Reino Unido, 1980
Alicia estava a caminho do quarto onde Saori dorimiria na casa, um quarto que ela mesma arrumou poucas horas antes, e também um lugar onde ela jamais entrou antes para fazer algo além de limpar.
— Alicia.
— Sim, senhora Blake?
— Comporte-se direito, heim. Não vai passar vergonha na frente dele. Não faça besteira.
— Sim, senhora.
— Você deu muita sorte hoje.
— Entendo. Com licença.
Alicia se sentia mal toda vez que a senhora Blake a lembrava que ela não estava a altura das pessoas naquela casa. Sentia vergonha e um pouco de medo do que seria uma provável noite desastrosa com Saori Kido.
Mesmo assim, respirou fundo, tentou se acalmar, e abriu a porta do quarto da menina.
— Alicia! Você veio mesmo! Eu fiquei tão feliz quando o vovô falou — os olhos dela brilhavam.
— Ah, sim, senhorita Kido. Aliás, queria me desculpar por não ter te reconhecido lá fora.
— Não precisa pedir desculpas! Eu gostei! Preferia que você não tivesse descoberto…
— Por quê?
— Porque ficam todos em cima de mim! É muito chato! Eu queria um pouco de emoção longe deles!
— Entendi — Alicia se retraiu e olhou para o lado — Eu achei que fosse uma pessoa de fora porque… bem… a senhorita não tem muita cara de japonesa… quer dizer, é claro que você, mas é que…
— Eu sei — Saori respondeu de forma enfática.
— Ah, err, eu não quero ofender, é que…
— Eu não sou burra. É óbvio que a minha aparência é diferente da maioria dos japoneses… — Saori parou de falar. Olhou para os lados. Deu um suspiro. E continuou — O vovô disse que eu nasci na Grécia, de uma filha dele que nasceu lá também, mas ela morreu no parto…
— Nossa… que triste, sinto muito. Mas, acho que agora faz sentido.
— Faz sentido. O problema é que ignoram.
— Ignoram o quê?
— Ninguém nunca fala nada. Como se eles não percebessem. Os empregados, os amigos do vovô, os funcionários da Fundação… você é a primeira pessoa que me fala que eu não pareço japonesa.
— Desculpa…
Saori meneou a cabeça levemente e sorriu para ela.
— Não… demonstra que você é sincera. É por isso que eu gostei.
— Bom, se a senhorita quiser, amanhã podemos dar a volta no jardim que você não conseguiu hoje… escondidas — Alicia sorriu de volta.
— Sério? Vamos! — Saori ficou radiante com a proposta.
— Ela é realmente linda.
— Alicia, seu pijama é muito bonito!
— Você acha? É um pijama normal.
— A roupa que você tava usando também é linda.
— Ah… obrigada, senhorita Kido.
— Pode me chamar de Saori.
— Senhorita Saori então?
Saori fez uma cara de desgosto.
— É… acho que não se pode ganhar todas… Enfim, vem cá!
— Na sua cama?
— Ué? Tem muito espaço nessa cama!
— É que…
— Vem logo! Vamos conversar e aproveitar antes que o Tatsumi venha dizer que é hora de dormir.
Alicia subiu na cama e por um bom tempo as duas meninas eram apenas crianças em uma noite do pijama.
— Senhorita Kido — a porta se abriu e Tatsumi entrou — O que está acontecendo aqui?
— Naaada, Tatsumi! A gente só estava brincando.
— Seu avô disse que é hora de você dormir, ele já já vem aqui dar boa noite.
— Já?
— Sim. Alicia, por favor, ajude ela a se arrumar e… arrumar esse quarto.
— Sim, senhor.
— Saori — novamente a porta se abriu.
— Vovô!
— Você já está pronta para domir? O Tatsumi disse que o quarto estava um tanto… bagunçado.
— Sim! Eu fui me arrumar no banheiro e a Alicia limpou o quarto todinho nesse meio-tempo!
— Ah é?
— É! Será que ela pode dormir na cama comigo?
— Senhorita Saori?!
— Ah, vai, é muito chato quando eles dormem no meu quarto, mas ficam longe!
Mitsumasa olhou para Alicia de cima a baixo, com um olhar frio e ponderou por alguns momentos.
— Certo. Se ela quiser, tudo bem. Não a obrigue a dormir na sua cama.
— Você quer?! — Saori se virou com uma empolgação e um brilho nos olhos que Alicia talvez nunca tivesse visto antes.
— Eu? Errr… Tem certeza?
— Absoluta!
Alicia estava confusa. As palavras da senhora Blake ecoavam em sua mente enquanto aquela menina risonha a encarava com expectativa.
Não faça besteira
Não vai passar vergonha
Você deu muita sorte hoje
Comporte-se direito.
— Bom… se não tem problema, tudo bem — não existia maneira de conciliar as duas imagens que invadiam sua mente, mas só tinha uma em seu coração.
— Obrigada! — Saori pulou em cima de Alicia e abraçou, em um movimento tão inesperado que a outra ficou sem reação.
— Então deitem as duas, e boa noite para vocês. — assim que Saori se deitou, Mitsumasa a beijou na testa.
— Boa noite, vovô!
— Boa noite, senhor Kido.
Depois que ele saiu, Alicia perguntou:
— Senhorita… lá no Japão tem pessoas que dormem com você no seu quarto?
Em tom mais baixo, envergonhado, Saori respondeu:
— É que… eu ando tendo alguns pesadelos… e o vovô passou a pedir para dormirem comigo. Começou com o Tatsumi, depois as empregadas… e agora os filhos delas.
— Que tipo de pesadelo?
— São só... Pesadelos…
— Hm…
— O vovô não fala nada, mas acho que ele tem a expectativa que eu fique calma assim e as coisas melhorem. Mas, os filhos das empregadas me deixam nervosa.
— Eles fazem alguma coisa com você? Por que não fala pro senhor Kido?
Saori apertou o lençol da cama.
— Eles não gostam de mim.
— Como você sabe? Eles falaram algo ruim para você?
— Eles nunca vão falar nada. Mas eu sei que eles não gostam. Principalmente o Hideki.
— Por que acha isso?
— Pelo jeito deles. A Hikari é a mais legal, acho que ela até gosta de mim, mas ela é bem mais velha, e dá pra ver que faz mais por obrigação. O Takeshi fica assustado, ele tem medo de alguma coisa. O Hideki tem uma aura de raiva… embora…
— Embora…?
— Ah... deixa pra lá. Aconteceu uma coisa uma vez.
— Que tipo de coisa?!
— Não é nada disso! Mas ele foi legal daquela vez… e ficou um pouco diferente desde então.
— …
— Às vezes, eu acho que não queria ser quem sou. Eu sei que o vovô se preocupa, o Tatsumi também… mas… dá pra sentir quando as pessoas fazem só porque não puderam dizer não.
— "Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes".
— Hum?
— É um verso da Bíblia que um amigo sempre fala em momentos difíceis. Ele diz que por mais que mesmo coisas que pareçam sem qualquer sentido podem ter significados que não entendemos.
— Ahhh.
— Você não escolheu nascer quem você é, e não tem culpa das escolhas dos outros. Quem sabe não tem um sentido pra isso?
— Pode ser.
.
.
.
— Alicia.
— Sim, senhorita?
— Obrigada. Acho que eu nunca me diverti como hoje.
— Eu também me diverti.
— Então… boa noite.
— Boa noite, senhorita Saori.
— Alicia.
— Sim, senhora Blake?
— O senhor Kido quer falar com você. Ele está no escritório com o senhor Stewart.
— Comigo? Tá bom.
Alicia subiu as escadas e foi até o escritório. Parou em frente à porta, fechada, e bateu de leve, entrando apenas depois
— Alicia, eu estava conversando com o Stewart e nós achamos que talvez seja melhor você voltar conosco ao Japão.
— Eu?
— Sim. Tenho planos para que você seja acompanhante da Saori. Não é comum que ela se sinta tão à vontade com alguém como ela parece se sentir com você. Mas, para isso, você teria que morar conosco no Japão.
— O que faz uma acompanhante?
— Você vai acompanhar ela em eventos, cuidar da agenda dela, e outras atividades ligadas a secretariado e rotina pessoal. Basicamente, será uma pessoa para ficar ao lado dela ao longo do dia, ajudando-a com diversas tarefas.
— Como herdeira dos Kido, a senhorita Saori será muito atarefada quando for mais velha. Portanto, ela precisará de uma espécie de secretária pessoal. O senhor Kido quer dar uma chance a você, Alicia. Espero que saiba o que isso significa.
Não faça besteira
É por isso que eu gostei
Não vai passar vergonha
Nunca me diverti como hoje
Você deu muita sorte hoje
Será que ela pode dormir na cama comigo?
Demonstra que você é sincera
Comporte-se direito.
— Eu… ahh… não sei se sou capaz de fazer isso tudo, mas… eu gostaria de ir pro Japão.
— Ótimo. Então nós vamos arranjando os documentos até o dia de voltarmos.
— Alicia.
— Sim, senhorita Saori?
— Você não sabe japonês, né?
— Quase nada.
— Mas você sabe falar alguma coisa? Qualquer coisa?
— Coisas básicas.
— Se apresenta em japonês pra mim.
— Tá… Errr, hajimeméshite. Arishia to moushimésu. Igiriesu kará kiméshita. (1)
Saori começou a gargalhar:
— Bom, você também tem um "sotaque diferente". Mas, tudo bem, eu posso te ensinar a falar direitinho!
— Mesmo?
— Sim! Aliás, esse nome, "Alicia", no Japão vai ser difícil.
— Você acha?
— Vamos arranjar um outro nome pra você!
— Quê?! Outro nome?
— É! Você se veste bem! Acho que pode ser "Mii"! (2)
— Mii?
— É! Significa "roupa bonita"! Combina, né?
— Errr… acho que sim?
— Eba! Então agora você vai ser a Mii!
— Tá bom, senhorita Saori.
— Então vem, Mii! Eu vou te ensinar umas coisas durante a viagem que o voo pro Japão é bem longo!
(1) Está tudo errado aqui pra tentar emular o sotaque dela em japonê /
(2) São os kanji do nome Mii (美 é "bonito" e 衣 é "roupa").
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