Entre dois mundos a vida paira como uma estrela,

Entre noite e aurora, sobre a linha do horizonte.

Quão pouco sabemos do que somos! E menos ainda do que podemos ser!

-LordByron, "Don Juan".

O corvo que sobrevoava a região da Fortaleza passou por entre as árvores secas e observou os setes adolescentes. Em frente estava Carlos com a sua máquina que apitava sem parar e Mal andando ao seu lado observando cada detalhe do lugar. Atrás deles, Ben e Evie pareciam ter uma conversava alegre, e por último estava Jay inquieto, que apenas parecia observar o casal em sua frente que não dirigia nem um simples olhar ao outro. Desde que Harry e Allison voltaram de sabe-se lá onde realmente estavam, eles pareciam de certa forma estranhos.

De repente Carlos parou, fazendo os amigos tropeçarem uns no outros. Sua respiração mudou, e ele percebeu Diablo ali em um dos galhos. Entre aquelas árvores estavam degraus para atravessar a imensa ponte e entrar ao castelo.

Diferente do que Carlos ouvira toda a sua infância, o corvo estava vivo, e não petrificado.

Mal deu o primeiro passo, mas voltou quando o corvo fez posição de ataque. Carlos se abaixou, em posição de rendimento, o corvo agiu da mesma forma de quando Mal tentou avançar. Ele deu um passo, ainda agachado e com a cabeça baixa, não ousou olhar para o corvo e sabia perfeitamente que ele não era um gorila para ter resultado que queria demonstrando submissão. O filho de Cruela colocou sua outra mão, a que não segurava a máquina, para trás e sussurrou pedindo algum espelho a Evie. Ela entregou o único que tinha, que recentemente havia roubado de sua mãe. Digamos que seria uma parte de seu real espelho.

De Vil colocou para refletir o verde intenso que fez a luz chegar até o corvo, que se afastou irritado. Logo Carlos correu, subindo os degraus fazendo os descendentes os seguirem até que chegaram à rampa principal da ponte.

As gárgulas nas quais Diablo estava despertaram e começaram a bater suas asas e sobrevoar em volta dos adolescentes enquanto o corvo os imitava aos berros.

- Como isso é possível? - Mal estava irritada com tudo aquilo.

- Não tem magia na ilha - Ben franziu o cenho completamente confuso com tudo aquilo.

- O buraco na barreira - Disse Evie.

- Deve ter trazido a construção de volta à vida ou algo assim, como uma reação química.

Fazia sentido. Não apenas Diablo tinha sido descongelado, mas a Fortaleza também.

As criaturas rosnaram em torno deles, a ponte retumbando embaixo de seus pés. Os olhos aterrorizantes dos grifos brilharam com uma luz verde, iluminando a névoa em volta, até que pareceram se converter em holofotes sobre os quatro intrusos. As gárgulas arquearam suas costas corcundas, quase dobrando de tamanho.

Evie estava certa, pensou Carlos. Eram criaturas muito feias, com dentes podres e línguas bifurcadas. Ele não conseguia desviar o olhar das faces medonhas que pairavam sobre ele.

- Isso deve ser um traço que restou dos anos mágicos - Disse o garoto. - Seja lá o que tenha feito isso, provavelmente é o mesmo poder que trouxe Diablo de volta à vida.

- O mesmo poder? - Mal estava confusa. - Você quer dizer o poder da minha mãe?

- Ou a mesma onda eletromagnética - Carlos se lembrou da última aula de ciência maluca. - Já não sei mais qual é a diferença.

Allison engoliu em seco quando uma gárgula se abaixou, parecendo que ia atacar Ben a qualquer momento.

- Acho que agora a diferença não importa - Harry engoliu em seco.

- Quem vem lá? - Trovejou a gárgula à direita de Carlos.

- Vocês não podem passar - Anunciou outra à esquerda.

- Ah, é? Quem disse? - Mal deu um passo para trás, assim como o grupo que seguia atrás dele.

Eles olharam uns para os outros, nervosos, sem saber o que fazer em seguida. Eles não faziam ideia de que havia gárgulas vivas na Fortaleza, não esperavam ter que entrar em uma luta. Isso ia ser mais difícil do que eles esperavam, talvez até impossível.

Mas não importava. Mesmo Carlos medroso sabia que agora não tinham como voltar.

- Suas coisas horrendas, saíam da frente! - Disse Mal, gritando atrás dele. Ela fulminou os grifos com o olhar. - Ou eu mesmo vou tirar vocês do meu caminho!

As gárgulas soltaram grunhidos e fizeram caretas, batendo as asas de pedra em ameaça.

- Alguém tem alguma ideia? - Evie estava nervosa.

- Não temos armas ou magia. O que vamos usar para lutar? Além do mais, como vamos derrotar essas coisas feitas de pedra? - Jay falava ainda encarando as gárgulas.

- Tem que haver um jeito - Disse Mal. - Deixem-nos passar! - Mal gritou novamente. - Temos permissão!

- É, não sei se está funcionando - Suspirou Evie.

As gárgulas encararam os adolescentes com seus olhos cintilantes, suas presas ao vento.

- Vocês não podem passar - Disseram novamente em uníssono, e assim que as criaturas falaram, as nuvens cinzentas e pesadas que cercavam a longa rampa de pedra rufando no vento. - Você não podem passar - Disseram novamente em uníssono e, assim que as criaturas falaram, as nuvens cinzentas e pesadas que cercavam a longa rampa de pedra se dissiparam, revelando um vão na ponte, um abismo de 12 metros com nada abaixo dele, apenas ar.

A ponte estava quebrava, e eles não podiam passar.

- Que ótimo - Disse Allison. - Então já era. Beleza. Fim. Podemos ir agora? Os outros a fitaram.

Evie precisava admitir que Allison provavelmente estava certo.

Não havia modo aparente de chegar ao castelo. Eles vieram até aqui e falharam. Mesmo se passassem pelas gárgulas, não havia como cruzar a ponte, pois não havia ponte. Não havia esperança. A jornada tinha acabado antes mesmo de começar.

Carlos deu um passo para trás e percebeu algo entalhado nas pedras no pé da ponte. Então se sentou para ler.

- O que é isso? - Perguntou Mal, ajoelhando-se ao lado dele.

Carlos limpou a sujeira e o musgo para revelar uma frase entalhada na pedra:Aquele que quiser atravessar a ponte deve merecer o direito ao caminho.

- Ótimo. Então o que é isso? Uma dica? - Mal olhou para os outros. - O que significa? Como vamos merecer o direito de caminhar?

Ben balançou a cabeça enquanto olhava novamente para as gárgulas e para a ponte quebrada.

- Não sei, Mal. Parece que não merecemos nada.

- E, tecnicamente, não vamos atravessar - Disse Allie.

Harry franziu o cenho.

- Acho melhor a gente ir. Talvez esteja assim há anos. Talvez agora ninguém entre ou saia.

- Não. Essas palavras devem significar alguma coisa, mas é uma charada ou um aviso? - Perguntou Mal. Ela observou o vão na ponte e passou pelos outros, chegando à beirada. A filha de Malévola estava determinada a descobrir.

- O que você está fazendo? - Gritou Carlos. - Mal, espera. Não está pensando direito.

Mas ela não podia esperar, e não parou. Ele deu um passo para trás.

- Vá atrás dela - Disse Carlos, olhando para os adolescentes atrás de si - Puxe-a antes que ela caia. Isso é maluquice.

Evie e Allison avançaram, e Jay segurou ambas pelo braço, por que no fim das contas, ambas acabariam brigando e alguém seria jogado da ponte. O herdeiro de Jafar estava sem paciência pra isso e com sua mente ainda no corvo. Harry empurrou Ben, fazendo o monarca ir até a garota.

- É tão triste - Disse Evie. - Depois de vir até aqui...

- Eu sei. Mas metade de uma ponte não é ponte nenhuma - Resmungou Carlos.

Ele acomodou sua máquina no chão e a desligou para não ter que ouvi-la apitar. O barulho do sensor soou. Mais uma prova do quanto estavam perto de encontrar a fonte de energia.

- Só deixava as coisas piores - Completou.

No momento em que Carlos desligou a máquina, o brilho nos olhos das gárgulas sumiu. O fulgor verde e misterioso deu lugar a olhos de pedra negra.

- Perai... Você... - Mal o encarou. Carlos mal podia acreditar.

- Desliguei os monstros? Acho que sim... - Ele chamou Mal, que estava à frente de Ben, a apenas alguns metros do buraco na rampa de pedra. - Eles são como grandes campainhas, Mal. Quando tentamos passar, eles ligam. Quando vamos embora, desligam.

- Então eles são só mais um mecanismo de defesa? - Ben não parecia estar convencido.

- Talvez. - Carlos estudou a ponte. - Tudo é possível. Ao menos é o que estou começando a achar.

Mal voltou correndo.

- Então talvez isso seja só um teste. Veja - disse ela, se aproximando das gárgulas, seus olhos brilhando novamente - Façam suas perguntas! - gritou ela para os guardiões da ponte. - Deixem-nos merecer o direito ao caminho.

Mas as gárgulas não responderam.

- Talvez não esteja fazendo do jeito certo - Disse Evie.

- Talvez seja só uma perda de tempo - Suspirou Jay.

- Não, não é - disse Mal, quase suplicando. - Esse é o castelo da minha mãe. Nós o encontramos, e tem que haver um jeito de entrar. Leiam a inscrição na pedra. Tem que ser algum tipo de teste.

Jay elevou a voz.

- Carlos disse que eles são como uma campainha. Mas e se não for isso? E se eles forem como um alarme de casa? Só precisaríamos achar o código para desativá-lo. - Ele escolheu os ombros. - Bem, é o que eu faria se estivesse tentando entrar.

De todos ali, ele é quem saberia disso, pensou Carlos.

- Então qual é o código? - Mal se voltou para as gárgulas com um olhar furioso. - Digam, suas idiotas!

Ela se preparou, endireitando a postura e falando com uma voz que Carlos conhecia muito bem. Era como Cruela falava com ele, e como Malévola falava com seus capangas da sacada. Ele estava impressionado. Nunca tinha visto Mal tão parecida com sua mãe como agora.

Mal não perguntou às gárgulas, ela ordenou.

- Este é o castelo da minha mãe, e vocês são escravas dela. Vão fazer o que eu mando. DIGAM O ENIGMA E DEIXEM NOS PASSAR! - Ordenou ela, como se estivesse em casa, de verdade, pela primeira vez.

Como todos podiam notar, ela estava mesmo.

Um momento se passou.

As brumas fizeram uma espiral, ao fundo, corvos grasnaram, e uma luz verde pulsou nas janelas distantes do castelo.

-Carlossssssssss- as gárgulas sibilaram em um uníssono perturbador e arrepiante.- Cheguemaissssssssperto.

Ao ouvir seu nome, o garoto deu um passo à frente. Parecia apavorado.

- Por que eu?

- Talvez porque você tenha pisado nos degraus primeiro. E o alarme sintonizou no modo Carlos. - Jay coçou a cabeça. - Melhor você que eu, cara.

- Então o corvo estava tentando nos alertar - Ben falou pensativo.

- Ele pode ainda estar aqui - Harry sussurrou olhando em volta de uma maneira nem um pouco disfarçado, recebendo uma cotovelada de Evie.

- Dane-se. Hora se descobrir o código - Mal assentiu. - Você consegue, Carlos. As gárgulas começaram a sibilar novamente.

-Carlossss.

O garoto respirou fundo. Era igual à escola, pensou. Ele gostava da escola. Gostava se responder a perguntas que tinham respostas, certo? Isso era só mais uma resposta.

Ele deu outro passo e simplesmente caiu. Ouvindo seu nome sair em forma de grito da boca dos amigos.

Ele foi caindo, caindo e caindo.

Atravessando um mar de escuridão e caindo num lago, a água não chegava a ser suja, parecia brilhante, um lago cristalino como se aquele tivesse conexão com Auradon, um lugar mágico, não?

Carlos não sabia nadar, ninguém nunca o ensinou. Se lembrou da vez que Mal e Jay o jogaram no mar da Bahia dos piratas e uma garota o ajudou, mergulhou no mar o tirando de lá antes que pudesse ficar inconscientemente, mas isso nem importava tanto assim, ele nem sequer lembrava o nome da garota.

Por mais que ele estivesse afundando como se aquilo não tivesse fim, ele não se sentia sufocando, como se respirasse o verdadeiro ar pesado da ilha, mas seu corpo doía por inteiro e aquilo passou a incomodar.

"Mancha de tinta na neve."

Uma vez vinha ao longe, ele não conseguia se mexer, quando a água começou a incomodar os olhos, ele o fechou.

"Ou vermelho, áspero e suave."

Ele prestava atenção no enigma.

"Preto e molhado, quente e rápido."

Afinal, ele era o filho de Cruela De Vil, ele era Carlos De Vil, não poderia falhar nesse enigma.

"Amado e perdido - O que eu sou?"

- Oque eu sou? - pensou Carlos. Sua mão estava quente, parecia suar mesmo em baixo da água. Estava cheio de ansiedade. Sua mente estava a mil.

A tinta é preta. A neve é branca. O que é vermelho e áspero? Um bife? Quem ama bife? De qualquer forma, faz tempo que não comemos isso. E o que tudo isso tem a ver comigo?

- Responda! - Parecia a voz de Mal, ordenando.

Carlos travou a garganta, como se sua boca estivesse secado, sem saliva alguma.

Preto. Branco. Manchas. Vermelho. Amado. Perdido.

Talvez ele soubesse da resposta, uma imensa bolha parecia cobrir a sua cabeça e ele sentiu o ar para falar, mas ainda não ousou abrir os olhos.

- Os cachorrinhos. Os cachorrinhos da minha mãe, os dálmatas. Todos os 101 deles. Amados e perdidos por ela. Embora eu ache que a parte do amor é questionável.

Silêncio.

- Tenho que dizer os nomes? Porque eu juro que consigo dizer, cada um deles. - Ele tomou fôlego pela primeira vez alo. - Pongo. Perdita. Patch. Pingo. Roliço. Poly. Freckles. Pepper... - Quando ele terminou de falar, o mar pareceu congelar ao seu redor. Carlos soltou seu último suspiro antes da bolha estourar.

Não havia funcionado.

- PRÓXIMO ENIGMA! - E novamente a voz de Mal se fez presente.

Ele precisava se apressar.

- Carlosssss. Próxima quessssstão. Ele esperou.

"Como uma rosa em uma nevasca

Floresce como um corte

Um borrão vermelho

Seu beijo é a morte."

As gárgulas sibilaram em outro uníssono misterioso, virando-se para encará-los, mostrando as garras. Seus músculos flexionaram e seus rabos estalaram, suas línguas bifurcadas alisando as presas. Tudo indicava que elas iam atacar a qualquer momento. Ele abriu os olhos e se desesperou, pareceu estar se afogando, começou a se debater, fazendo suas mãos e pés bater com força no gelo em sua volta, por pouco não chegou onde estava.

- Seu beijo é a morte - Falou assim que a bolha voltou, o deixando mais calmo. - Tem que ser sobre minha mãe. Essa é a resposta? Cruela De Vil? O mar se agitou.

Resposta incorreta.

- Mas é sobre sua mãe! - Era a voz de Evie. - Uma rosa em uma nevasca, floresce como um corte... o beijo... É a cor do batom dela! O tom de vermelho que só Cruela usa?

Carlos estava surpreso.

- É?

- Um borrão vermelho, viu só? É algo que ela usa. Ah, já sei o que é! - disse Evie. - A resposta é Cerejas da Neve! Tem que ser isso. Quer dizer, julgando pelo que tem aparecido nas barcas de lixo.

Ele pareceu ver Mal revirar os olhos.

- Não acredito que você sabe isso.

O mar o puxou mais para o fundo.

Evie praguejou.

- Não é Cerejas da Neve? Eu poderia jurar que era isso o vermelho com um tom rosa. Não, espere! Espere, não era um tom rosa, era mais escuro. Mais vermelho. Um "vermelho real", como as revistas estão chamando? Geada e Chama? Não... Fogo e Gelo! É isso! A cor dos lábios de Cruela é Fogo e Gelo! Carlos se sentiu flutuar, como se subisse novamente para a superfície. Mais uma resposta correta e ele se veria livre por completo.

- O próximo enigma! - Ordenou Mal.

As gárgulas pareciam cheias de astúcia.

- Carlosssss. Última quessssstão.

Ele abriu os olhos, atento.

Lá vai, pela última vez.

"Obscuro é seu coração

Negro como o céu acima

Digam-nos, jovens aventureiros

- Qual é o seu amor verdadeiro?"

As criaturas sibilaram mais uma vez em uníssono, e assim que terminar de falar, Carlos pareceu vê-las andarem em direção aos amigos, os dentes brilhando, as garras para cima e as asas batendo. As gárgulas dilacerariam todos eles se Carlos desse a resposta errada. Era óbvio.

O filho de Cruela tinha que acertar, não apenas para cruzarem a ponte, mas agora a sua vida parecia depender disso.

Carlos não conseguia pensar. Estava assustado demais. Não conseguia nem montar uma frase. E estava com mais medo ainda do que a respostaseria.

Talvez fosse por isso que não tinha acertado dessa vez.

Não aguento dizer isso em voz alta. A voz de Ben ecoou.

- CARLOS! QUAL É O VERDADEIRO AMOR DA SUA MÃE?

Ele precisava dizer.

Ele sabia disso quase que desde sempre.

Às vezes, como na última tarde com ela por perto, ele pensava que ela estivesse falando dele, mas ele sabia que não.

Elanuncaestava falando dele.

Nenhuma vez. Nunca.

Carlos abriu os olhos. Ele tinha que dizer, e precisava ser agora.

- AS PELES DELA! AS PELES SÃO O AMOR VERDEIRO DA CRUELA! - Gritou ele. Ela falava isso o tempo todo. Ela tinha dito isso em voz alta. - Minha mãe só se importa com aquele closet idiota de peles e tudo que tem dentro. Mas vocês já sabem disso.

Era a verdade, e como toda verdade, era poderosa.

Em um piscar de olhos, ele pareceu ser cuspido pelo mar e caiu de costas na ponte que agora tinha a passagem aberta.

Ele estava a salvo por enquanto.

- Bom trabalho - Disse Mal, respirando fundo. - Muito bem, e agora... Para onde vamos?

Carlos se sentou, ainda tremendo, olhou para a caixa que agora apitava mais uma vez, ele pegou das mãos de Ben.

- Por ali. - Olhou para o lado oposto do que entraram, tentando manter a calma com o carinho de Evie em seus cabelos.

Tudo parecia indicar que aquela jornada seria mais questionável do que ele poderia supor.