Eu tive o sonho de novo, naquela noite. O sonho da caverna no meio do oceano. Fazia tempo que eu não sonhava com aquilo, achei que já tivesse superado. Mas de manhãzinha, acordei suando frio e com um zumbido dentro da cabeça que demorou a passar.
Eram sempre vívidos aqueles sonhos. Provavelmente por serem baseados nas minhas próprias lembranças, e não em algo imaginário. Eu sempre achei que eles fossem só uma espécie de estresse pós-traumático ou qualquer coisa assim. Uma memória da última vez que eu pisei no Makai. Eu descobriria mais tarde que era muito mais do que isso, que havia um motivo para as espirais talhadas nas paredes de pedra da caverna me assustarem tanto.
Mas eu já odiava esse sonho mesmo antes de saber o que significava. Porque era naquela maldita caverna que eu estava enquanto Keiko perdia a vida no Ningenkai.
(…)
Eu já me perguntei mil vezes como as coisas poderiam ter sido diferentes se eu não tivesse encontrado Koenma naquela tarde chuvosa ou saído para seguir o maldito boato sobre o youkai no mercado de Ikebukuro. Daya teria vindo até mim da mesma forma, mas teria sido muito mais fácil manter firme o meu "não".
Eu decidi ir ao Blue Lotus na noite seguinte porque precisava de um ponto de partida. A hipótese das duas mortes estarem conectadas era ao mesmo tempo remota e plausível. Eu nunca tinha pego um caso assim. Talvez tenha sido isso que me fez seguir adiante.
O clube tinha uma fachada simples, apesar da flor de lótus no letreiro piscando em neon azul. Ficava na parte mais antiga da Cidade Alta, e a falta de cuidado dos prédios entregava a idade. Não era uma das áreas mais seguras, mas nenhuma das áreas da Cidade Alta era. Principalmente depois que outros clubes noturnos e bordeis se instalaram naquela parte do bairro.
Por dentro, a passagem do tempo ficava ainda mais visível, mas ao menos a iluminação baixa ajudava a disfarçar o desgaste das cadeiras de veludo. Não que qualquer frequentador do Blue Lotus se importasse com isso.
Quando eu cheguei, fui direto para o bar. Pedi um uísque sem gelo. No palco dos fundos, uma jovem seminua se apresentava, dançando em volta de um poste de metal. A casa não estava muito cheia, menos da metade das mesas parecia ocupada. A maioria olhava para a performance no palco, enquanto outros nem prestavam atenção. Eu também não estava interessado, mas algo me chamou atenção.
Eu conhecia a pessoa que estava no palco. Conhecia aquele cabelo curto marrom, com as orelhas apontadas para cima, e um rabo de raposa saindo para fora do short. O rosto era difícil de ver com clareza, não apenas por que ela frequentemente se virava de costas, mas também por que os holofotes focavam em outras partes do corpo. Mas eu estava certo de que era Koto ali em cima.
Eu sabia que Koto tinha largado a carreira de árbitra e comentarista de torneios de luta no Makai e vindo para o Mundo dos Humanos, mas não fazia ideia que tinha ido parar aqui.
Esperei ela terminar. Acendi um cigarro e pedi para que enchessem meu copo de novo. Quando a música acabou, os holofotes do palco apagaram e vi a silhueta de Koto descendo do palco, virando uma parede e sumindo por uma porta. Provavelmente o camarim. Dei mais um tempo, terminei minha segunda dose e, quando levantei, vi Koto surgindo de novo. Dessa vez, saindo do camarim e passando por outra porta, uma de metal com uma caixa luminosa escrito "Saída" presa logo acima.
Cruzei as mesas do clube até lá. Era uma saída de emergência, do lado oposto da entrada principal, na parede mais ao fundo. Provavelmente a rota preferida das dançarinas que queriam sair sem ter que passar pelo salão e pelas mesas com possíveis clientes inconvenientes. Empurrei a barra que liberava a porta e saí.
A porta dava para a rua de trás do prédio, uma viela sem muito movimento. Uma luminária pendia sobre a porta, mas fora isso, a iluminação pública era ainda mais precária do que na rua principal. Lixo se formava em alguns cantos.
Koto ainda estava lá, encostada na parede a menos de um metro da saída. Ainda estava com o short, as meias arrastão e o salto que usava em cima do palco, mas a parte de cima do corpo estava coberta por um casaco de pelúcia marrom. Tinha um cigarro na boca e tentava fazer um isqueiro funcionar. Eu ofereci o meu.
Ela me olhou com as sobrancelhas erguidas de surpresa, mas aceitou meu isqueiro. Quando devolveu, vi que ela também me reconhecia.
— Yusuke Urameshi — ela falou — Um rosto que eu não esperava ver no Blue Lotus.
— Posso falar o mesmo de você.
Koto apertou os olhos, me analisando. Soltou a fumaça no meu rosto.
— Então, o que você quer? Por favor não seja como os nojentos desse lugar que ficam fazendo propostas asquerosas.
— Não se preocupe, eu estou a trabalho.
Dessa vez ela pareceu achar graça. Fez sua cara de surpresa mais uma vez, mas de maneira bem mais exagerada. Repuxou o canto do lábio em um sorriso irônico.
— Por essa eu realmente não esperava — falou, emendando em uma risada curta. Ignorei.
— Estou investigando a morte de Nika. Suponho que trabalhavam juntas.
— Nika se matou — Koto falou com uma voz séria, o sorriso desaparecendo do rosto.
— E o que você sabe sobre isso?
Koto encostou as costas na parede e olhou para o chão. Ficou um tempo assim, mordiscando o canto da boca e com o olhar sério. Tragou o cigarro sem perceber. Depois virou o rosto para mim.
— Foi Kishimoto quem trouxe você aqui, não foi? — Koto balançou a cabeça — É claro que foi. Ela deve estar desesperada com os boatos pra gastar o dinheiro dela com isso.
— Boatos?
Ela me lançou um olhar divertido.
— Nossa, mas você não vem muito aqui mesmo, não é? Deve ser por isso que Kishimoto quis contratar você.
— Por que você não me explica então? — eu falei.
O jeito de Koto começava a me irritar, mas não podia perder a oportunidade de ouvir o que ela tinha a falar. Ela me parecia o tipo de pessoa que precisa só de um pouco de corda para abrir a boca.
— Os boatos de que Kishimoto tem algo a ver com a morte da Nika. Que ela fez alguma espécie de pacto pro clube prosperar em troca de algumas almas. E Nika foi a primeira. Kishimoto não quer que a gente fique falando disso, mas você ia ficar sabendo de um jeito ou de outro — Ela levou o cigarro para a boca mais uma vez — Não viu como a casa estava vazia hoje? Já duas meninas pediram demissão, e ainda não conseguimos repor. Antigamente, a gente tinha uma fila de candidatas. Mas desde a semana passada, as pessoas andam passando longe daqui.
— Mas você não acha isso. Você continua aqui.
Ela deu uma risada curta. Jogou o cigarro no chão e pisou com o bico do salto. Limpou as mãos e tirou o cabelo caído sobre o olho.
— É claro que continuo, eu tenho contas pra pagar. Mas não, não acho. Até porque se fosse um pacto pra trazer sucesso pro clube, não estaria dando muito certo, né? — Koto chegou mais perto e abaixou a voz — Pra mim, foi Nika que se meteu com o que não devia. Ela tinha clientes por fora, vivia se encontrando com eles fora do horário de trabalho. Não vou estranhar se algum deles tiver algo a ver com isso. Até porque eu sei que ela esteve com um cliente no mesmo dia que morreu. Eu estava de folga aquele dia, e chamei ela pra fazer compras comigo de tarde. Antes do expediente dela. Mas ela disse que não podia, que ia encontrar alguém.
— Quem?
Koto deu de ombros.
— Não sei, ela nunca me falava os nomes. Dizia que era sigilo, que os clientes preferiam assim.
Bom, aquilo era um começo.
— E família? Sabe se ela tinha alguma por aqui? — perguntei.
Ela balançou a cabeça em sinal negativo.
— Nenhuma de nós tem família aqui.
— Namorado? Alguém próximo?
Outra negativa.
— Nika era no máximo próximo de Daya. Ao menos parecia que era. Ela vive trazendo quinquilharias do Makai, e às vezes Nika comprava alguma. Era ela que você devia interrogar. Kishimoto tem o contato, pode pedir a ela.
— É, já fomos apresentados. O que quer dizer com quinquilharias do Makai?
Koto contorceu os lábios com desdém.
— Muamba. Contrabando. Não sei que nome dar. Ela se esgueira pro Makai e traz as coisas. Não me pergunte como ela consegue passar pela vigilância do Reikai, não é da minha conta. Talvez ela molhe a mão de alguém, ou talvez ela saiba de alguma brecha. Mas é por isso que a Daya está sempre enfiada no Blue Lotus, quase todos que vem aqui são clientes dela também, incluindo Kishimoto, que vive encomendando porcarias. Então ela vem pra fazer negócios. Ou algo assim. Sei lá, tenho a impressão que Daya se envolve com um monte de gente cretina ou perigosa, mas não acho que ela se importa. Ela só quer fazer a grana dela. Como todo mundo aqui, aliás. Não dá pra dizer que ela está errada. Mas eu prefiro não me meter.
Eu balancei a cabeça, assimilando a informação. Quer dizer que Daya tinha passagem livre entre o Makai e o Ningenkai? Talvez ela soubesse mais do que tinha dado a entender no fim das contas. Me perguntava quem mais sabia disso, Do jeito que Koto falava, não parecia exatamente segredo, já que Daya pelo visto fazia disso seu ganha-pão.
Mas me perguntava também se Koenma sabia disso.
— Que tipo de mercadorias ela costuma trazer?
— Como vou saber? — Koto deu de ombros mais uma vez — Já falei que não é da minha conta. Mas as coisas da Nika devem estar empilhadas em algum lugar, se ainda não jogaram fora. Então talvez você encontre algo. O apartamento dela era aqui perto, se quiser te passo o endereço.
Ótimo, qualquer pista era um avanço, ainda que eu não soubesse exatamente o que estava procurando. Pedi pelo endereço, e Koto vasculhou a bolsa que tinha pendurada no ombro até achar alguma coisa. Pegou um lápis preto que parecia de maquiagem, pediu minha mão e rabiscou número e rua na minha palma.
— Não se preocupa, é a prova d'água. Mais alguma coisa, detetive? Ou estou liberada do interrogatório?
Eu li o endereço duas vezes para saber se tinha entendido. Não circulava pela Cidade Alta há muitos anos, mas acho que ainda sabia me encontrar pelas ruas do bairro. Mas depois olhei para Koto, parada na minha frente. Agora mastigava um chiclete que tinha encontrado na bolsa quando pegou o lápis, e não tinha mais o sorriso nem o brilho de anos atrás. Por trás da maquiagem pesada, parecia cansada. Há quanto tempo estaria no Blue Lotus?
— Por que você está aqui, Koto?
Ela piscou os olhos, me encarando de maneira estática.
— Digo aqui, no Blue Lotus. Achei que estava ficando famosa. Você, Juri e-
— E Ruka. Eu sei, foi bom enquanto durou — ela falou, sorrindo um pouco, quase sonhadora, mas depois assumindo um tom mais factual — A vida do lado de cá é bem menos cor-de-rosa do que a gente achou que fosse. E os humanos não foram tão amigáveis assim depois que descobriram o que a gente era de verdade. Mas você não entende, você era um deles, não é? Sempre viveu aqui.
Eu queria falar alguma coisa, mas nada saiu da minha boca. O que eu poderia dizer? Que eu sentia muito que as coisas não tinham dado certo? Que humanos eram mesmo complicados? Não acho que Koto queria ouvir nada dessas coisas. Ao menos não de mim.
Eu sabia que as coisas tinham se deteriorado de alguns anos para cá, mas era uma merda se dar conta que elas tinham mudado mais do que eu tinha pensado. Não era como se as coisas fossem fáceis para mim, mas em parte ela tinha razão: minha vida não era como a de um youkai da Cidade Alta.
Antes que eu conseguisse formular qualquer coisa para responder, Koto ergueu as sobrancelhas e olhou para além de mim, como se algo tivesse a chamado atenção nas minhas costas. Instintivamente, me virei para acompanhar, e, antes que pudesse ver o que era, um soco acertou o meu nariz. Cambaleei, pego de surpresa.
— Suzuki! — Koto gritou, aparentemente tão desconcertada quanto eu.
Demorei alguns segundos para focar no que estava na minha frente. De fato era Suzuki parado ali, agora com Koto ao seu lado, segurando seu ombro. A única explicação possível é que havia me confundido com alguém por ter me visto de costas. Ou por ter bebido além da conta — o rosto vermelho e os olhos caídos diziam que esse podia ser o caso. Afinal, tínhamos sido oponentes algumas vezes, mas não inimigos.
— Suzuki, sou eu, Yusuke.
— Eu sei muito bem quem você é!
Suzuki se soltou de Koto e veio de novo com o punho erguido na minha direção. Dessa vez não foi difícil desviar. Virei o corpo para o lado, escapando do golpe e fazendo com que ele tropeçasse nos próprios pés e quase caísse para frente.
— Ele está investigando a morte de Nika! — Koto falou, tentando justificar — Foi contratado por Kishimoto.
— Ah, mas é claro! — Suzuki falou, praticamente gritando e arrastando as palavras — E deve estar recebendo uma boa grana, não é? Porque o grande Urameshi não vai se dignar a vir na Cidade Alta de graça.
— Suzuki, você está bêbado — eu falei.
— E você está morto!
Ele mais uma vez tomou impulso contra mim, mas no estado em que ele estava, os movimentos eram lentos e previsíveis. Era tão lamentável que nem me compelia a revidar. Apenas me desviei mais uma vez, fazendo com que dessa vez Suzuki perdesse o equilíbrio de vez e tombasse no chão, quase batendo a cabeça na parede. Koto soltou uma exclamação e correu até ele, se agachando ao seu lado.
— Para com isso, cara! Eu não quero te machucar.
— Você é um babaca — Suzuki falou, tentando se erguer, mas caindo de novo. Se escorou na parede — A gente confiou em você! E o que você fez? Deu as costas, largou o Makai, largou seus amigos. Deixou o Makai se afundar em uma guerra, e você não fez nada! Você não fez nada!
— O Makai tinha um líder quando a guerra começou, e não era eu. Eu nunca assumi essa responsabilidade, eu nunca quis assumir.
— Não importa! Você podia ter feito alguma coisa!
Suzuki mais uma vez falhou em conseguir ficar de pé. Eu nunca tinha visto ele daquele jeito. Ele teve sua fase espalhafatosa no passado, e podia ser arrogante, mas nos últimos torneios que participamos junto ele tinha se mostrado bem mais sério e maduro. Agora mal conseguia se levantar sozinho. A pele estava pálida, apesar do rosto corado pelo álcool. Até o cabelo estava sem o penteado arrumado de sempre.
— Vamos embora, você já causou demais pra uma noite — Koto falou, se oferecendo como apoio para ele se firmar sobre as duas pernas.
Suzuki colocou um braço ao redor dos ombros de Koto. Não consegui ver raiva no rosto dele, apesar das palavras. Vi um misto de tristeza com mágoa, e isso me deixou mal.
Dei um passo para o lado e deixei que passassem por mim. Suzuki ainda resmungou alguns xingamentos e chegou a tentar me empurrar quando passou do meu lado, mas Koto o segurou firme e o puxou adiante, quase o arrastando para que a acompanhasse.
Acompanhei os dois se afastando do clube, Koto o segurando enquanto Suzuki gesticulava e tropeçava.
Diabos. Eu tinha uma noção de que algumas pessoas iriam ficar ressentidas comigo pelo que aconteceu, mas não esperava isso de um conhecido.
Na época, é claro que eu sabia que tinha conflitos borbulhando no Makai nas vésperas do torneio. Já era a quarta edição do evento, e as coisas vinham funcionado relativamente bem até então. Uma disputa a cada três anos deixava os demônios focados, dava a eles uma aspiração.
Mas se o torneio deu a eles aspiração, deu também a ilusão de que todo mundo podia ser rei. Ao longo dos anos, antes de tudo ruir, soube de muitos demônios que começaram a se comportar assim, a querer ter suas próprias terras, sua própria fortaleza, seu próprio exército. A se preparar para quando assumissem a liderança de todo o Mundo dos Demônios. Eu me mantinha informado com Hokushin, às vezes com Hiei. Fazia viagens regulares para o Makai. Sabia que aquilo era um caldeirão que um dia iria transbordar. Era apenas uma questão de tempo.
Eu nunca esqueci o que Hiei me disse logo depois da nomeação de Enki como o primeiro grande vencedor.
"Isso foi divertido, mas você é inocente se acha que esse seu torneio vai funcionar pra sempre em manter os youkais satisfeitos."
Ele no fim estava certo. Mas o que me marcou nessa frase foi outra coisa.
Meu torneio. Ele não era meu, mas era assim que as pessoas enxergavam. Por isso, quando os conflitos começaram a surgir durante os preparativos, todo mundo esperava que eu aparecesse por lá, colocasse panos quentes, mandasse seguir o baile e evitasse que a coisa escalasse, como tinha sido da primeira vez. E essa era a ideia.
Mas aquele foi o ano em que eu comecei a me afundar em um luto que parecia que seria eterno, e os problemas do Makai de repente se tornaram algo que eu não conseguia me importar. Eu sabia que as pessoas mais próximas iriam respeitar e entender, mas para muitos demônios, aquilo era só uma desculpa.
E se nem eu mesmo fazia questão de estar lá, por que eles deveriam participar do meu torneio, seguir as minhas regras? Pelo que soube depois, as lutas daquela edição não passaram nem da primeira fase. Todo mundo questionou os resultados, o regulamento, a ordem dos participantes. Daí para a guerra foi um pulo, e depois disso, o mundo veio abaixo.
A guerra fez o Reikai eventualmente voltar com as barreiras entre o Makai e o Ningenkai, como medida de proteção. A relação entre os Mundos Espiritual e dos Demônios azedou completamente e o resto é história.
As coisas poderiam ter sido diferentes? Não sei. Às vezes acho que não, que youkais não conseguem ser pacíficos entre si por muito tempo. Mas às vezes acho sinceramente que sim.
O endereço de Nika não foi difícil de encontrar. Como Koto tinha falado, o apartamento não era muito distante do clube, apenas algumas quadras. Ficava em uma rua secundária, -apertada demais para carros. Do outro lado, um izakaya com bancos na calçada, uma loja de penhores já fechada e mais prédios residenciais, todos muito parecidos um com o outro, sem nada que os destacasse. No máximo, alguns manchados de preto.
O prédio que batia com o número que Koto tinha dado parecia antigo, cinza e sem vida. A pintura verde-musgo da fachada descascava, e a escada que levava da calçada até a portaria estava rachada em partes.
O lugar parecia abandonado. A porta que dava para a portaria estava destrancada, e eu entrei sem problemas. As luzes estavam acessas, mas fracas. Um barulho pequeno de vozes e música vinha dos fundos do corredor, e eu segui até lá. O som foi ficando mais alto, até chegar em um quartinho, onde havia alguém sentado em um banco de madeira assistindo algum programa de comédia na tv. Era um youkai também — a população da Cidade Alta era quase toda de demônios. Mal se virou quando eu cheguei. Expliquei quem eu era e o que estava fazendo ali, mas ele pareceu não se importar muito.
— O apartamento dela já foi alugado, e já levaram tudo. Mas sobraram coisas numa caixa, que ninguém jogou fora ainda. Se quiser levar a caixa daqui, vai estar me fazendo um favor.
Eu concordei. Nika tinha morrido uma semana atrás, e aquela caixa provavelmente era tudo que eu teria. Com sorte, teria algo aproveitável por lá.
O zelador se levantou, abriu um armário e empurrou várias coisas do lugar — luminárias quebradas, uma máquina de arroz, um balde com um esfregão — até achar uma caixa de papelão não muito grande. Estava amassada, um pouco rasgada nas pontas, com o número do apartamento de Nika escrito com um marcador preto na lateral. Ele empurrou a caixa para as minhas mãos e voltou para seu programa de tv.
Agradeci, mas ele não me respondeu. Eu sai do prédio e, ainda na escada da portaria, larguei a caixa no chão. Sentei no primeiro degrau e puxei meu maço do bolso.
O resto da rua estava calmo, com um ou outro pedestre passando. Acendi o cigarro e abri uma das abas da caixa. Em um primeiro olhar, nada que me chamasse a atenção. Uma caixinha de música vazia, um cachecol surrado, laços de cabelo. Até que vi, no canto quase no fundo, uma caderneta. Tirei da caixa.
Era pequeno, de encadernação simples e uma capa neutra, azul-marinho, sem nada que indicasse do que se tratava. Quando abri para folhear, vi nomes escritos à caneta. Nomes, seguidos de data e horário. Uma lista deles. Alguns com valores monetários na frente.
Uma lista de clientes. Só podia ser isso. Folheei com pressa até achar a última página escrita, procurando a entrada mais recente. Se Koto estivesse certa, teria o nome de alguém listado no dia da morte de Nika.
A folha estava já quase no final do caderno. Fui passando os dedos pelas datas, até chegar na última anotação. Era da semana passada. Três da tarde. Mais nada depois disso. Segui com os olhos para o começo da linha.
— Você só pode estar de brincadeira…
Li e reli mil vezes, mas o nome era o mesmo. O cliente que Nika tinha encontrado algumas horas antes de se matar tinha sido Suzuki.
NOTA:
Apenas para contexto:
Koto era a narradora/juíza do Torneio das Trevas, que depois foi substituída por Juri. As duas, mais Ruka (a "enfermeira" que prende Hiei também durante o torneio), vão ao Mundo dos Humanos depois que as barreiras são retiradas, após o primeiro Torneio do Makai, e ganham um status de celebridades.
Suzuki era também um dos participantes do Torneio, que vira um dos aliados de Kurama e Yusuke durante o arco dos Três Reis
