e ela piscou com força, para mandá-las embora. Ela não podia perder a compostura agora, mas as palavras de Dahlia fizeram Leaf se sentir quentinha por dentro. Era o que ela queria, no entanto, ao mesmo dentro era o contrário do que ela havia decidido que faria.

– Não precisa. – Ela balançou a cabeça. – Não vai fazer diferença onde o Pikachu está, pois o Red não vai deixar ele sozinho.

Os três ficaram em silêncio, por alguns momentos.

– Então porquê não fazemos assim? Blue me disse que você pediu para ele ficar com Red sempre que ele estivesse com o Pikachu fora de casa, já que ele tem a Eevee. Você gostaria de um Pokémon também, Leaf? – O Professor sugeriu.

O coração de Leaf perdeu uma batida. Umas semanas atrás, essa oferta seria hilária. Uma piada, por que sendo honesta, o Professor conhecia Leaf? É claro que ela nunca teria um Pokémon. Leaf os odiava. Odiava tanto que às vezes mal conseguia conter esse sentimento dentro de seu corpo.

Leaf pensou em Eevee, deitada com ela, mesmo que Blue sofresse por isso.

– … Depende do Pokémon. Pode ser um Eevee, também? – Leaf pediu, em voz baixa, ainda que esperançosa.

– Eevee são extremamente difíceis de conseguir. – O Professor disse, com uma voz apologética. Leaf baixou a cabeça, abatida. – Mas tenho um Pokémon em mente para você.

– Eu não gosto da maioria dos Pokémon.

– Desse você vai gostar. Eu prometo.

Lentamente, Leaf balançou a cabeça. O Professor deu um sorriso satisfeito.

A criaturinha era rosa, fofa e sorridente. Quando Leaf se aproximou, ela veio correndo com seus pézinhos e ofereceu uma pedrinha branca, com um grande sorriso.

– Ela já gosta de você! – O Professor comentou, com uma risada.

Leaf encarou a coisinha com uma feição impassível.

– É uma Happiny. – Blue sorriu, seus olhos brilhando com animação. Blue amava Pokémon e ficava animado não importava qual fosse. – Uh… Leaf, se eu fosse você, aceitava a pedra. Eu acho que ela vai chorar.

De fato, a criaturinha estava piscando rápido, com lágrimas nos olhos, e sua respiração havia ficado mais rápida. Hesitando, Leaf pegou a pedrinha da mão dela. A Happiny, seja lá que fosse, deu um sorriso enorme, choro esquecido. Havia sido manipulação emocional, então. Leaf franziu o cenho.

– … – Red estava encarando o Pokémon, tão impassível quanto Leaf.

– Por que este Pokémon, Professor? – Leaf se esforçou para manter o descontentamento longe de seu tom de voz.

– Happiny são companhias divertidas. Elas gostam de brincar de faz-de-conta e são bem populares com crianças, apesar de sua raridade. – O Professor coçou o queixo, sorrindo para si mesmo. Ele também amava Pokémon, então ficava feliz com o que quer que fosse. – Como ainda não podem colocar ovos, elas levam consigo pedrinhas que acham parecer ovos e distribuem elas para os seus amigos.

Leaf piscou e encarou o professor tempo o suficiente para ela começar a ficar desconfortável. Todo o comportamento corporal dela queria dizer um grande "E daí? O que isso tudo tem a ver comigo?".

– Happiny evolui para Chansey, Leaf. – Blue continuou. – Combinam muito com você. Chansey são praticamente Pokémon-mãe que cuidam do bem-estar e saúde de outros Pokémon. São ótimos suportes, com várias habilidades de cura, por isso normalmente as enfermeiras dos Centro Pokémon têm uma Chansey.

– Elas também colocam ovos deliciosos e nutritivos, que melhoram muito a saúde e capacidade física de quem come. – O Professor adicional. – Hmm, um omelete de ovo de Chansey… Que saudade…

– As Chansey têm o instinto de cuidar dos feridos e naturalmente detectam quem tem intenções ruins. – Blue completou.

Tudo isso soava bem para Leaf. A Happiny parecia estar brincando com algum amigo imaginário, fazendo vários movimentos para o ar, infantil e inocente. Leaf sentiu vontade de vomitar.

– Então, por quê não me deu uma Chansey? – "Ao invés dessa coisinha nojenta na minha frente?" Ficou sem ser dito.

– Você ainda não tem sua carteirinha de treinadora, Leaf. Então como Red e Blue, só pode ter Pokémon que servem como animais de estimação e que tecnicamente, são Pokémon dos seus pais. – O Professor explicou. – Mas tenho certeza que você vai conseguir evoluir a Happiny rapidinho.

– Eu não quero ser treinadora.

– Eu sei. Por isso, você vai conseguir! Afinal, as Happiny evoluem quando realmente amam seus treinadores! – O Professor contou.

Leaf poderia ter colocado o café da manhã para fora ali mesmo.