Às vezes somos menos infelizes em sermos enganados por aqueles que amamos que em ouvirmos deles a verdade.

— François La Rochefoucald, "Maxims".

Evie achou que seu coração nunca mais ia parar de bater tão forte. Ela ainda conseguia sentir o gosto da areia da caverna que pareceu explodir sobre todo o corpo. Então era assim a maldade verdadeira: como areia na boca e gárgulas prontas para atacar. Se era esse tipo de coisa que a magia fazia, ela estava feliz por existir uma barreira.

Além do mais, confusão toda deixou ainda mais exausta, sentia suas pálpebras pesadas e sua pernas quase falhas. Evie tentou não pensar nisso, já que parar já não era uma opção.

Ben balançou a cabeça. Já era a segunda ou terceira vez que a Fortaleza Proibida tinha tirado vantagem deles. Será que Malévola sabia que estava colocando a própria filha em uma armadilha? Se sim, será que ela se importava? Provavelmente não. Ela era a temida e odiada Senhora das trevas, afinal de contas.

Os pensamentos de Evie voltaram a uma certa despeita a 10 anos atrás, a Rainha Má foi uma tola por achar que poderia competir com alguém assim, e Evie praticamente se sentiu uma idiota por imaginar que seria viável entrar em qualquer disputa com a cria da Senhora das Trevas.

Agora que tinha pensado nisso, Evie quase se sentiu mal pela filha da Malévola.

Quase.

A máquina de Carlos apitou de novo.

Os seis caminharam pelo castelo arruinado. Morcegos faziam ruídos e se agitavam sobre suas cabeças, e o chão de mármore rachado parecia se dobrar para argumentar o peso deles.

Evie tropeçou.

— O que há com este lugar? Será que tem uma falha tectônica sob a ilha?

— Bem... – Carlos começou.

— Esquece. Era uma piada – resmungou Evie.

Porém, não havia nada de muito engraçado naquela situação. Era um milagre que o oceano em volta não tivesse engolido a fortaleza e a montanha. Evie pode ouvir passos e chiados de ratos por trás das paredes e se arrepiou toda.

Até os ratos estavam procurando um lugar seguro, pensou.

— Por aqui – disse Carlos, indicando uma passagem estreita à sua frente.

Eles o seguiam, em fila. A máquina apitava, o som aumentando cada vez mais.

— Agora por aqui – disse ele, virando-se para um lado, depois para o outro.

Evie ia bem atrás dele, e a passagem estava ficando mais estreita.

— O que está acontecendo? – perguntou Evie. — Conheço meu tamanho... não dobrei de largura nos últimos dois minutos!

De fato, a passagem havia encolhido para o tamanho de seu ombro. Se ficasse mais estreita, ela teria que se virar de lado. Ela engoliu em seco. Seu estômago começou a doer. Era como se o corredor tivesse se convertido numa fenda que iria se fechar sobre eles a qualquer momento.

Mal levantou a voz.

— É só minha imaginação, ou estamos presos no castelo como...

— Um pedaço de corda passando por um cano? Pasta de dente dentro de um canudinho? Um pedacinho de unha encravado na cutícula, como este aqui? – disse Jay, mostrando a mão. — Ai, este está doendo.

— Você está descrevendo as coisas que roubou hoje? Porque essas comparações são péssimas – disse Harry.

— Talvez seja melhor a gente voltar – disse Ben. — A não ser... acho que estamos presos! – Na mesma hora, as paredes tremeram, o castelo balançou e uma lasca de pedra despencou no chão. Era grande o suficiente para fazer estrago, e passou raspando pelo nariz perfeitinho de Evie.

Ela começou a chorar. Evie queria voltar, mas não conseguia, pois o corredor era muito estreito.

— Talvez seja alguma armadilha! Vamos, aqui não é seguro!

— Não! – disse Carlos. — Olhem! Tem outra passagem acrescentou, movendo-se até conseguir colocar um lado do quadril e depois o outro para fora do corredor estreito, esgueirando-se para um mais amplo.

Evie, Jay, Ben, Harry, Allison e Mal o seguiram, e Evie ficou tão aliviado que nem se lembrou se reclamar de seu nariz.

A nova passagem virava para a direita e depois para a esquerda. As paredes ficavam mais afastadas, mas estavam estranhamente inclinadas, umas para fora, outras para dentro. O feito era estonteante, pois até o teto estava envergado em alguns pontos, e os corredores continuavam se abrindo em duas e, às vezes, até em três direções.

E, como sempre, o som retumbante continuava atrás deles.

— Alguém não gosta da gente – disse Jay.

— Nós não devíamos estar aqui – afirmou Evie.

— Temos que nos apressar – disse Ben, tentando soar calmo, embora fosse o mais assustado de todos eles.

Outra pedra se soltou da parede e se espatifou ao atingir o chão, quase acertando a cabeça de Evie. Ela pulou para trás dessa vez, tremendo de medo.

— Que lugar é este?!

— Estamos em algum tipo de labirinto – disse Mal, pensando alto. — É por isso que os corredores são cheios de curvas e as passagens se dividem e ficam mais estreitas. É algum labirinto retorcido, e estamos presos nele.

— Não, não estamos. Ainda temos a caixa – replicou Carlos! — É a única coisa que nos impede de nos perdemos aqui. – A máquina ainda apitava, e eles continuavam a segui-lo.

Evie esperava que Carlos estivesse certo e que soubesse para onde estava indo. E ele devia saber, pois os corredores logo começaram a dar lugar a espaços mais abertos, e todos puderam respirar aliviados.

Mesmo quando os trechos eram longos e retos, o castelo continuava estremecendo, e as paredes, se curvando. O teto era mais baixo agora onde eles estavam.

— Não é aleatório – disse Carlos de repente — Tem um ritmo.

— É verdade – disse Jay. — Vejam só. O ruído do castelo parece acompanhar sua caixa. Quando ela apita, dá a impressão de que as paredes se mexem.

Ben prestou atenção.

— É a Fortaleza que está fazendo isso?

Carlos fez que não com a cabeça. — Na verdade, acho que são as ondas eletromagnéticas. Imaginem o quanto este castelo deve ser antigo. E se, a cada vez que uma onda bate na montanha, uma pedra cai ou o chão estremece?

Mal engoliu em seco.

— Eu só espero que o castelo inteiro não desabe antes de a gente encontrar o cetro.

Evie se abaixou para não bater a cabeça no teto. Todos eles, exceto Carlos, tinham que se agachar.

— É uma sala feita para ratinhos – disse Allison.

— Ou anões? – perguntou Evie.

— Ou criança? – chutou Jay.

— Não – disse Carlos, silenciando os outros e apontando com a cabeça para algo mais à frente na escuridão.

Eles seguiam a indicação, vendo primeiro um par de olhos azuis brilhantes, e depois outro, e mais outro.

— Duendes – Carlos continuou. — É aqui que os duendes moram. É por isso que o teto é tão baixo e os corredores são estranhos. Aqui não é lugar para humanos. — Quando ele terminou de falar, o ar se encheu de uma risada terrível e áspera, o som de garras batendo e dentes cerrando. A caixa os havia levado direto para o covil dos duendes.

— Bacana – disse Mal.

— É, bom trabalho – ironizou Jay.

E aqueles não eram duendes do tipo amigável e trabalhador do cais, ou como os rudes da loja Enoja. Eram criaturas terríveis que viveram na escuridão sem sua senhora por 20 anos. Famintos e horrendos.

— O que a gente vai fazer? – perguntou Jay, se escondendo atrás de Carlos, que havia encostado na parede do corredor.

— A gente vai correr – gritaram juntos Evie e Allison.

Eles correram pela única passagem, com a onda de duendes guinchando na escuridão, seguindo atrás deles com suas lanças raspando as paredes.

— Acho que eles não recebem muitas visitas – gritou Harry.

— Talvez eles devessem parar de devorar os convidados – disse Ben, quase tropeçando em algo que ele esperava não ser um osso.

— Ali! – disse Evie, apontando para uma pesada porta de madeira. — Todos para dentro!

Eles passaram pela porta, e Evie a fechou atrás deles, colocando a tranca e deixando os duendes do outro lado.

— Essa foi por pouco – disse Mal.

— Muito pouco – respondeu Jay. Ainda dava para ouvir os duendes do outro lado, resmungando e cutucando a porta com suas lanças.

— Talvez eles gostem só de assustar as pessoas – disse Allie. — Quer dizer que são praticamente inofensivo.

— É, praticamente – disse Ben, assoprando a mão que uma lança quase atingiu. — Não vamos esperar para descobrir.

Quando pareceu que os duendes tinham ido embora, Evie abriu a porta devagar. Ela se certificou de que eles estavam sozinhos e fez sinal para Carlos. Eles seguiram pelos corredores estreitos passando por câmeras vazias, até que ela viu uma luz brilhando em um corredor.

— Aqui!

Ela andou em direção à luz, empolgada, pensando que poderia ser o Olho de Dragão reluzindo no escuro.

E então, ela parou – estava diante de um espelho.

Um espelho escuro, manchado e quebrado, mas, ainda assim, um espelho.

Evie se sentiu tonta, os olhos fixo no espelho e no reflexo que ele refletia. Um mal estar tomou conta do seu corpo, Mal conseguia se mexer e nem desviar a atenção do espelho.

Evie sentiu como se a pouca claridade tivesse deixado de existir e não viu mais nada. Desmaiou e foi pega por Bem, e logo os amigos chegaram, Harry praticamente tomou a princesa do colo de Ben.

— O que aconteceu? – perguntou Mal, virou para observar o espelho, mas nada viu, apenas uma sensação estranha e agoniante lhe tomou conta. — Estão sentindo?

— O quê? – O restante dissera quase em uníssono.

— Não sei, não há como explicar, como se fosse uma-

— Magia negra – completou Ben.

Evie acordou, os batimentos cardíacos acelerados e de início era só borrão, até que os amigos foram ganhando forma.

Harry a abraçava, fazendo-a perder mais ar. Ben tocou seu rosto de maneira delicada.

— Você está bem? – perguntou o príncipe herdeiro.

Ela abriu os olhos. Mais atenta.

A herdeira da Rainha Má se levantou com a ajuda do Tremaine, ainda sem dizer algo, ela encostou a ponta dos dedos no espelho e não pareceu surpreendida, diferente dos amigos, quando a sua mão atravessou o espelho.

— O que é isso? – perguntou Mal, se aproximando da garota.

— Um monstro! – a de cabelo azul encarou a filha da Malévola que estava atrás dela.

Os amigos se colidiram logo atrás.

— Uma aberração! – disse Evie voltada ao espelho. — Uma criatura horrenda!

No espelho, uma velha de nariz retorcido usando uma capa preta apontava de volta.

A bruxa era ela.

— O que aconteceu comigo? – perguntou ela com a voz áspera e embargada. E o pior: quando ela olhou para si mesma, viu que sua pele, outrora macia estava flácida, enrugada e cheia de marcas. Ela observou seu cabelo, branco e ralo. Ela era uma bruxa velha, não apenas no espelho.

E ela era a única a estar assim.

Mal olhava o reflexo de Evie no espelho.

— Encantador. Deve ser algum tipo de feitiço.

Jay balançou a cabeça.

— Porém, e de novo, vamos dizer todos juntos desta vez... não há magia na Ilha.

— Houve um momento, por um breve segundo, em que minha máquina fez um buraco na barreira, e talvez tenha feito isso.

— Isso o quê, exatamente? – perguntou Harry, assustado.

— Trouxe Diablo de volta à vida, fez a Olho de Dragão brilhar, assim como ressuscitou as gárgulas e a Caverna das Maravilhas, e provavelmente tudo que era mágico nesta fortaleza – disse Mal. — Quer dizer, talvez. Ou não. Provavelmente.

Evie não conseguia olhar para si mesma por nem mais um segundo.

Ela começou a entrar em pânico. Estava sufocando. Ela não podia fica daquele jeito! Ela era linda! Ela era...

— A mais bela – concordou o espelho.

— A voz de novo não! – chorou Evie, antes de perceber o que exatamente havia escutado. Porque dessa vez não era sua mãe fazendo a voz de espelho, como era de costume.

Era o Espelho Mágico de verdade.

Todos eles se viraram para o espelho. Suas feições distorcidas pareciam uma presença fantasmagórica na superfície reflexiva.

A mais bela és, e assim serás novamente

Vai, garota esperta, minha amiga

Os ingredientes necessários

Para a poção do disfarce de mendiga.

Foi o que disse o Espelho Mágico.

— É uma charada! – disse Carlos, contente. Ele adorava charadas.

— Não, não é. É um feitiço – disse Jay, olhando para o garoto como se ele fosse louco.

— Eu sabia! – disse Mal.

— O que é disfarce de mendiga? – perguntou Allison.

— Obviamente é isso. O que aconteceu comigo – Evie parecia decepcionada consigo mesmo.

— Evie, você sabe o que precisa para fazer um disfarce de mendiga? Se a gente conseguir disser todos os ingredientes, podemos reverter o feitiço — Mal falou.

— A gente, não. – Harry apontou. — Evie. Ele disse: a mais bela. – Ele olhou sem graça para Mal e Allison. — Desculpe...

Ben riu e abraçou Mal, sussurrou algo em seu ouvido que fez a garota gargalhar.

— Não tem nada de belo em mim agora... – disse Evie com os pensamentos longe. — Mas eu já ouvi falar do disfarce de mendiga. – Seus olhos voltaram a fitar o espelho, ainda chocada com o seu terrível reflexo e aparência.

Evie sentiu o suave toque de Mal em suas mãos, se virou para a garota e sorriu timidamente.

— É claro que sim. É o feitiço mais famoso da sua mãe! Lembra? Quando ela enganou Branca de Neve para comer a maçã? – disse Allison, impaciente.

— Não me pressione! Está me fazendo entrar em pânico. É que, tipo, eu conheço o feitiço, mas não consegui pensar em mais nada além dela – Evie apontou para seu reflexo. — Estou paralisada.

Evie começou a chorar.

— Allison! Não está ajudando – disse Mal, cerrando os dentes.

Evie chorou mais ainda.

Harry foi até Evie e a abraçou por trás.

— O que você vê no espelho? – sussurrou de maneira calma.

— Um monstro! – disse ela. — Uma aberração! Uma criatura horrenda! Uma velha de nariz retorcido usando uma capa preta.

— Sabe o que eu vejo? – Ele disse baixinho perto do ouvido da garota — Uma linda garota: inteligente, harmoniosa, engraçada, boa, animada, uma garota incrível e perfeita pelo seu jeito natural de ser. Não vai ser esse simples feitiço velho que irá tirar o seu brilho – Evie sorriu completamente corada.

— Evie, vamos lá. Não deixe a fortaleza de Malévola atingi-la – disse Allison, soando compassiva sobre aquele problema de um jeito que Evie nunca tinha visto ela sendo sobre nenhum assunto.

— É isso que a Malévola faz. Ela encontra sua fraqueza e fica cutucando, uma por uma. Acham que foi um acidente a gente ter encontrado o Espelho Mágico, justamente quando temos A Mais Bela conosco? – Mal alertou.

— Acha que é de proposito? – Evie parecia mais calma e um pouco curiosa.

— Acho que é um teste, assim como todas as coisas neste lugar. Como Carlos com as gárgulas e Jay com a Boca. Todos os seus pais colocam muita expectativa em cada um, não é atoa que a Fortaleza está trabalhando nossos ponto fraco. – Allison afirmou a dúvida.

— Certo – disse Evie devagar, assentindo. – Acha mesmo que eu consigo?

— Você sabe que sim, sua fracassada. Quer dizer, a mais bela fracassada. – Mal soltou uma risadinha.

Evie riu de volta.

Certo, talvez ela pudesse fazer aquilo.

— Estudei aquele feitiço umas mil vezes no livro da minha mãe.

— É isso aí. É claro que vai conseguir. É um clássico – disse Jay.

— Um clássico – disse Evie para si mesma. — Foi assim que eu chamei.

Ela seria capaz?

Evie encarou seu reflexo velho e feio bem nos olhos.

— Pó mágico para envelhecer! – disse ela.

De repente, suas rugas desapareceram.

Evie sorriu.

— O meu abrigo será o manto da noite!

Em um lampejo, ela estava usando suas roupas normais de novo.

— Para envelhecer minha voz, o riso de uma bruxa! – disse ela. E, mal terminou a frase, sua voz voltou ao normal, jovem e melodiosa novamente.

— Para branquear meus cabelos, um grito de horror! – disse Evie, observando seu cabelo voltar a seu tom azul, escuro e bonito.

Evie já estava quase acabando, sua voz ganhou confiança ao lembrar das últimas palavras do encantamento.

— O vendaval aviva meu ódio, relâmpago para misturar, agora termina o seu sortilégio!

Os setes jovens comemoraram e gritaram, pulando como idiotas malucos. Até Evie estava rindo.

Evie nunca ficou tão feliz ao se ver no espelho e, agora que tinha voltado a ser ela mesma, percebeu que, por uma vez na vida, ninguém se importava com sua aparência. Nem mesmo ela.

Era como magia.

O espelho ficou com o reflexo completamente negro e um "Entre" apareceu escrito. Os adolescentes engoliram em seco e um por um foi entrando.

Evie, Harry, Carlos, Jay, Mal e Ben, Allison suspirou fundo antes de ser a última a entrar.

Tão inesperado como havia sido o desmaio e a magia repentina com Evie, o boneco vodu do Mestre das Sombras: Doutor Facilier, se fez presente em meio ao espelho.