Ela fitava o dossel, apática. Rosette não tinha forças para se levantar. Tentou comer um pouco logo que acordou, contudo, mal conseguiu mastigar dois pedaços. Sua mente remoía as imagens da noite anterior. O ataque. O homem de preto e sua acompanhante. Pepe. Seu estômago revolvia com as lembranças.
Ela escutou a campainha da casa tocando. Contrariando seus desejos, a realidade a chamava. Rosette reuniu a coragem que parecia lhe faltar. Levantou-se, vestindo um robe de chambre. Praticamente se arrastou até a porta de entrada da casa.
Observou através do olho mágico que mandara instalar na porta de casa logo após ter encontrado as cartas de ameaças no dia do aniversário de Phineas. Reconheceu o homem como um dos Aurores da noite anterior, ao lado dele estava Maria.
Ela abriu a porta rapidamente. As duas mulheres se fitaram sem dizer absolutamente nada. O rosto de Maria expressava todo seu sofrimento. Os olhos inchados e vermelhos, as profundas olheiras sob eles.
Rosette puxou a amiga para junto de si, abraçando-a. Conhecia Maria fazia um bom par de anos, a amizade dos maridos estendera também a elas.
O Auror percebeu que as duas precisavam de um momento de privacidade.
-Se precisarem, basta me chamar. Vou voltar para o posto de vigilância. Não se preocupem com nada. Inclusive o senhor Black já me providenciou suprimentos. Ele também está providenciando a liberação do Sr. Mateotti.
Rose assentiu, ainda abraçada a Maria. A inglesa levou a outra até a saleta. As duas se sentaram no sofá. A italiana desmoronou por completo, deitou a cabeça no colo da amiga e deixou-se envolver pelo pranto, enquanto Rosette lhe afagava os cabelos, tentando passar algum conforto. As duas não conseguiram precisar quanto tempo ficaram ali. Quando as lágrimas de Maria cessaram, Rose se levantou, ajeitando algumas almofadas sob a cabeça dela.
-Vou preparar uma sopa de ervilhas e presunto para nós.
A outra mulher mal se mexeu, apenas se encolheu em si mesma. Rose sentia-se muito mal, mas Maria estava muito pior; por isso ela tentava sair do próprio estupor para ajudá-la.
Não demorou muito para que a sopa ficasse pronta. Maria se deixou guiar mais uma vez. Ela fitou o prato em que Rosette despejara a comida. Embora se sentisse vazia, sabia que não podia definhar. Os filhos dependiam dela.
Ela sorveu uma generosa porção de sopa. O líquido quente lhe deu um pouco mais de energia. Maria se sentia não apenas triste, mas também com raiva. Um ódio imensurável.
-Se Pepe tivesse me ouvido. - ela se pronunciou pela primeira vez, desde que chegara à casa dos Black. - Se tivéssemos ido para a casa dos meus primos no Brasil! Mas ele queria ficar na Europa, queria continuar lutando do jeito dele. Mesmo fora da Itália, um partigiano até o fim.
Rosette pousou a mão por cima da amiga. Maria continuou fitando o prato.
-Não deixe Phineas cometer o mesmo erro, Rose - a italiana prosseguiu, deixando escapar um soluço. - Saiam do país. O sacrifício é muito grande.
A inglesa conseguia perceber a dor impressa em cada uma das palavras ditas pela amiga. Não desejava passar pelo mesmo que ela ou reviver uma experiência como a que lhe proporcionaram. Não poderia permitir que as filhas passassem por aquele tipo de sofrimento.
Mas, quem poderia ajudá-la a convencer Phineas a abandonar tudo? Duvidava que tivesse algum auxílio por parte de Willie e Ravi, que tinham posições muito próximas da adotada pelo marido. Se Aribeth estivesse no país, com seu bom senso e sua racionalidade, ela poderia ser uma boa aliada. Contudo, ela estava na França com Corbin, sem previsão de retorno.
Talvez houvesse uma pessoa, embora a possibilidade de auxiliá-los fosse mínima. Ela iria atrás de Sirius Black.
Phineas levou Maria para resolver algumas pendências. Em poucos dias a italiana estaria embarcando com os filhos para o Brasil, como sempre desejou. Rosette viu a circunstância como uma oportunidade para pôr em prática aquilo a que se propusera. O Auror ainda protegia a casa, por essa razão optou por aparatar de dentro do seu quarto para alguns quarteirões de distância do lugar que pretendia visitar.
Rosette se sentia culpada por ter saído sem avisar a ninguém; contudo, considerando com quem iria lidar, preferia manter sigilo. Phineas não concordaria e tudo poderia dar em nada.
Ela parou diante do imponente casarão que se destacava no meio daquela vizinhança tipicamente trouxa. Considerando o posicionamento de grande parte da família de seu marido, era irônico e paradoxal que tivessem se estabelecido ali, Grimmauld Place, número 12. Diziam, obviamente pelas costas dos Black, que tudo se devia ao fato de um de seus ancestrais ter convencido um trouxa a passar-lhe o imóvel, fosse por ameaças, fosse através do Imperius, mesmo sendo uma maldição proibida. Fosse qual fosse a verdade, o fato era que aquele era o lar do patriarca da família durante muitos e muitos anos, geralmente herdada pelo primogênito do ramo principal dos Black.
Outrora foi ocupada pelo pai de seu marido, de quem ele herdou o nome, o antigo diretor de Hogwarts, Phineas Nigellus, que falecera alguns anos antes que Rose se casasse. Agora o chefe de toda a família era Sirius Black, o segundo a usar aquele nome em tempos recentes. Ele herdara a alcunha do falecido tio, que nem chegou a frequentar Hogwarts, partindo desse mundo ainda criança. Por tudo o que já ouvira falar do cunhado, sabia que as chances eram ínfimas de que ele a ajudasse, mas talvez o coração dele amolecesse por causa das sobrinhas.
Ela bateu na porta algumas vezes com a pesada aldrava, o estômago embrulhando de ansiedade. Uma figura de olhos esbugalhados a atendeu. Fazia anos que Rosette não via um elfo, provavelmente desde que saíra de Hogwarts, apesar de saber que o irmão de Aribeth mantinha alguns em casa.
-Eu tenho um horário marcado com o Sr. Black – ela disse, com a voz meio tremida.
A pequena criatura curvou-se, subserviente, em cumprimento.
-Pode me acompanhar, senhora.
Rosette seguiu o elfo em silêncio, observando os corredores suntuosos da mansão, com suas pesadas cortinas de veludo, suas tapeçarias e quadros. Parecia um lugar imponente e frio, talvez um pouco triste para uma criança crescer.
O elfo a deixou em uma saleta de visitas, com um piano de cauda, um barzinho e alguns livros, além de poltronas de veludo verde e uma mesinha de centro.
Ela sentou-se na poltrona de dois lugares, ansiosa. O elfo aparatou sem se despedir, para voltar pouco tempo depois com xícaras, biscoitos e um bule de chá. Apesar do cheiro delicioso que emanava daquilo tudo, ela não ousou tocá-los.
Novamente o elfo partiu, deixando Rosette completamente sozinha. Ela esperou por minutos que pareceram se estender indefinidamente.
Ela escutou passos pesados se aproximando. Rose levantou-se de imediato, nervosa. Respirou fundo, tentando se recompor. A porta se abriu, revelando a figura imponente de Sirius Black. Ele era um homem alto, de ombros largos, queixo quadrado, fartos cabelos grisalhos, que não aparentava ter mais que cinquenta anos embora já houvesse passado dos sessenta. Seus profundos olhos azuis recaíram sobre Rosette, avaliando a mulher. Ela não conseguiu sustentar o olhar, desviando o rosto. Ele deu um meio sorriso enigmático antes de se aproximar da cunhada.
-É um prazer finalmente conhecê-la, Rosette. – ele disse, com uma voz grave, estendendo a mão – Se importa de eu chamá-la assim? Para mim, senhora Black sempre será minha mãe.
Ela assentiu, dando a mão ao cunhado, que postou um suave beijo nela.
-O prazer é meu – ela respondeu.
Sirius indicou o sofá para que Rosette se sentasse novamente.
-Aceita uma xícara de chá? – ele perguntou, ao que Rose anuiu minimamente – Com açúcar?
-Sim, por favor.
Sirius entregou a xícara à mulher antes de se dirigir para o barzinho, servindo para si uma generosa dose de Bafo de Dragão, apesar de ser ainda muito cedo para aquele tipo de bebida. Ele sentou-se na poltrona, cruzando as pernas. Balançou suavemente o copo com a bebida ambarina e encorpada antes de sorver um generoso gole.
-Faz o quê? Dez anos que você e meu irmão se casaram? – ele perguntou, com afetada indiferença. – Ao que devo o prazer de finalmente conhecê-la pessoalmente?
Rose colocou a xícara em cima da mesa, pegando a bolsa; depois de vasculhar um pouco, estendeu para o cunhado um porta-retratos. Sirius pegou o objeto, era uma foto colorida. Embora a tecnologia já existisse há algum tempo, elas não eram tão comuns. Duas garotinhas acenavam sorridentes, praticamente idênticas, não fosse os cabelos encaracolados de uma e os lisos da outra, além da diferença dos olhos. Verdes e azuis.
-São suas sobrinhas. Betelgeuse Sandrine e Cassiopeia Marguerith. – Rose falou, observando a reação de Sirius. Contudo, o rosto dele continuava impassível e duro como um bloco de granito.
-Eu sei quem elas são – o homem devolveu a foto, indiferente – Na verdade, sei muitas coisas sobre vocês. Sei que seu sobrenome de solteira é Blishwick, o que te faz também uma parenta distante da minha família. Sei o que meu irmão escreve naquele jornaleco e quem trabalha para ele. E sei também o que a fez vir me procurar, Rosette. Você está com medo pelo ataque que sofreram. Quer ajuda.
A mulher não escondeu o espanto, fazendo com que um sorriso cínico se insinuasse nos lábios de Black.
-E você vai ajudar? - ela balbuciou.
-O que você quer exatamente de mim, Rosette? – ele perguntou, sorvendo mais um gole de Bafo de Dragão.
Ela abaixou os olhos, tentando criar coragem, embora, pelo desenrolar da conversa, acreditasse que a resposta seria negativa.
-Eu preciso que convença Phin a desistir do jornal, a sair do país para proteger nossas meninas. Imaginei que se a família o aceitasse de volta, talvez ele pudesse cogitar essa hipótese.
Dessa vez foi Black quem não escondeu a surpresa, soltando uma sonora gargalhada que ecoou pelo aposento. Rosette permaneceu quieta e atônita diante da explosão do cunhado. Depois de ser recompor, Sirius voltou sua atenção para a mulher.
-Rosette, Rosette – ele começou, com a voz afável – você é muito inocente, não é mesmo? Realmente acha que eu ainda nutro qualquer sentimento fraternal por Phineas? Eu odeio meu irmão. Ele traiu a família. Ele herdou o nome do nosso pai e o jogou na lama. Eu quero que ele sofra como nosso pai sofreu diante de tamanho ultraje.
-Ao custo da vida das suas sobrinhas? Elas são apenas crianças, não pediram para ficar na mira de fanáticos! – Rose vociferou, se perguntando se existia algum mínimo traço de decência naquele homem.
Sirius levantou-se da poltrona. Rosette imaginou que ele iria se servir de mais uma dose de bebida, contudo ele se sentou ao lado da cunhada.
-Talvez haja uma forma de nós dois conseguirmos o que queremos, Rosette. Proteção para suas filhas e sofrimento para o meu irmão.
Sirius aproximou se do ouvido da cunhada enquanto colocava uma das mãos sobre a coxa dela. Ele sentiu o corpo dela se tensionar ante o toque, mas preferiu ignorar.
-Você é uma mulher bonita, poderia me conceder alguns favores e em troca recebo você e as meninas novamente no seio da família. Ninguém mais poderia ameaçá-las devido à minha posição na sociedade.
Rosette levantou-se, sobressaltada, a tez bastante vermelha, um misto de constrangimento e indignação.
-Eu sou uma mulher casada! Eu amo meu marido! E o senhor é um homem casado também!
-Hesper não se importa. – ele respondeu, com desdém – E por mais que ame Phineas, imagino que se importa mais com minhas sobrinhas.
-A resposta é não! – ela disse, se dirigindo para a porta.
Sirius riu mais uma vez.
-Melhor conter seu rompante, Rosette. A casa é grande, vai acabar perdida. Deixe-me pelo menos chamar um elfo para acompanhá-la.
Percebendo que Black estava certo, ela cruzou os braços, mantendo o cenho fechado, enquanto ele tocava uma sineta. Em poucos segundos o elfo que a recepcionara apareceu, pronto para levá-la até a saída.
-A proposta ainda está de pé, caso mude de ideia. – Sirius lançou a ela um último sorriso.
-Vá para o inferno. – Rosette falou, antes de sair.
O dia estava claro e sem nuvens, parecia uma boa ideia deixar que as meninas brincassem um pouco no quintal. Estavam naquela cabana, longe de Londres, longe de todas as guerras. Fossem dos trouxas, fossem dos bruxos. Ninguém poderia encontrá-las.
Rosette suspirou, aliviada, enquanto se preparava para tirar a torta do forno. Não fosse pela ausência de Phineas, ela poderia até mesmo acreditar que estava no paraíso. Era quase tudo perfeito.
Ela começou a ajeitar a mesa para o desjejum das filhas, cantarolando baixinho. A melodia foi interrompida por um grito estridente. Sem raciocinar, agindo apenas pelo impulso, ela pegou a varinha em cima da mesa e correu porta afora.
Havia duas pessoas, desta vez dois homens, embora um deles fosse quase um menino. Ela nunca os tinha visto. Cada um deles segurava uma das gêmeas no colo, segurando uma adaga de chifre de arpéu na altura do pescoço das meninas.
-Nós avisamos, senhora Black, que viríamos atrás de vocês. – o mais velho se pronunciou.
Rose mantinha a varinha apontada para os atacantes, ora direcionando para um, ora direcionando para o outro. Sua mão tremia. Ela não ousava lançar um feitiço, temendo ferir as filhas.
-Você pode escolher qual das duas matamos primeiro. Ou podemos matar as duas ao mesmo tempo. – ele acenou para o mais jovem.
-Não, por favor não! – Rosette gritou, mas era tarde demais.
Os bruxos das trevas soltaram os corpos inertes das garotinhas no gramado, o sangue saindo em profusão. Rose deixou se cair de joelhos no chão, enquanto os dois homens lhe apontavam as varinhas, o brilho verde saía das pontas, ameaçadoramente.
Antes que seu fim chegasse, ela escutou a voz de Phineas a chamando. Ela abriu os olhos percebendo que estava na penumbra do próprio quarto. O marido a aninhava protetoramente nos braços.
-Está tudo bem, amor, foi só um pesadelo.
Rose percebeu que ainda chorava. Parecia tudo tão terrivelmente real.
-Eles atacaram as meninas... – ela murmurou, entre soluços.
Phineas acariciou de leve os cabelos da esposa, deixando que ela se acalmasse.
-Phin... vamos embora, pegamos as meninas e deixamos tudo para trás. Podemos ir para os Estados Unidos ou encontrarmos Maria e as crianças no Brasil.
O jornalista suspirou profundamente. Ele mesmo já havia cogitado aquelas possibilidades e as refutado. Não era alguém de fugir à luta. O jornal, seus textos, eram seu modo de enfrentar Grindelwald e seus asseclas. A morte de Pepe também seria em vão se abandonasse tudo.
-Meu amor – ele disse com suavidade – é duro dizer isso, mas não temos para onde fugir se Grindelwald alcançar seus propósitos. Ele esteve na América alguns anos atrás, você sabe disso. Se ele triunfar nem a MACUSA será capaz de impedi-lo de voltar. Por isso preciso ficar.
Rose sempre soube que aquela seria a resposta do marido. Começava a perceber que nem ela, nem Aribeth, nem mesmo o cunhado seriam capazes de fazer Phineas mudar de ideia.
-Eu tenho alguns amigos em Gales que se comprometeram em recebê-las. Vocês vão para um lugar onde ninguém será capaz de encontrá-las.
-Eu espero que esteja certo, Phin. – Rose respondeu, ainda que ligeiramente descrente.
