Ravi Patel conseguia escutar o barulho das teclas da máquina de escrever se misturando com o som das vozes saindo do rádio da sala do seu chefe. Ele já se acostumara com aquilo. Desde que começara a trabalhar para Phineas Black, Patel não se lembrava de um dia em que o jornalista não tirasse pelo menos algumas horas do dia para escutar um pouco da programação trouxa, pois acreditava que a conexão entre os dois mundos era tênue demais para ser ignorada.

A porta estava entreaberta e o rapaz pôde observar que Black estava em meio ao seu caos criativo: além de datilografar, ocasionalmente ele parava para anotar alguma coisa em uma caderneta de capa escura. O que mais espantava o rapaz era saber que, ainda assim, seu chefe conseguia prestar atenção ao que estava sendo dito no rádio.

-Phineas - ele chamou, fazendo com que o homem levantasse o rosto.

Black observou o rapaz por alguns segundos. Patel não tinha mais que vinte e cinco anos, contudo demonstrava um senso de responsabilidade que ultrapassava em muito a sua idade. Exatamente por isso, se tornara o braço direito de Phineas no jornal. Black desconfiava que aquilo se devia a uma gratidão que ele não julgava merecer.

Quando o jovem veio para a entrevista de emprego, parecia um pouco inseguro. Phineas não poderia culpá-lo. Além de ter nascido no seio de uma família trouxa, ele era estrangeiro; os pais viviam na Índia, e conseguiram enviá-lo à Inglaterra para estudar. As convicções políticas do rapaz também não o tornavam atrativo para ser contratado, pois às vezes deixava escapar seu desejo de que a terra natal se tornasse independente da Grã-Bretanha. Contudo, Black nunca se ateve a esses preconceitos; a inteligência e a perspicácia do rapaz o impressionaram, e resolveu contratá-lo.

A verdade era que Phineas juntara ao redor de si muitas pessoas que poderiam ser consideradas como fora do padrão tanto para os bruxos quanto para os trouxas. Todos os seus empregados tinham origem trouxas ou eram mestiços. Não eram muitos, mas faziam diferença.

Além de Ravi, Black podia considerar mais duas pessoas entre os seus empregados como a alma do jornal. Pietro Mateotti, um italiano anarquista que fugiu da Itália com a família por causa do fascismo, responsável pela impressão, e sua principal repórter, Williamina Goldie, que vinha de uma família cujas mulheres tinham uma forte herança sufragista.

Black preferia que fosse assim. Aquelas pessoas tinham fibra necessária para realizar o difícil trabalho que tinham em mãos.

-Em que posso ajudá-lo, Ravi?

-Pepe pediu para dizer que conseguiu consertar a prensa. Parece que era alguma poção colante nas engrenagens, mesmo assim não vai atrasar a impressão do jornal.

Phineas sorriu. O bom e velho Pepe sempre conseguia fazer milagres. Não era a primeira vez que passavam por aquele tipo de situação; era a segunda, só naquele mês, que entravam no jornal e sabotavam o maquinário. Os aurores que estavam investigando o caso pareciam não levar aquilo muito a sério.

Ravi, contudo, não parecia compartilhar do mesmo alívio do patrão.

-Eu não sei se devemos comemorar. Eles estão ficando mais espertos e ousados, conseguiram burlar os mecanismos de segurança que instalamos aqui.

O mais velho passou a mão por entre os cabelos escuros. Ele não podia negar que os artigos e reportagens que publicavam haviam chamado a atenção de pessoas indesejadas. Radicais da pureza bruxa. Com a crescente influência de Grindelwald no Continente, os extremistas britânicos pareciam estar se sentindo mais seguros para expor seus ideais, muitas vezes de forma pouco pacífica. Aquelas sabotagens poderiam ser apenas o começo.

-Tudo bem, Ravi, você tem razão. Willie disse que Goddriac conhece algumas pessoas que poderiam trabalhar como seguranças aqui no jornal.

O indiano finalmente se deixou relaxar, ainda que minimamente. O noivo de Williamina, Goodfellow Goddriac, podia parecer em um primeiro momento um bon vivant irresponsável, mas por baixo daquela pose havia uma pessoa séria e confiável. Se ele arrumaria alguém para cuidar do jornal, eles poderiam se sentir seguros.

-Falando na Willie - Patel se pronunciou - ela mandou um recado. Conseguiu convencer o novo ministro a nos dar uma entrevista exclusiva. O pessoal do Profeta vai se roer.

Black riu. Quando Goldie queria alguma coisa, ela sempre conseguia.

-Espero que Spencer-Moon seja mais incisivo no que diz respeito a Grindelwald como ele prometeu. - Phineas falou, em um tom mais sério - Antevejo tempos bastante sombrios para todos nós, Ravi.

-Alguma novidade na rádio trouxa?

O jornalista meneou a cabeça.

-Hoje não, mas as coisas estão piorando vertiginosamente. Os nazistas estão ganhando terreno. Ano passado foi aquela abominação. Noite dos Cristais... um nome bonito para uma coisa tão hedionda.

Ravi virou o rosto, olhando para o rádio, como se o aparelho pudesse trazer alguma resposta para o futuro deles.

-O ministro trouxa? Ele não está fazendo nada?

-Eu sei que ele tem boas intenções, mas a política de apaziguamento de Chamberlain vai ser nossa cova - o mais velho retrucou com amargura - Não duvido que ele saia do poder da mesma forma que Fawley saiu do nosso governo. O que mais me preocupa é que a comunidade bruxa não percebe que nosso caminho e o dos trouxas estão estritamente ligados. A tempestade que vai cair sobre eles vai nos atingir também com sua fúria.

A expressão de Phineas era pesada e cansada... Havia tanto a se considerar e tão pouco que ele poderia fazer. O abatimento dele não passou despercebido ao mais jovem. Patel efetivamente gostava do chefe quase como a um pai. Phineas foi o primeiro a enxergá-lo realmente como uma pessoa, sem preconceitos ou restrições. Nunca o julgou por sua origem trouxa, por ser estrangeiro, por sua cor de pele ou por suas crenças. Talvez tenha sido o primeiro amigo verdadeiro que tinha em anos.

-Chefe, vai embora para casa. - ele disse - Sua família está te esperando. Eu e Pepe damos conta de cuidar do jornal.

O rosto de Phineas se desanuviou e um brilho perpassou os olhos do jornalista.

-Você tem razão, vou fechar o texto e ir embora. A gente só consegue salvar o mundo um dia de cada vez.


-Mamãe, eu estou cansada. - Marguerith disse, esfregando os olhos.

Rosette deu um suspiro quase inaudível. Passara a tarde inteira no St. Mungus. Betelgeuse estava com uma forte infecção de garganta. Ela trazia a filha adormecida no colo, ao mesmo tempo em que segurava a mão da gêmea caçula.

-Só vamos passar na farmácia para comprar o remédio da Bete e iremos para casa. Só mais um pouquinho, Marge.

A menina assentiu, enquanto chupava o dedo. Queria que a irmã ficasse boa logo para que pudessem voltar a brincar.

Rose entrou com as filhas no estabelecimento, procurando um atendente.

-Com licença - ela chamou.

Um homem de estatura alta, cabelos castanhos e queixo quadrado e proeminente se virou. Ele tinha uma expressão dura e pouco amigável.

-Boa tarde - Rosette continuou, sem se intimidar - Gostaria de comprar este medicamento.

Ela estendeu a receita na direção do atendente. Ele fitou a mão da mulher, impassível.

-Não - ele respondeu, seco.

-Como não? - Rosette questionou, atônita. - Minha filha está doente, eu preciso do remédio.

-Eu sei quem você é, Sra. Black, sei o que seu marido escreve. E nós não vendemos para pessoas como vocês.

A mulher sentiu a raiva querer explodir em seu peito. Ele não poderia fazer isso com ela, era praticamente um crime recusar remédio para uma criança doente.

-O senhor vai me negar isso? Não me importo se não é de bom tom, mas vou aprontar um escândalo se não me vender.

O homem soltou uma risada grave e pesada.

-Pode fazer o que quiser. Em quem acha que vão acreditar? Você é uma mulherzinha amante de sangue-ruins.

-O que o senhor propõe que eu faça?

O atendente sacudiu os ombros com desdém.

-Talvez alguma loja na Travessa do Tranco não se importe de atender escória.

Rosette sentiu o corpo começar a tremer de ódio.

-O senhor está me sugerindo que eu vá com duas crianças pequenas em um dos lugares mais perigosos da cidade?

Antes que o homem respondesse, Rosette sentiu a mãozinha de Marguerith comprimir a sua.

-Mamãe, eu quero ir embora.

Os olhos cheios de temor da filha fizeram com que Rose desistisse daquela discussão. Ela saiu da farmácia a passos duros.

Não demorou muito para que ela e as filhas chegassem em casa. Depois de deixar Betelgeuse na cama, foi preparar o jantar enquanto Marge brincava na sala.

A porta de entrada da casa se abriu, revelando a figura de Phineas Black. O homem pendurou o chapéu e o capote nos ganchos do armário da entrada. Ao ouvir os passos do pai, Marguerith se levantou, largando de qualquer jeito a boneca com que brincava.

-Papai, você chegou - a garotinha de cinco anos pulou na direção do moreno.

Phineas pegou a filha em pleno ar, rodopiando-a em um abraço.

-Também senti saudades, Marge - ele disse, dando um beijo no rosto da menina.

-Você vai me contar uma história, papai? - ela perguntou.

-Você obedeceu à mamãe hoje?

Ela balançou afirmativamente a cabeça, resoluta.

-Então, depois do jantar eu leio para você.

Indo em direção à cozinha, ele percebeu que a esposa vinha ao seu encontro. A expressão abatida e sóbria de Rosette fez com que ele ficasse preocupado. Ele colocou a filha no chão.

-Marge, meu amor, vá brincar um pouco na outra sala. Papai precisa conversar com a mamãe.

-Tudo bem. - ela respondeu, saindo praticamente correndo sala afora.

Phineas aproximou-se da esposa, abraçando-a e pousando um beijo por cima dos seus cabelos.

-O que aconteceu, Rose?

Ela fechou os olhos, deixando que o calor do corpo dele a reconfortasse. Deixou que as lágrimas de revolta e indignação corressem soltas por seu rosto. Phineas sentiu os soluços da esposa reverberando pelo corpo dela. Ele se afastou um pouco, observando as faces úmidas de Rose.

-Eu estou aqui, meu amor.

-Eu não consegui comprar o remédio da Bete. Ela está com febre... eu fiz o que pude... eu...

O homem soltou-se da esposa e a conduziu até a cadeira próxima. Rosette se deixou levar, quase apática. Estava cansada demais... Queria ter tido mais força para proteger a filha, mas se sentia tão fraca, pequena e desamparada. O que mais ela poderia ter feito sem que colocasse a si mesma e as meninas em risco desnecessário?

-O atendente da farmácia se recusou a me vender o remédio - Rose falou, começando a se recompor. - Pelas coisas que você escreve...

Phineas pegou as mãos dela entre as suas; desde que optara por defender os direitos dos trouxas sabia que passariam por situações como aquela. Tentara preparar Rosette para aquilo, mas haveria sempre dias piores que os outros.

-Eu sinto muito, querida... - ele começou - Eu realmente gostaria que não tivesse que passar por isso, mas fazer a coisa certa nem sempre é fácil. Dumbledore disse que...

Rosette se levantou de chofre.

-Não me importa o que seu amigo disse, ou deixou de dizer... É muito conveniente para ele, protegido dentro de Hogwarts.

-Rose, você sabe que isso não é verdade... O que você quer que eu diga? O que quer que eu faça?

Ela suspirou, ao mesmo tempo em que massageava as têmporas.

-No momento eu só quero que compre o remédio de Betelgeuse.

-Isso eu posso providenciar - ele se levantou, preparando-se para sair.

Quando voltou, Phineas encontrou Rosette no quarto das gêmeas, velando o sono de Betelgeuse. A menina respirava pesadamente. Ele colocou o remédio na cômoda, aproximando-se da esposa que não tirara os olhos da menina em nenhum momento. Ele colocou a mão no ombro de Rose, que apenas se mexeu para pousar a própria mão em cima da dele.

-Como ela está? - Phineas quebrou o silêncio.

-A febre baixou e ela conseguiu comer um pouco. - Rose respondeu baixinho, quase melancólica. - Tem guisado para você na cozinha, e Marge está no nosso quarto, te esperando para ler uma história. Ela estava quase dormindo quando a coloquei na nossa cama, mas insistiu que iria te esperar.

Phineas nada respondeu; apenas se deixou aproveitar aquele momento com a esposa e a filha mais velha. Não sentia nenhuma raiva vindo de Rosette, apenas tristeza e preocupação.

-Eu te amo. - ele disse.

-Eu também te amo - ela respondeu, finalmente levantando o rosto para encará-lo.

-Imagino que vá querer passar a noite velando Bete?

Ela assentiu. Phineas a beijou por cima dos cabelos, deixando o quarto das filhas. Caminhou a passos lentos até o quarto que dividia com a esposa.

Marguerith estava deitada na cama de dossel, abraçada a um livro. Ele o tirou dos braços dela, observando o título: Contos de Beedle, o Bardo. Deixou que um discreto sorriso se insinuasse em seus lábios. O primeiro livro que comprou na mão de Rosette. Colocou o livro no criado mudo, cobriu a filha e depositou um beijo em sua testa.

Tirou os sapatos e deitou-se, fitando o dossel branco. No fim das contas, acabou indo na Travessa do Tranco comprar o remédio. Pensou em ir à farmácia confrontar o atendente, mas deixaria isso para o dia seguinte; trazer o remédio da filha era prioridade, e ele não sabia que resultado teria se houvesse optado pelo embate.

Phineas se perguntava se o mundo sempre fora daquele modo e ele não havia percebido, ou se o mundo estava piorando a uma velocidade vertiginosa. Por mais que ponderasse, não conseguia achar uma resposta.