Capítulo 18
"Somewhere back in time
I left a part of me, I wanna see if you can try
To bring it back to me
You gotta go where I cry
I'm taking on the tears, I wanna see if you can try
Drink a little bit of it"
Quando despertou, seu peito doía.
Abriu os olhos devagar e percebeu que ainda era noite. Ao olhar para o lado, viu que as velas que acendera antes de dormir não tinham derretido tanto assim. Ichiro estava com a sensação de ter dormido por apenas alguns minutos. Sentia-se estranho e seu corpo inteiro suava, como se estivesse com calor ou febre.
Exceto que não estava.
Jogou o cobertor para o lado e levantou-se num pulo. Abriu a porta e saiu para tentar olhar o céu e entender quanto tempo havia se passado. Um vento frio soprou em seu rosto.
Esfregou os olhos.
Quando os abriu novamente viu a noite que se estendia a sua frente, quieta. Muito quieta. Apurou os ouvidos, mas era como se alguém tivesse diminuído o volume do mundo inteiro. Até o barulho dos grilos era difícil de ouvir. Ichiro coçou a cabeça.
Deveria ser só impressão dele. Não estava se sentindo realmente mal. Só... esquisito.
Ele andou alguns passos, circulando a cabana e virou-se a fim de ver se o sol dava algum indício de estar nascendo no horizonte. Mas lhe parecia que ainda faltava uma ou duas horas para que isso acontecesse. Ele passou as mãos pelos cabelos e decidiu que o melhor seria acalmar-se e esperar a manhã chegar. Com certeza não iria conseguir pegar no sono de novo.
Foi andando por entre as casas, traçando exatamente o percurso que ele e Kagome haviam feito horas antes. Aquela era a hora mais fria da madrugada o que fazia com que ele desejasse desesperadamente ter um cigarro à disposição. Seria muito mais fácil colocar os pensamentos em ordem se estivesse fumando. E pensar que antes de se atirar no poço estava com uma carteira inteira no bolso que agora deveria estar jogada no chão do templo Higurashi.
Ele sentiu os olhos ressecarem de novo por causa do vento gelado e abaixou a cabeça, apertando-os com os dedos, franzindo a testa. Em seguida olhou para o horizonte.
Um vislumbre de claridade começara a aparecer.
Decidiu caminhar mais. Pensou que o amanhecer deveria ser lindo se visto do rio. Poderia visitar de novo o poço e a Árvore Sagrada enquanto organizava em sua mente em ordem cronológica tudo o que sabia até o momento. Agora que tinha ao menos uma arma para se defender, sentia-se muito mais corajoso para desbravar os arredores.
"Então, vamos lá."
O tempo passava de forma totalmente diferente - e aparentemente aleatória - nas duas Eras. Três dias ali poderiam significar o triplo ou o quádruplo na Era Moderna.
A raposa, Shippou, era o único amigo de Kagome que ainda estava vivo. A garota, Hatsue, era uma sacerdotisa poderosa e inteligente que havia sido treinada especificamente para lidar com as perturbações entre os dois mundos. Pelo que ele tinha captado, não se tratava só de prevenir que youkais tivessem acesso ao mundo deles. Poderia ter algo a ver com linhas do tempo e esse tipo de coisa. Efeito borboleta. Nada podia sair do programado no passado ou tudo que eles conheciam iria simplesmente mudar, ou pior, desaparecer.
Ele olhou ao redor, não tinha se distanciado tanto assim do vilarejo. A sua frente, a floresta parecia tão calma e pacífica... Kagome não ia achar ruim se ele fosse mais longe, certo?
Continuou a pensar.
Inuyasha. Os aldeões falavam dele com um certo tom de admiração mesclado com um medo adormecido. Ele lera tudo sobre os supostos atritos entre humanos e criaturas e sabia que confiança era algo difícil de existir entre os dois grupos. Mas se tinha um youkai que havia chegado bem perto de por abaixo essa "regra", esse seria Inuyasha.
Pensar naquele nome lhe causava uma sensação esquisita.
Durante a jornada para coletar os pedaços da Joia de Quatro Almas, Kagome e ele trabalharam juntos com Sango, Miroku e Shippou viajando por todo o Japão. Como a joia dava poderes a outros youkais - e também a humanos de coração impuro - muitas vezes eles auxiliavam outras pessoas durante a busca. Ichiro ouvira muita gente falando sobre todas as ameaças que ajudaram a conter. O sentimento de gratidão que existia ali era direcionado muito mais para Kagome do que para Inuyasha, talvez por ela ser uma humana e também sacerdotisa.
Mas Inuyasha não ficava tão atrás. Ele deu a vida por ela. Os aldeões falaram e Sesshomarou disse o mesmo. E por falar nele, Ichiro imaginava que só podia ser irmão do próprio Inuyasha, certo? Só poderia ser. Shippou disse apenas que era meio irmão de um amigo dele. Mas que amigo...?
Inuyasha, certo?
Ele parou abruptamente, olhando em volta mais uma vez. Onde estava? Bem, não importava. O vilarejo ficava para trás. Era só voltar. Ichiro pensou ter ouvido seu nome, mas era apenas aquela sensação bizarra de novo. Quando virou-se na direção que sua intuição lhe soprou, viu que entre algumas árvores, ali, na parte mais fechada da mata, tinha uma luz.
"Que curioso. Achei ter visto algo parecido antes de cochilar agora a pouco."
Ele agachou-se e arrancou um pedaço da grama para marcar o lugar em que estava. O sol nasceria na direção da vila. Com aquelas orientações seria perfeitamente capaz de retornar por conta própria. Aquilo o tranquilizou.
A luz ficou mais forte. Pensou consigo mesmo que precisava verificar o que era.
O motivo? Não sabia.
Sua mente continuava a mil conforme ele adentrava por entre as árvores. Definitivamente a mata era mais fechada do que ele pensara. O chão parecia feito inteiro de raízes das árvores que cresciam juntas, quase siamesas. As copas eram relativamente altas, mas havia dezenas de galhos que brotavam dos troncos na altura do campo de visão de Ichiro. Ele tinha de afastar cuidadosamente cada um deles com as mãos enquanto tomava cuidado para não prender o pé em nenhuma raiz alta e tropeçar.
Seu pensamento retornou para Sesshomarou.
Aquele demônio era assustador. Não só porque não dava pra saber exatamente o que ele pensava, mas também porque parecia ser extremamente imprevisível. Ajudara Kagome a destruir Naraku, mas isso não tinha sido nem remotamente suficiente para faze-la confiar nele. E por falar em Kagome... aquela ameaça que ela fez ao youkai arrepiou até o último fio de cabelo de Ichiro. Ficar selado numa árvore por mil anos? Só de ter imaginado a situação de Inuyasha - que ficou adormecido por "meros" cinquenta anos - ele tinha achado que seria insuportável. Imagine um milênio inteiro.
Era uma briga acirrada Kagome e Sesshomarou. Nenhum dos dois parecia ceder. Ambos pareciam igualmente assustadores, cada um a seu modo.
Mas ele conhecia Kagome, ao passo que Sesshomarou ainda era uma incógnita. E o desconhecido assusta muito, muito mais.
A mata se fechava mais e mais em torno dele. Deveria estar com medo? Aquela luzinha vibrante continuava a chacoalhar a sua frente. Fazer aquele caminho estava lhe parecendo algo tão... natural. Ele afastou mais um galho com uma das mãos e viu que ela parecia mais brilhante.
Conseguiu identificar a cor. Azul.
Mas voltando a Sesshomarou... Ele estava de posse daquela mulher que parecia bastante com Zhang. "De posse" porque a relação dos dois não lembrava muito um relacionamento normal. Que estranho. Mais estranho ainda a semelhança da garota com sua irmã. Shippou menosprezou sua suspeita. Será que achava que Ichiro estava enganado? Ou será que não levava a sério essa questão da semelhança física como algo que era determinante ou importante?
Não era uma pessoa muito religiosa e achava que era tarde demais para mudar isso. Mas lera bastante também sobre reencarnações, pois Kagome mencionara aquela outra sacerdotisa do passado, Kikyou. Em algum momento ao longo dos dias anteriores, Ichiro pensou que seria útil saber algo sobre o assunto do ponto de vista de quem realmente acreditava naquelas coisas.
Então Kagome e Kikyou se pareciam... Zhang e a menina também. Mas Shippou não achava grandes coisas disso. E sim, talvez estivesse certo. Imagine o quão fácil seria identificar ancestralidades espirituais por meio de semelhanças físicas tão óbvias. Não, o mundo real não funcionava assim... Certo?
Ainda assim... Aquele assunto o fazia lembrar-se de uma conversa que tivera com Zhang.
Ele dissociou por alguns instantes enquanto as memórias lhe retornavam.
- "A fotografia?" – respondeu Zhang, uma sobrancelha erguida em sinal de suspeita – "Eu não sei, é uma foto, se trata de um retrato dela com um grupo e tem esse tal de Inuyasha no meio. Ela não me falou muita coisa e, olha Ichiro, você deveria deixar esse assunto quieto."
- "Por que?" – perguntou ele, temendo dizer mais do que devia e ser descoberto.
- "Ela não te falou?" – questionou Zhang, ligeiramente surpresa – "É um assunto doloroso pra ela... Ele faleceu há três anos."
(...)
- "É... Ela... Mencionou sim." – mentiu ele – "Bom... Chocante de qualquer forma, não é?"
- "Há! Nem me fale!" – respondeu ela, certa de que eles estavam falando sobre a mesma coisa – "Quando eu vi o quanto aquele garoto parecia com você... Nossa! Esse negócio de sósias existe mesmo, não é?"
Ichiro distraiu-se e sentiu um de seus pés prender-se em uma das dezenas de raízes. Seu corpo perdeu o equilíbrio e tombou pra frente. Ele achou que poderia se agarrar em algum tronco ou galho antes de ir ao chão, mas se deu conta de que, infelizmente, o caminho denso por entre as árvores findava ali. Ichiro voou em direção a grama, só teve tempo de proteger seu rosto com as mãos, cobrindo-o com os braços.
Ele sentiu o impacto da grama arranhar seus cotovelos. Àquelas alturas era difícil achar um lugar de seu corpo que não estivesse arranhado ou machucado. Mas um a mais, um a menos... não faria tanta diferença assim para ele. Sem se abalar, levantou-se devagar. Olhou para trás, memorizando o lugar de onde tinha saído.
Já de pé, sacudiu suas roupas. Estava em uma clareira. Ouviu o barulho de pássaros no horizonte. Sua audição aparentemente estava perfeita agora. E então olhou para frente.
Primeiro viu flores. Muitas, dos mais variados tipos. Incensos, alguns até recém apagados. Pergaminhos enrolados com delicadas fitas. Uma montanha de pequenos presentes que quase impediam que ele visse a placa oval de madeira que se erguia. Fixado no topo, havia um colar velho com continhas roxas e brancas, ou pelo menos, o que tinha sobrado delas. Ichiro aproximou-se e precisou mover uma coroa de flores do caminho para verificar o que estava escrito ali, escavado na madeira.
"Inuyasha"
Sentiu seu corpo inteiro estremecer. Não de um jeito comum. Parecia uma corrente elétrica deslizando sem cerimônia indo da sua cabeça aos pés. De repente, ficou completamente consciente de cada batida que seu coração dava, como se sua pulsação fizesse um barulho, alto, forte. Como um estrondo, um gongo do tamanho do céu, um trovão ecoando dentro de si.
Tu. Dum.
Tu. Dum.
Estava tendo um infarto?
Foi seu primeiro pensamento.
Aos vinte anos estava morrendo? Não é possível.
Ichiro abaixou a cabeça com esforço e olhou as próprias mãos, procurando por tremores ou qualquer outro indício que o fizesse entender o que estava acontecendo.
Mas não conseguiu contemplar suas próprias palmas por muito mais tempo. Uma luz azul, a mesma que o guiara até ali, começou a turvar seu olhar. Brotava do chão. Penetrava entre os espaços de seus dedos. Subindo. Subindo. Envolvendo seu corpo e tomando conta de cada parte dele. Ichiro franziu o cenho, sem entender.
A mesma luz azul que vira mais cedo, antes de dormir?
Tu. Dum.
Tu. Dum.
- "Vai ser demais pra você." - ele ouviu uma voz entediada vindo de cima.
Olhou para o alto, para a direção de onde achava que a voz saía. Ichiro forçou a vista, era como se estivesse tentando enxergar usando uma lente turva e azul. Com dificuldade, tentou identificar quem era.
Sentiu-se paralisar quando o viu. E notou que até mesmo piscar os olhos estava se tornando difícil.
Ele estava conseguindo respirar? Não sabia. Ele deixou a cabeça pender para frente, tateou seus sentidos em busca do seu diafragma, dos pulmões... Tentou olhar para cima de novo, mas não sentia mais seus olhos, nem seu nariz, nem seu rosto.
Mas ainda conseguiu enxergar.
Acima de si, o youkai flutuava calmamente no ar, envolvido pela copa das árvores mais altas.
- "Sessh... Sesshom..." - Ichiro engasgou-se, levou as mãos à garganta. Sua voz não saía.
Seu corpo inteiro estava envolvido pela luz. Ele sentia frio extremo. Não, calor extremo. Ambos. Tudo ao mesmo tempo. Ou nada em tempo algum.
Era difícil pensar. Falar. Respirar.
Ele apertou a garganta com as mãos contorcendo-se, seus joelhos cederam ao próprio peso e foram ao chão. Sua cabeça parecia pesar uma tonelada. Suas pernas, braços, tronco, tudo parecia estar sendo engolido por aquela luz misteriosa.
Ichiro duvidava que fosse algo bom.
E aí veio a dor.
Ele urrou.
Era como ser mergulhado em uma piscina de ácido sulfúrico. Como se estivesse derretendo ao mesmo tempo em que mil facas lhe penetravam o corpo. Ele segurou a própria cabeça com as mãos e agarrou seus cabelos em meio ao som de gritos desesperadores.
Os gritos dele mesmo.
- "Patético." - a voz de Sesshomarou soou novamente e Ichiro sentiu seu sangue borbulhar de ódio - "Exatamente como pensei que seria."
Mesmo ali, grunhindo de dor e de cabeça baixa, Ichiro soube que o youkai se aproximava dele. Tinha sido ele então? Ele o seguira até ali para mata-lo? Ou tinha sido o próprio que o atraíra com aquela luz? Ichiro imaginou Sesshomarou aguardando calmamente sua chegada na clareira, na certeza de que iria se divertir assistindo-o consumir-se na sua frente, pronto para morrer. Uma morte dolorosa e, possivelmente, demorada.
Mas... pra quê? Lembrou-se das palavras de Kagome. Sesshomarou não agia sem que tivesse um interesse próprio no assunto.
Qual seria o interesse? Era vingança?
Pelo seu irmão? Iria defender a honra dele? Porque sabia de alguma forma do seu interesse em Kagome? Ou pior: do interesse que ela tinha nele?
Era isso. Sim, só podia ser isso.
Ichiro estremeceu com esse pensamento.
Iria mata-lo e depois matar ela também.
"Não."
Sentiu a dor fulminante abater-se sob seu peito com força e soltou mais um urro agonizante e, nesse ponto, já não gritava mais apenas de dor, mas também de medo da hipótese que acabara de surgir em sua mente. Ele ouviu as risadas de Sesshomarou ecoando muito, muito perto dele.
A próxima coisa que soube foi que as mãos do youkai envolveram seu pescoço e o ergueram no ar. Já era suficientemente difícil respirar no estado em que estava, ainda mais agora, suspenso, com a mão de Sesshomarou estrangulando-o... parecia impossível.
Mas ele não podia deixar isso acontecer. Porque Sesshomarou mataria...
"Kagome... Kagome!"
Escutou a risada do youkai mais uma vez. E Ichiro pensou por um segundo que ele teria o poder de ler mentes, pois parecia zombar de seus pensamentos.
Ichiro piscou os olhos várias vezes enquanto segurava a mão que envolvia seu pescoço fazendo força, numa tentativa inútil de soltar-se. Lembrou-se de tudo que lera com Souta nos dias anteriores.
Youkais.
Demônios.
A força de dezenas de homens. No mínimo.
Suas mãos se afrouxaram, ele encarou os olhos dourados que fitavam os seus, ansiosos por vê-lo morrer. Que força ele teria? Como poderia sair daquela situação? Já estava morto. Talvez Sesshomarou nem precisasse se dar o trabalho de encostar nele porque aparentemente seu coração falhara antes mesmo dele chegar.
Aquela luz. Aquela luz iria mata-lo. Antes mesmo dele morrer sem ar pelas mãos do youkai. Os olhos de Ichiro começaram a fechar-se conforme a esperança deslizava para longe dele.
Quantos minutos ele já passara sem respirar?
- "Lute." - ele ouviu a voz de Sesshomarou sussurrando, autoritária.
A próxima coisa que percebeu foi que estava sendo arremessado no ar.
Suas costas atingiram o tronco de uma árvore. Seu corpo ricocheteou e nos milésimos de segundos que antecederam o impacto que o levou ao chão, Ichiro pensou que já estava morto.
Lembrou-se do rosto de Kagome. Sorrindo para ele.
Caiu com força na grama. E se antes não sentia nada em seu corpo, agora estava completamente consciente de cada centímetro de pele, sangue e órgãos que existia dentro de si, porque tudo, absolutamente tudo doía.
Sentiu sua respiração voltar, por fim. Tossiu e engasgou-se enquanto segurava a própria garganta com as mãos, deitado no chão, enrolando-se em posição fetal.
- "Você não tem escolha." - a voz de Sesshomarou soou novamente e Ichiro conseguia ver os pés dele aproximando-se, pouco a pouco.
- "Você... vai... ugh..." - Ichiro sentiu uma nova pontada de dor e tentava formar as palavras antes que Sesshomarou o alcançasse e tentasse enforca-lo novamente - "Kagome... você... não..."
Sesshomarou parou. Ichiro girou o corpo, colocando-se deitado de barriga para cima. Via o rosto do youkai acima dele. Pela primeira vez desde que tinham se encontrado, conseguia enxerga-lo nitidamente. Esperou encontrar algum traço de agressividade em sua expressão, mas o demônio parecia assustadoramente indiferente.
Matar para ele certamente era algo trivial.
Ichiro temeu o que viria a seguir.
- "N-não... mate... - ele engasgou novamente, puxou o ar com toda a força que lhe restava de volta para os pulmões - "...Kagome..."
Sesshomarou agachou-se.
Seus olhos fitaram os de Ichiro.
- "Ela vai morrer... se você não lutar." - disse ele.
Ichiro sentiu algo borbulhar dentro de si. Uma força surgindo dentro dele, vinda sabe-se lá de onde.
Não. Não ia deixar isso acontecer. Não mesmo.
- "MALDITO!" - instintivamente Ichiro ergueu-se rapidamente, cerrando uma das mãos em volta do cabo da bakken que carregava na cintura. Brandiu-a, levantando-se em um segundo, lançando seu corpo para cima do youkai.
Mas Sesshomarou era veloz como um raio. E não se deu nem o trabalho de defender-se do golpe. Apenas desviou-se e soltou uma risada baixa quando viu Ichiro cair de cara na grama novamente. A espada de madeira rolando para longe.
- "Então... é ela, não é? É sempre ela." - Sesshomarou observou Ichiro tentar levantar-se com esforço - "Eu deveria saber... Como você é previsível."
Era difícil entender o que ele dizia, primeiro porque seu corpo estava completamente machucado; segundo porque Sesshomarou parecia falar as frases pela metade. Apenas o que julgava estritamente necessário. O que ele queria dizer com aquilo? Porque falava com Ichiro como se já o conhecesse?
Mas o que ele tinha dito já era provocação suficiente para tentar reunir forças e resistir.
Kagome. Sesshomarou com certeza sabia de tudo sobre eles dois. Queria vingança. Não iria admitir que ninguém além do seu irmão pudesse te-la para si. Fazia sentido. Era possessivo com a garota com quem andava... fazia sentido que também o fosse com Kagome. Por mais doentio e bizarro que fosse. Ichiro levantou-se com esforço. Os joelhos fracos sustentando-o inesperadamente. Cambaleou uma ou duas vezes antes de virar-se para encara-lo e se colocar em uma das inúmeras posições de ataque que conhecia. Ele avistou Sesshomarou e olhou bem no fundo dos olhos dele.
Porque para o azar daquele youkai, Ichiro também era muito, muito possessivo.
- "Vou... acabar... com você!" - falou ele, enquanto ofegava - "... seu maldito!"
Sentiu um calor envolver-lhe completamente.
A luz azul voltara. Mas estava diferente.
Mais forte. Piedosa. Bondosa. E sem que ele percebesse, a dor foi sumindo, pouco a pouco.
Ichiro sentia que enquanto se mantivesse firme, com o pensamento na única pessoa que queria proteger, aquela luz misteriosa o ajudaria.
Respirou fundo. E avançou mais uma vez.
Sesshomarou sacudiu a cabeça levemente, desapontado. Dessa vez ele não desviou do ataque, simplesmente correu de encontro a Ichiro enquanto dizia:
- "Ainda não é suficiente!"
Ichiro sentiu quando eles passaram um pelo outro. Sentiu seu punho ser aparado pelo ar, atingindo o nada. E sentiu as garras do youkai penetrando-lhe o corpo, na altura das costelas.
Ele deu três ou cinco passos após perceber a ardência da pele rasgada e exposta onde havia sido atingido. Parou, quase se desequilibrando e contemplou a mão que havia usado na esperança de atingir o youkai com um soco. Sentiu-se ridículo. Não tinha chegado nem perto de feri-lo.
Algo escorria pelo seu troco e pernas. Olhou para baixo. No lugar onde Sesshomarou tinha atacado jorrava sangue.
Mas Ichiro não podia morrer.
Não ali. Não daquele jeito.
E não só por Kagome.
- "Você não está nem perto... humano." - ele ouviu a voz de Sesshomarou sibilando atrás de si, a alguns metros de distância.
Quanto tempo ele lhe daria para se preparar para o próximo ataque?
Ichiro tentou estancar o sangue com as mãos, ainda de costas para o youkai. Sentia seu rosto arder. E a luz azul que não parava de envolvê-lo parecia tentar mante-lo de pé, a todo custo. Mas tudo doía. E era difícil.
Não podia morrer.
Foi como se as imagens estivessem sendo projetadas na frente dele de tão nítidos que estavam seus próximos pensamentos.
Lembrou-se de uma foto de sua mãe. Ela sorria. Agarrava o pequeno Ichiro bebê, no seu primeiro ano de vida, quando ele ainda sabia sorrir de verdade.
Pensou no olhar duro de seu pai. Nas pouquíssimas demonstrações de afeto que ele lhe deu e em como elas foram ficando mais e mais raras com o passar dos anos. E no quanto, apesar de tudo, Ichiro lhe era grato por inúmeras coisas, dentre elas, ter agraciado o mundo com... Zhang.
Sim. O sangue do seu sangue.
Por muitos anos ela era tudo o que importava pra ele e Ichiro sentia que seu coração não tinha espaço para sentir amor por mais nenhum outro ser humano. Era Zhang que lhe vinha à mente, dando seus primeiros passinhos, chorando de dor porque os dentinhos nasciam, brincando de boneca, fazendo aulinhas de ballet.
Não podia morrer.
Era sua irmã. Sua irmãzinha. Precisava voltar para ela.
A memória mudou. Ele viu as lágrimas rolando pelo rosto de Zhang quando presenciara seu primeiro ataque de raiva. Ichiro machucara-se tanto que quebrara dois de seus próprios dedos. Tinha só sete anos, mas não chorou. Foi Zhang que chorou por ele e segurou seu braço enquanto eles corriam para o hospital. Foi Zhang quem lhe disse que ele poderia tentar fazer melhor, sempre. Ela cuidara dele muitas e muitas vezes, sem que nem ao menos percebesse.
Não podia morrer.
Agora, tinha se aberto um novo espaço em seu coração. Kagome. E tudo o que vinha junto com ela. Um amor avassaldor. Um desejo irremediável. Uma vontade de ser melhor. Sempre. Intensificada pelo sentimento fraternal que Zhang já despertava nele, potencializada pela perspectiva de um amor romântico. Kagome e seu sorriso, seus cabelos macios, os olhos azuis e o aroma divino.
Mas não "só" ela.
Sua mente girou de novo e ele se viu no tempo Higurashi. Encontrava-se com Souta, lendo seus livros e saindo de casa cedo para não perder a hora, os cabelinhos molhados do banho.
"Até mais, irmãozão!"
Estava na cozinha. Um aroma de mel e camomila invadiu suas narinas. A senhora Higurashi, fazendo seu chá. Mexendo nas panelas calmamente. Reclamando da porta que estava quebrada. Ichiro tinha ido consertar para ela, mas o que fizera? Quebrara mais uma.
"Ela é feliz quando está com você, filho."
A imagem mudou de novo e Ichiro avistou ao longe o avô de Kagome, meditando e jejuando. Sua cabeça girou e ele viu o gatinho, Buyo, brincando com seus dedos.
Não... Não podia morrer.
Sesshomarou avançou novamente para ele. Dessa vez, dando-lhe pouquíssimo tempo de reação. Ichiro só conseguiu virar-se de frente e a mão dele já estava na sua cabeça. Foi erguido no ar pelos cabelos. Suas pernas suspensas sacudiam-se em protesto, ele tateava o ar com as mãos e os braços, tentando ao menos alcança-lo.
Os olhos do youkai fitavam-na com a mesma inexpressividade indecifrável.
- "Você é... resistente."
Ichiro encheu-se de coragem.
- "Maldito... vou acabar com você!" - ameaçou ele.
Sesshomarou sorriu.
Enquanto chutava e esperneava insistentemente no ar, Ichiro pensava no que fazer. Sua mente, apesar da dor que sentia, apesar do sangue que perdia segundo a segundo, parecia clara, precisa, alerta. Adrenalina, talvez?
Foi questão de milésimos de segundos, mas pareceram minutos.
Enquanto se sacudia, Ichiro conseguiu triscar em algo com os dedos e seus olhos encontraram a bainha de uma espada que jazia amarrada à cintura de Sesshomarou. Porque ele não tinha usado logo aquela arma? Mas Ichiro pouco se importava com seus motivos. Agora via uma chance. Ele empurrou as pernas para trás, deu um impulso e esticou o braço direito o máximo que conseguiu. Alcançou-a, e fechou os dedos em torno dela firmemente.
- "ICHIRO!" - a voz de Kagome ecoou nos seus ouvidos.
Mas ele olhou para Sesshomarou que, pela primeira vez, havia trocado a expressão entediada que jazia em seu rosto por algo como... surpresa.
Ele não tentou reaver a arma da qual Ichiro se apossou. Sentiu quando seus cabelos foram soltos quase que instantaneamente. Seshomarou largou-o e flutuou para trás, muito rápido e à medida em que se afastava, a espada, presa nos dedos de Ichiro, saía da bainha. E ele estava caindo, novamente. Que arma era aquela, afinal? Ainda no ar, brandiu a lâmina velha e acabada diante de si e viu seus olhos refletidos nela por alguns instantes antes de cair de costas no chão.
Pensou ter visto algo diferente, mas não havia tempo a perder.
Levantou-se num pulo. Sentindo seu corpo inteiro vibrar.
- "Ichiro..?!" - a voz de Kagome de novo.
Espere... Achou que a voz de Kagome estava vindo das suas memórias. Mas... Não? Ela estava ali? Ichiro olhou para trás.
Estava. E seu olhar ia dele para Sesshomarou. Hatsue e Shippou vinham logo atrás. Os três pareciam estar chocados em diferentes proporções.
- "Está acontecendo... Kagome-sama!" - disse Hatsue, enquanto admirava Ichiro e levava as mãos à boca - "Ele... Ele..."
Mas ninguém conseguiu reagir. Ichiro tornou a olhar para frente e viu Sesshomarou vindo em sua direção, as garras afiadas mirando nele. O olhar incisivo e assustador que agora não mais o assustava.
Kagome estava ali.
Ele não podia morrer. Não. Podia. Morrer.
Ichiro era uma bola de luz azul àquelas alturas, mas sua vista seguia limpa e nítida. Ele segurou firme no cabo da espada com as duas mãos e separou as pernas, buscando apoio. A luz vibrava violentamente em torno de si.
Novamente, alguma coisa similar a uma descarga elétrica estremeceu passando pela sua cabeça, escorrendo pelos braços e se estendendo pela espada. E Ichiro sentiu como se muitas coisas estivessem acontecendo ao mesmo tempo. Mas a principal delas era a espada que agora fazia parte dele, como uma extensão de seu corpo. E o que antes era uma lâmina enferrujada e danificada transformou-se diante dele numa arma enorme, pesada, letal, como ele nunca tinha visto antes.
- "Impossível..." - sussurrou Kagome atrás de si.
E Ichiro foi invadido por um turbilhão de memórias ao mesmo tempo; memórias que eram dele, mas, de alguma forma, também não eram. Como se lesse cem diários secretos ao mesmo tempo, assistisse cem filmes, abrisse cem portas. Tudo ao mesmo tempo. Sentindo todo tipo de sentimento em um segundo. E dentre essas centenas de vidas ele conseguia ver nitidamente...
Uma mulher muito parecida com Kagome, uma sacerdotisa com um peso nos ombros, um corpo vazio, uma casca do que fora. Carregava uma inconfundível tristeza nos olhos frios, cinzentos.
Kikyou.
Dizia: "Uma vez que o fio do destino é entrelaçado, não pode ser desfeito. (...) quem vive, um dia morre; e quem morre, um dia renasce."
E depois... Uma cortina de cabelos longos e prateados. Um homem vestido em roupas vermelhas. Quando seu rosto entrou em foco, Ichiro viu que era o seu próprio rosto, mas não era ele. Tinha caninos, garras... e olhos dourados, cintilantes.
Inuyasha.
"Kagome me ensinou a sorrir e acreditar nos outros. Kagome foi o motivo de eu conseguir fazer amigos... confiar neles... (...) Ela nasceu para me conhecer. E eu... eu nasci para ela!"
E por fim... ela. Mais nova e com vestes de colegial. Sorrindo. Um sorriso mais juvenil e inocente do que o que ele conhecia, mas ainda assim, o sorriso mais lindo do mundo inteiro.
Kagome.
"Eu quero que você seja feliz. Eu quero te ver sorrindo. Não sei exatamente o que consigo fazer por você, mas... eu vou sempre, sempre... estar ao seu lado."
De repente, Ichiro sabia exatamente o que fazer.
Sesshomarou avançava. Pela última vez.
Ichiro ergueu a lâmina acima de sua cabeça.
Seus olhares se encontraram e ele viu o youkai transformar-se conforme chegava mais perto. Suas pernas e braços viraram patas gigantes, sua cabeça alongou-se num focinho imenso, e ele era todo pelos, pelos brancos que sacudiam-se no vento. Kagome gritou atrás deles, erguendo seu arco e flecha na direção de Sesshomarou.
Mas antes disso, Ichiro desceu a lâmina de uma vez.
Inuyasha gritou dentro dele.
Sesshomarou encolheu-se, parecendo adivinhar, instantes antes de acontecer, o que viria a seguir. O golpe foi tão forte que abalou as copas das árvores, levantou a terra, sacudiu a noite. Diante da ferida do vento que abrira-se, Ichiro observou Sesshomarou retornar à forma humana, enquanto flutuava no ar, seu rosto ainda escondido pelo braço que usara para proteger-se.
Tinha se deixado atingir... Porque?
Ichiro observou quando Sesshomarou tirou o braço da frente do rosto e seus lábios curvaram-se para cima, num sorriso praticamente imperceptível.
Sua cabeça inclinou-se na direção dele. E parecia um aceno...
Um adeus.
O youkai fez um gesto com uma das mãos e Ichiro viu quando Rin surgiu em meio à floresta, flutuando, inconsciente e envolta em um aro de luz branca. Sesshomarou parecia um pouco ferido e cansado, mas tomou-a nos braços e deu uma última olhada para ele antes de voar rapidamente para longe.
Ichiro sentiu uma última memória passando... Inuyasha sangrava, encostado no Poço Come Ossos e Sesshomarou conversava com ele.
A luz azul cessou, entrando completamente dentro dele, pelo peito. Seus cabelos sacudiram-se e Kagome viu quando uma pequena mecha de seu cabelo tornou-se branca como a lua. As mãos em volta do cabo da espada afrouxaram-se enquanto a lâmina voltava a ser o que era na primeira vez que Ichiro a tocou. Ele ouviu o tilintar dela caindo na grama. De repente, o cansaço abateu-se sobre ele e lembrou-se dos três rasgos na altura das costelas e do sangue que jorrava profusamente deles.
Ele virou-se a tempo de ver Kagome largando o arco e flecha e correndo na sua direção.
E então tudo ficou escuro. E a única coisa que lhe restou, foi aquela última memória, projetando-se na sua mente dormente.
Sesshomarou era um solitário, sempre iria ser.
E a grande ironia disso era que, mesmo assim, assinara um contrato que prendia uma humana a ele. Mas era cheio de contradições. Sempre fora.
Há muito deixara de tentar compreender porque fazia o que fazia e porque se importava com as pessoas que se importava. No fundo, sabia que Rin era a responsável pela maior parte de suas incoerências. Antes dela, ele era um youkai muito simples de entender.
Egoísta. Cruel. Impiedoso.
Por vezes pensava que, na verdade, não poderia escapar de ter o mesmo destino que seu pai. Alguma memória espiritual tinha que explicar isso. O mesmo caminho que ele trilhara ao se apaixonar por uma humana, o mesmo caminho que fora a ruína de Inuyasha. Depois que Sesshomarou encontrou Rin, passou a pensar o mesmo: ela seria a sua ruína também.
Mas àquelas alturas, já se importava tão pouco com a própria vida que simplesmente deixou acontecer. Um erro. Daqueles que é impossível corrigir, ou voltar atrás.
A verdade é que ele era, antes de mais nada, resignado. Ou qualquer coisa do tipo. Tinha se tornado o oposto de ambicioso. Alimentando, dando abrigo e convivendo com uma humana... era o que lhe bastava. Não queria mais nada além disso.
Não queria complicar o que já estava indecifrável.
Ele deixou aqueles pensamentos se esvaírem enquanto tentava encontrar um lugar seguro para abrigar-se com Rin, que jazia inconsciente em seus braços. Lembranças muito antigas lhe vinham à mente. Mas Sesshomarou tinha acabado de acertar as contas com seu destino. E não havia nada mais a temer.
Era assim que lidava com suas contradições. Acreditava no destino agora. Era tão mais calmo. Tão mais cômodo.
Ele finalmente encontrou um bom local e flutou em direção ao chão. Ele deixou Rin descansando confortavelmente encostada em uma árvore. Logo em seguida, sua mão foi direto para a bainha da espada que instantes antes jazia embainhada em sua cintura. Desamarrou-a calmamente e a observou lembrando-se da lâmina feia e enferrujada.
A tessaiga e a tenseiga eram os símbolos da visão que Inu no Taisho tinha de cada filho. Isso era algo que sempre o incomodara e que nunca tinha aceitado por completo. Mas aprendera a conviver.
Lembrou-se da última vez que vira o irmão.
Do pedido que ele fizera.
O cheiro do sangue dele parecia impregnar o ar. Seu faro apurado de youkai parecia tornar-se ainda mais sensível quando se tratava de sangue do seu sangue.
Na noite anterior, a humana atirara a flecha final que aniquilaria para sempre o desafeto que eles dois tinham em comum. E, passadas algumas horas, até mesmo Sesshomarou custava a acreditar que Naraku estava, efetivamente, morto.
Mas a que custo?
Sabia que Inuyasha não iria sobreviver. Depois de lutarem lado a lado, deixou que os humanos o levassem e tentassem de tudo para salva-lo. Mas Inuyasha cheirava a morte. E Sesshomarou sabia o que fazer em seguida.
Foi muito fácil encontra-lo.
Parecia estar flutuando em seu próprio sangue, encostado naquele poço, de cabeça baixa, a respiração apenas por um fio, a pele pálida - e certamente fria - suando em profusão.
Não teve nenhuma dúvida, sem pensar, sua mão flutuou na direção da tenseiga e quando seu punho se fechou na bainha, ouviu-o protestar, com um fiapo de voz.
- "Não. Sesshomarou..." - Inuyasha ainda mantinha a cabeça baixa.
Sesshomarou ergueu uma sobrancelha, sem entender. Não esperava que houvessem objeções. Se alguém poderia hesitar diante daquele desfecho, esse alguém, muito provavelmente, seria ele mesmo. Mas tinha certeza do que fazer. Não por ser o que queria. Sesshomarou não pensava muito sobre o que queria, na verdade. Acessar seus sentimentos era algo que ele evitava sempre que podia. Não. Sua mente não suportaria saber que seu coração sentia compaixão por mais uma pessoa além de Rin.
Nem que essa pessoa fosse seu próprio irmão.
Ele salvaria Inuyasha porque seria aquilo que Inu no Taisho desejaria que ele fizesse.
Simples assim.
Será que este era o destino dos dois irmãos, no final das contas? Que um salvasse a vida do outro? Era bem o tipo de coisa que o pai deles aprontava. A revolta surgiu dentro de si. Como Inuyasha ousava recusar?
- "Você quer morrer?" - disse ele, rispidamente - "Não ama aquela humana o suficiente?"
Inuyasha deu um sorriso. Parecia debochar da falta de conhecimento de Sesshomarou.
- "Você não... entende..." - respondeu ele, as palavras custando a sair - "É o certo a se fazer... eu... não vou voltar mais, porém... não importa."
Obviamente.
Obviamente ele não iria voltar.
A menos que o deixasse usar a tenseiga para traze-lo de volta a vida.
- "Inuyasha... eu não vou insistir." - retrucou ele, ofendido, desembainhando a espada, por fim.
Sesshomarou brandiu a tenseiga. O fino véu que ocultava o submundo lentamente se desfez diante de seus olhos... Esperou encontrar um grupo de seres asquerosos aproximando-se do corpo de Inuyasha, pois era sempre assim que acontecia. Estava pronto para esquarteja-los, porém...
Seu rosto transformou-se numa expressão de choque e surpresa que, inacreditavelmente, parecia ser algo que Inuyasha já esperava.
- "Você não os vê... não é?" - perguntou ele, como se já soubesse a resposta.
Sesshomarou insistiu, a tenseiga diante dele, tentando esconder que havia se assustado. Nunca tinha presenciado aquilo antes, mas ouvira falar.
Inuyasha ergueu o rosto para encara-lo e Sesshomarou percebeu que seu irmão estava envolvido em uma aura pura e transparente de tranquilidade total. Não havia nenhum traço de medo, tristeza ou qualquer outro tipo de angústia em seu rosto. Ele estava morrendo em paz... e sua alma se esvaindo de um corpo vivo pelo que seria a última vez.
A última encarnação.
Então era assim... que se atingia o nirvana.
Ele observou duas entidades similares a meninas aproximando-se do corpo, a fenda ainda o permitia enxergar muito claramente os seres do submundo. Mas aquelas duas não pareciam ser de lá. Eram como seres de luz, qualquer tipo de coisa mais pura, porém ainda assim, abaixo de qualquer divindade.
Ele viu uma luz azul brilhar no peito de Inuyasha.
Perguntou-se porque existiam dois daqueles seres. Por qual motivo estariam ali, com que intuito? E porque elas contemplavam a luz que surgia de Inuyasha como se cada uma delas fosse ficar com uma fatia.
- "O que pensa que está fazendo? Você não vai reencarnar mais."
Inuyasha sorriu. De repente, entendeu que aquele era também o motivo por estar sentindo seu coração tão em paz: atingira o nirvana. Ironicamente, se sentira culpado a vida toda por Kikyou não ter conseguido converter-se em pura alma... e agora, ele, um simples hanyou, conseguira.
O que tornava sua missão de voltar para Kagome um pouco mais complicada... mas não impossível.
A tenseiga não poderia ser usada para traze-lo de volta, porém...
- "Eu sei. Você não pode me ressuscitar... Eu... entendi tudo ontem."
- "Certamente... então entende que nem sua alma lhe pertence mais." - respondeu Sesshomarou, desviando o olhar.
- "Nunca pertenceu, de qualquer forma." - ele soltou uma risada seca - "Sempre fui dela."
Sesshomarou observou quando as criaturas encostaram no peito de Inuyasha, cada uma com seu dedo indicador. Lentamente a luz dele passou a ser drenada para elas.
Em parte iguais, ao menos a uma primeira vista.
- "Se continuar com isso... Vai dividir-se." - alertou ele.
- "Eu sei... Uma parte vai ter que ficar aqui... não é?" - era o único jeito. Arriscado, porém o único.
A conversa que tivera com Kagome na noite anterior o fez enxergar algo que estava bem na frente deles o tempo todo. Suas almas pertenciam uma a outra. Ia muito, muito além das vidas que eles estavam vivendo agora. Ele só não contava que conseguiria atingir o nirvana. Logo ele, um hanyou que passou boa parte da vida sozinho, sem confiar em ninguém... Mas no minuto que sentiu a calma inexplicável invadir-lhe, entendeu: sua alma, inesperadamente, alcançara o estado mais puro.
Só que ele precisava reencarnar. Mais do que isso: ele queria reencarnar.
- "Você é um tolo." - ouviu a voz do irmão carregada de desprezo.
Sesshomarou mal podia acreditar. Inuyasha não aprendera absolutamente nada com o que aconteceu com Kikyou. Com o ódio que permitira que ela, a princípio, continuasse sobrevivendo mesmo com aquele corpo de barro e ossos. Mesmo assim, Kikyou não chegara nem perto de purificar sua própria alma. A gota d'água sendo seus desejos egoístas à joia.
Inuyasha não fazia ideia do que poderia acontecer a uma pura alma bipartida entre duas linhas temporais diferentes. E, por isso, era um tolo.
E se um dos pedaços retivesse mais partes negativas do que o outro? E se sua reencarnação fosse um ser incompleto? E se as partes de sua alma que a faziam ser o que era ficassem ali, naquela era, para sempre?
Mas principalmente: como os dois pedaços iriam se encontrar novamente?
- "Leve a tessaiga e vá embora." - pediu Inuyasha.
- "Essa espada é inútil para mim." - respondeu ele, sem acreditar na aparente futilidade daquele último pedido. Do que lhe importava que guardasse a tessaiga consigo quando ele estava estraçalhando sua própria alma por uma chance de ficar com a humana?
- "Guarde-a. Se algum dia alguém retornar para busca-la... bem... você saberá. Irmãos sempre sabem... por mais que se odeiem."
Sesshomarou suspirou.
Mesmo para alguém insensível como ele, deixar Inuyasha ir embora com aquela certeza era simplesmente impiedoso demais.
- "Eu não te odeio." - respondeu ele, se abaixando para desamarrar a tessaiga da cintura do irmão - "Eu só te acho... um completo idiota."
Inuyasha riu e abaixou a cabeça, já sem forças. Algo dentro do peito de Sesshomarou doeu.
Compaixão? Amor? Pensou ele, enquanto obedecia o pedido e atava a bainha da tessaiga à sua cintura. Ele levantou-se e olhou para baixo novamente.
Sua mão lentamente ergueu-se, na direção da cabeça abaixada de Inuyasha, os dedos abrindo-se, como se ele fosse... acaricia-lo pela primeira e última vez.
Congelou. Não seria capaz. Sua mão caiu ao longo do corpo de novo.
- "Nunca vou te perdoar por isso." - disse ele e esperava que Inuyasha soubesse os mil significados que aquela frase carregava. Mas seu peito já pesava demais. Não queria ficar nem mais um minuto ali. Ademais, a humana se aproximava. Podia sentir o cheiro enjoativo dela chegando mais perto.
Definitivamente não ia ficar ali para ver a despedida dos dois.
Visitara o lugar que tinham escolhido para deixa-lo algumas muitas vezes ao longo dos anos. Nesse meio tempo, fez o contrato com o submundo pela tenseiga e depois que Jaken se foi, Rin tornou-se sua única companheira. Não via sentido em manter consigo uma espada que ressuscitava os mortos. O sangue do seu sangue não existia mais e sua única preocupação era Rin. Nada mais lógico do que prolongar a vida dela, a única vida que agora o importava.
Ele se lembrou que sua única preocupação naquela época tinha sido a forma como Inuyasha tinha dividido sua alma e o que isso poderia causar a ele, apenas a ele.
Mas nunca iria imaginar que algo assim pudesse bagunçar tanto o mundo em que viviam. Uma pura alma presa, querendo encontrar-se com sua outra metade. Por um tempo, esperou que Kagome fosse reaparecer e, de alguma forma, reter o pedaço consigo, levar embora, o que fosse.
Mas 105 anos se passaram e as coisas só pioravam.
Era difícil para youkais normais se manterem sãos diante de tantos desequilíbrios energéticos. Muitos enlouqueciam e acabavam se matando no Poço Come Ossos. Sesshomarou tinha sorte por não ser tão suscetível assim. Mas temia que, um dia, um desses youkais conseguisse atravessar o poço. E aí ninguém poderia prever o que aconteceria. Ou o rastro de destruição que poderia ser causado.
Mas por sorte, o plano de Inuyasha dera certo.
Sesshomarou sorriu. Finalmente. Estava livre.
Tinha conseguido ativar no humano o que precisava para que o que sobrara de sua alma voltasse para o corpo onde nunca tinha estado. Sua dívida com o destino estava, por fim, paga.
Ele admirou o rosto de Rin. Tocou-lhe a bochecha com delicadeza.
Só queria viver uma vida inteira com ela. Será que até mesmo aquilo era pedir demais?
Esperava que não.
Até mesmo youkais detestáveis como ele poderiam ser felizes. Sesshomarou acreditava que ele merecia. Ao menos agora... depois de tudo o que ele tinha feito... merecia.
Kagome estava sentada, imóvel. Ela era observada por Hatsue que tinha acabado de entrar apressadamente trazendo nas mãos uma tigela larga e quente contendo as ervas que acabara de de cozir: o medicamento para acelerar a recuperação de Ichiro. Diante delas, o corpo dele se estendia, o peito levantando a cada respiração. O tecido que o cobria e que elas trocaram vinte minutos atrás estava novamente ensopado de suor e, como quem pareceu adivinhar a necessidade, Yukiji entrou rapidamente na cabana com mais três longos cobertores brancos e limpos.
- "Hatsue-sama!"
- "Aqui, Yukiji." - Kagome levantou-se e estendeu os braços para receber o que ela estava entregando, tudo isso sem tirar os olhos um só segundo de Ichiro - "Obrigada."
Ela deixou os cobertores em um dos cantos e retornou para sentar-se ao lado dele novamente. Felizmente, conseguira não perder as contas: os batimentos de Ichiro estavam acelerados, como se ele estivesse com taquicardia. Ela juntou as pontas das mangas de sua roupa num só nó e jogou-as para as costas a fim de ter mais mobilidade. Hatsue já havia feito o mesmo e agora passava uma segunda tigela para Kagome. As duas trabalhavam em silêncio, umedecendo as gazes caseiras na água quente e repousando-as sobre os ferimentos dele.
Não havia nenhum osso quebrado, de forma que o importante era fazer com que a febre cedesse. Uma infecção poderia ser fatal e os cortes nas costelas de Ichiro eram profundos. Apesar disso e para alívio de Kagome, nenhum órgão fora atingido e elas puderam focar em limpar as feridas e ajudar a acelerar a cicatrização.
Ichiro estava entre o consciente e o inconsciente. De olhos fechados, sobrancelhas unidas, ele não parava de se mexer. Parecia estar prestes a acordar de um pesadelo que já durava tempo demais.
Mais cedo, naquela manhã, Shippou foi o primeiro a notar que algo estava errado quando o cheiro de sangue o fez entrar em alerta. Foi ele que as acordou em desespero e, desde o instante em que estavam correndo em disparada ao encontro de Ichiro, até aquele momento, não houveram pausas para conversar sobre nada do que tinham presenciado. Kagome sabia que, lá fora, Shippou estava ansioso dando voltas em si mesmo a minutos a fio. Ela conseguia ouvir suas passadas repetindo-se.
Com dificuldade, tentava elaborar em sua mente o que vira.
Foi tudo muito rápido.
Chegaram a tempo de ver Ichiro agarrar a tessaiga que Sesshomarou carregava e desembainha-la enquanto o youkai se afastava. Pelo visto, já estavam lutando a algum tempo, pois das costelas de Ichiro jorrava sangue em três grandes cortes aparentemente feitos pelas garras de Sesshomarou.
Seu primeiro pensamento foi "porque?"
Que razão Sesshomarou tinha para ataca-lo daquela forma? Sim, ele não era confiável, mas porque se daria o trabalho? O que ganhava com isso?
Ela levou uma mão à testa de Ichiro para verificar novamente os sinais de febre. Ele ainda estava quente. Kagome admirou a mecha fina de cabelo, próxima ao rosto dele, que se tornara branca em algum momento.
Sim, ela achava que Ichiro poderia ser a reencarnação de Inuyasha. Mas jamais, em tempo algum, esperou que fosse encontra-lo envolvido em pura alma, com a tessaiga em mãos na sua forma transformada e ainda...
Ele conseguira formar uma ferida do vento. Um humano.
Aquilo era loucura. E mais loucura ainda era ter visto a forma como Sesshomarou reagira. Kagome tinha certeza que os reflexos dele eram melhores que aquilo. Ele poderia ter desviado do golpe.
Mas não.
Kagome acariciou os cabelos de Ichiro por vários minutos, em silêncio, ainda tentando raciocinar. Ela observou o peito dele acalmar-se com o passar do tempo enquanto sua frequencia cardiáca diminuía. Quando colocou novamente a mão na testa dele, pensou que estava menos quente.
Suspirou aliviada.
Hatsue levantou-se e recolheu os recipientes que estavam usando para trata-lo, entregando-os para Yukiji. Ela acendeu um incenso em seguida, ajoelhou-se diante dele de novo e fez uma oração curta, de olhos fechados. Finalmente, ergueu a cabeça para encarar Kagome.
- "Acho que ele está respondendo, Kagome-sama."
- "Sim..." - ela assentiu, pensativa.
Hatsue hesitou antes de continuar a conversa.
- "Não estávamos erradas, afinal."
Kagome sorriu, arrumando os cabelos de Ichiro atrás de uma orelha enquanto ele ressonava. Parecia agora dormir tranquilo. Um sentimento de alívio invadiu-a por inteiro.
Não suportaria perde-lo.
- "Eu sinto... que acabou." - disse ela, por fim.
- "Sim..." - confirmou Hatsue - "Acho que é seguro afirmar que... está tudo dentro dele agora."
Kagome não soube muito bem o que aquela frase significava, mas não queria ter aquela conversa ali. Precisava respirar agora que sabia que as coisas iriam ficar bem.
- "Vamos lá fora, Hatsue-sama." - convidou Kagome, já levantando-se - "Vamos deixa-lo descansar. Shippou também deve querer saber que Ichiro está melhorando."
Hatsue assentiu e seguiu Kagome para o lado de fora.
Shippou parou abruptamente assim que as viu, procurando sinais na expressão das duas. Não precisaram dizer uma só palavra para se comunicar: Kagome viu o alívio surgir no rosto dele, Hatsue encostou uma mão em seu ombro, tranquilizando-o.
Parecia-lhe que Shippou não aguentaria presenciar mais nenhuma morte, era o que Kagome pensava. Muito provavelmente o fato de ter visto todos morrerem o marcara para sempre. E ainda, o ciclo de sacerdotisas que tinha jurado proteger, indo embora, uma a uma, cada vez mais cedo de acordo com o passar dos anos. Não era fácil. Ele poderia ter optado por viver como um youkai livre e solitário, mas não. Estar próximo aos humanos era a sua escolha, mas não significava que era uma escolha fácil nem muito menos sem sacrifícios.
- "Ele vai ficar bem, então?" - conseguiu perguntar ele.
- "Sim." - afirmou Hatsue, sorrindo - "Conseguimos fazer a febre baixar. Agora é com o corpo dele. Precisa descansar... dormir o quanto puder."
Shippou riu ironicamente.
- "Para um humano que conseguiu manejar a tessaiga..." - ponderou, em voz alta - "Isso não vai ser nada..."
Quanto mais Kagome repassava em sua mente o que acontecera, mais os detalhes que ela relembrava a intrigavam. Eles andaram por alguns minutos até se afastarem o suficiente do vilarejo para conversarem a sós. Quando pararam, Hatsue iniciou a conversa parecendo adivinhar o tumulto na mente de Kagome.
- "Você ainda não entende, não é, Kagome-sama?"
Shippou, que observava o céu com as mãos atrás da nuca, virou-se para as duas.
- "Eu... Bem... Eu sei que a pura alma está em Ichiro agora... eu já... vivi algo parecido." - Kagome estremeceu ao lembrar-se.
Seu olhar encontrou o de Shippou e eles souberam naquele instante que estavam compartilhando da mesma memória.
O dia em que a bruxa Urasue profanou os ossos de Kikyou.
Kagome lembrava-se vividamente da sensação de estar sem alma. De ser uma casca, um grande vazio. Ela sentira-se oca nos braços de Kaede, que observava Kikyou atirar flechas espirituais sucumbidas de ódio.
Na direção de Inuyasha.
Já Shippou recordava-se do pânico que sentira. Kagome dormiria para sempre caso a alma dela não retornasse ao seu corpo, foi o que Kaede disse. E ele nada pudera fazer sobre isso.
Uma das flechas de Kikyou fora mais forte que a tessaiga atingindo Inuyasha no peito. Ele gritara.
E foi quando Kagome acordou.
- "Urasue..." - murmurrou Hatsue, mais para si mesma, mas em seguida elevando a voz e perguntando a Kagome - "Como você conseguiu reaver sua alma naquele dia, Kagome-sama?"
Ela parou por alguns instantes antes de responder. Suas memórias daquele dia eram turvas, talvez pelo fato de que sua alma foi momentaneamente para a imitação de barro e ossos do corpo de Kikyou. Mas ela lembrava vividamente de algumas coisas.
E a principal delas era Inuyasha.
- "A voz dele." - Kagome desviou o olhar e se colocou de costas, admirando o céu - "Quando Inuyasha gritou de dor... Eu... Eu não pude..."
Hatsue assentiu com a cabeça. Ela deu alguns passos para chegar até Kagome e repousou uma mão no ombro dela para vira-la novamente. Quando seus olhares se encontraram, Hatsue tomou suas mãos nas dela.
- "Quando uma alma é tirada de um corpo é preciso algo muito poderoso para que ela retorne." - Hatsue sorriu para Kagome - "Precisa ser algo que faça reverberar a vontade de viver. Mais do que tudo... E no seu caso... foi Inuyasha."
- "Foi só quando Ichiro viu a Kagome que a tessaiga se transformou." - interrompeu Shippou aproximando-se das duas - "Foi só quando ele soube que você estava ali que... conseguiu reaver a parte que faltava."
Hatsue ficou muito quieta de repente, como se estivesse refletindo sobre algo que considerava muito doloroso.
- "Ele viveu esse tempo todo..." - falou ela finalmente, quase como que pensando em voz alta - "Esse tempo todo, Kagome-sama... faltava um pedaço dele. Me pergunto como conseguiu viver tanto tempo assim..."
Por mais que tentasse se colocar no lugar dele, Kagome não conseguia nem começar a imaginar a sensação. Sabia que as situações eram diferentes em alguns aspectos; que ficar sem sua alma inteira por alguns minutos não se comparava a ficar apenas sem uma fração dela pela vida inteira. Porém, a quantidade de pura alma que havia ficado presa ali parecia ser considerável.
Era o suficiente até mesmo para instabilizar o véu que separava as duas eras.
- "Era isso, não era...? Que estava causando as perturbações." - raciocinou Kagome - "A pura alma precisava retornar para Ichiro... que estava na outra era. Na minha Era."
Hatsue assentiu. Shippou a olhou, surpreso.
- "Então... Tudo isso..." - ele olhava de uma para outra, sem acreditar - "Tudo isso era... as duas partes da alma dele tentando se reencontrar? É loucura..."
- "Sim... mas... é isso. Eu tenho certeza." - afirmou Hatsue.
Shippou parou por um instante e em seu rosto dava para ver claramente que ele estava pensando. Tanto que Kagome achou que poderia ouvir a mente dele a qualquer momento. Em seguida seus olhos cintilantes arregalaram-se e ele virou-se para Hatsue, apontando para ela.
- "Você... você já sabia! Você tinha pensado nisso antes...!"
Os lábios da sacerdotisa curvaram-se em um sorriso.
- "Desde que você me disse que ele era a reencarnação de Inuyasha, Shippou-kun." - confirmou ela, enquanto olhava de Kagome para ele - "Mas eu não pude falar nada. Não tinha absoluta certeza. Mas agora está claro. E tudo que Ichiro precisa fazer é sobreviver... Deve estar sendo um choque e tanto."
Kagome a olhou apreensiva.
Ela lembrava que se sentira terrível depois de sua alma retornar ao corpo. A fadiga era tanta que era como se todos os seus músculos estivessem inflamados ao mesmo tempo. Kaede lhe dissera que seu corpo flutuara e ricocheteara violentamente a cada fração da alma que forçava seu retorno. O que isso poderia significar então para Ichiro? Como ele estaria se sentindo ao despertar? Será que isso afetaria a cicatrização dos ferimentos?
- "Eu preciso... eu... preciso buscar mais ervas..." - divagou ela, perambulando com um olhar dissociado e pensativo que preocupou Hatsue e Shippou - "Ele tem que se recuperar... logo."
Shippou trocou olhares com Hatsue e eles se comunicaram do jeito único e silencioso que apenas eles conseguiram entender. O youkai, preocupado, se perguntava se era uma boa ideia deixar Kagome perambular sozinha naquele estado pela floresta. Ao que Hatsue respondeu que tirar um tempo para si seria bom para Kagome esfriar a cabeça.
- "Eu te acompanho, Kagome." - disse ele, seguindo-a, Kagome acenou a cabeça afirmativamente, ainda de costas para os dois.
- "Encontro vocês mais tarde." - despediu-se Hatsue.
Mas antes que ela pudesse começar seu caminho de volta ao vilarejo, Kagome a chamou novamente.
- "Hatsue, só... me avise caso..."
Kagome não precisou concluir a frase para que a sacerdotisa entendesse o que ela queria dizer.
- "Se ele acordar, alguém virá chama-la imediatamente, Kagome-sama." - ela encarou Shippou, cumprimentando-o - "Shippou-kun."
Enquanto caminhava, Kagome tentava manter a mente focada nos tratamentos naturais que ela se recordava de ter aprendido com Kaede. Surpreendentemente, sua memória não falhou, talvez porque soubesse que ela estava concentrando todas as suas forças na melhora de Ichiro. Ela seguiu colhendo o que achava necessário, com Shippou observando-a, ora do alto de alguma árvore, ora caminhando alguns metros atrás dela.
Retornaram para o vilarejo e assim que Kagome desocupou sua mente por alguns instantes, as perguntas retornaram a sua mente com uma insistência irritante.
Mas ela decidiu que esperaria Ichiro acordar. Acreditava que algumas coisas só poderiam ser respondidas por ele e que a melhor forma de ajuda-lo seria dedicando todo o seu tempo a cuidar dos ferimentos ou pesquisar formas de acelerar sua melhora.
Ichiro dormiu durante todo o dia, para angústia de Kagome. Hatsue repetia que o fato da febre não estar voltando era um bom sinal, mas a cada minuto que Ichiro passava desacordado, um medo avassalador a preenchia.
O medo de que ele não tornasse a abrir os olhos.
À noite, ela e Hatsue se revezaram observando-o, muito embora Kagome tenha insistido diversas vezes para continuar acordada enquanto Hatsue descansava. No final das contas, não ia conseguir dormir de qualquer forma. Precisava se sentir útil e estar ali, ao lado dele, acariciando de leve sua mão a fazia sentir-se melhor.
Hatsue insistiu para que ela dormisse. Mesmo cansada, Kagome só conseguiu fechar os olhos por algumas horas, apenas na manhã seguinte, e não conseguiu deitar-se de fato. Dormira sentada, encostada na parede, ainda envolvendo a mão de Ichiro na sua.
Se ele se mexesse, ela saberia e despertaria.
Na segunda noite ela repetiu a mesma coisa e Hatsue preocupou-se. Os olhos de Kagome pareciam querer fechar-se sozinhos, mas sua mente se recusava a desligar. Foi só depois de passar praticamente três dias acordada que ela finalmente cedeu e bebeu um chá calmante para tentar ter algum sono decente.
Kagome enrolou um cobertor para formar uma espécie de travesseiro e deitou-se ao lado de Ichiro. Ainda demorou uma ou duas horas para que realmente conseguisse dormir de fato. Seus olhos, mesmo fechados, pareciam ter o rosto dele impresso nas pálpebras.
E seu sono só foi tranquilo porque sonhou com ele.
A primeira coisa que ele sentiu foi um cheiro de... sândalo. E lá longe, parecia que havia chovido - ou iria chover em breve - como se a terra ainda estivesse molhada ou as primeiras gotas de chuva tivessem acabado de começar a cair.
Depois, se deu conta de que parecia misteriosamente mais pesado. Como se de repente seus ossos, órgãos, sangue, tudo pesasse duas vezes mais do que antes. Era um pouco incômodo, mas quando Ichiro experimentou mexer-se na cama um pouco, percebeu que seria o tipo de coisa com a qual provavelmente se acostumaria com o tempo. Parecia... certo.
Sentia-se completamente diferente de um modo geral, mas, caso tentasse explicar em detalhes, não conseguiria. Lembrou-se aos poucos das últimas coisas que havia feito antes de apagar e dormir por... sabe-se lá quanto tempo. Mesmo ali, ainda deitado e de olhos fechados, ele sentia uma diferença no ar: aquele não era o mesmo dia.
Por quantos dias dormira?
Batalhara contra um youkai, o tipo de coisa que ele falava a Souta que faria, mas sempre em um tom mais de brincadeira, apesar de admitir a real possibilidade. E não havia sido qualquer youkai. Sesshomarou. O irmão de Inuyasha. Inuyasha que, aparentemente, deixara aquela luz azul ali, para ele de presente. Um presente que Ichiro ainda não tinha certeza se era bom ou ruim.
Ele ganhara a batalha? Porque tinha a estranha sensação de que no final de tudo Sesshomarou estava poupando-o de algo? Muito estranho. E o que dizer daquela espada aparentemente inútil e enferrujada que se transformara nas suas mãos? Lembrava vagamente de Souta falando que a arma de Inuyasha fazia algo parecido e da vez que ele insistira em matar uma simples barata e acabou destruindo uma parede inteira da casa de Kagome.
Inuyasha. Tentou recordar-se de todas as memórias que havia acessado enquanto a luz azul tomava conta de seu corpo, mas era como acordar depois de um longo sono e tentar lembrar-se dos detalhes dos primeiros sonhos da noite. Muitas coisas lhe escapavam, mas ele recordava-se de algumas imagens e principalmente, da última delas, uma conversa entre Inuyasha e Sesshomarou, provavelmente a última conversa que eles tiveram.
Sua mente doeu diante do esforço mental em tentar montar os cacos de lembranças. Ichiro parou. Apertou os olhos preparando-se para levantar, mas quando tentou mexer as mãos, sentiu algo agarrando uma delas.
Era ela.
Dormia de bruços, no chão, ao lado dele, os cabelos longos jogados em suas costas, subindo e descendo de acordo com a sua respiração. Parecia tão tranquila e relaxada, exceto pela mão entrelaçada na sua. Ichiro sorriu, sentou-se com cuidado, sem se mexer muito, a fim de não desperta-la. Deslizou seus dedos por entre os dela com dificuldade, mas conseguiu soltar-se e levantou, não sem antes sentir uma pontada nas costelas.
Ele estava com metade do torso enfaixado, fora alguns curativos em locais aleatórios dos braços e costas. Estava descalço e vestido apenas da cintura para baixo. Ichiro andou com certa dificuldade até a porta e abriu-a pela metade, colocando a cabeça para fora: ele viu a chuva começando a chegar no horizonte e os aldeões recolhendo suas roupas apressadamente. Ele avistou Shippou e Hatsue caminhando um pouco mais distante enquanto conversavam. A sacerdotisa puxava uma criança do vilarejo pela mão, enquanto na outra carregava um cesto com o que pareciam ser ervas. Shippou equilibrava na cabeça uma pilha de três cestos enormes recheados de plantas.
Ichiro fechou a porta quando sentiu os primeiros pingos de chuva começarem a cair. Kagome ainda dormia na mesma posição. Ele procurou o canto da cabana, onde geralmente ficava encostada uma cômoda com alguma garrafa de água e dois ou três recipientes rasos. Agachou-se, derramou um pouco de água numa tigela e limpou o rosto, esfregando os olhos e passando a mão pelos cabelos. Ele notou um pequeno espelho de mão na cômoda e usou-o para ver seu reflexo.
Parecia um pouco... diferente.
Talvez diferente não fosse exatamente a palavra. Mas, de alguma forma, seus olhos pareciam mais relaxados, o que dava a ele um aspecto mais tranquilo, quase juvenil. Ele virou o rosto de lado e percebeu uma mecha de cabelo branca deslizar, repousando próximo ao seu olho.
Desde quando tinha aquele sinal?
Puxou os cabelos para trás tentando entender onde a mecha começava. Se traçasse uma linha reta do início da sua sobrancelha direita até o topo da cabeça, encostaria exatamente nela. Mas enquanto analisava sua imagem no espelho ele ouviu Kagome se mexer atrás de si. Largou o espelho na cômoda e virou-se. Encontrou-a tateando o espaço em que ele estava dormindo instantes antes. Ela sentou-se rapidamente parecendo assustada, mas ainda sem perceber a presença dele.
- "Ei." - chamou Ichiro.
Kagome levou uma mão ao peito e pulou para trás, assim que seu olhar encontrou Ichiro. Ela passou alguns segundos sentada ali, tentando fazer a respiração voltar ao normal enquanto ele se aproximava dela, sentando-se na cama de novo. Encarou Kagome, confuso inclinando a cabeça pro lado.
Sem dizer nada, ela se aproximou um pouco, ajoelhando-se diante dele. Os olhos azuis não pareciam nada sonolentos, muito embora ela tivesse acabado de acordar. Kagome coçou-os com as mãos e olhou mais uma vez para Ichiro, como se quisesse ter certeza de que aquilo realmente estava acontecendo.
- "O que foi?" - perguntou ele, rindo - "Não queria me ver?"
Ichiro se arrependeu da brincadeira no instante em que os olhos dela começaram a brilhar intensamente com as lágrimas que se formavam.
Mas ele não teve tempo para se desculpar. Kagome avançou para cima dele equilibrando-se nos joelhos e envolveu seu pescoço com os braços quase derrubando-o. Ele espalmou as mãos no chão para apoiar-se e evitar a queda.
Kagome descansou a testa em seu ombro e Ichiro ouviu-a fungar.
Seu coração pareceu encolher-se dentro de si.
- "Kag-kagome... me desculpe..." - não conseguiu pensar em nada mais para dizer - "O que foi? Você se machucou?"
Ela riu por entre as lágrimas e desencostou a cabeça do ombro dele para encara-lo.
- "É claro que não!" - ela achava aquela pergunta absurda - "Porque sempre que VOCÊ quase morre me pergunta isso?"
Ele riu, constrangido. Sabia do que ela estava falando. Lembrou-se de quando um youkai saiu do poço na Era Atual. Ichiro estaria morto se Kagome não tivesse intervido bem na hora.
Naquele dia, ela também chorara de alívio ao ver que ele estava bem. E ele, confuso, não foi capaz de imaginar que era ele mesmo a razão por trás de seu choro.
- "E-eu pensei que..." - tentou encontrar as palavras para se explicar, mas quando a encarou de novo sentiu que não precisava. Kagome encostou a testa na dele.
Ichiro tomou o rosto dela com as duas mãos e a afastou para olhar seu rosto. Kagome alisou os cabelos dele, percebendo o novo sinal branco chamando atenção entre os fios negros. Ela sorriu mais ainda.
- "Desculpe." - repetiu ele, atraindo o olhar dela para o seu de novo - "Te assustei, não é?"
- "Muito." - Kagome relaxou e desvencilhou-se, limpando as lágrimas sentando-se em cima dos próprios joelhos, entre as pernas de Ichiro. Ele manteve uma delas estendida enquanto dobrava a outra. Encostou o cotovelo no joelho e descansou o queixo numa mão, admirando-a. O outro braço ergueu-se e ele começou a acariciar os cabelos dela, emaranhando os fios entre os dedos.
Sentiu que poderia ficar ali pra sempre.
Kagome deslizou as mãos pelo peito dele, verificando os curativos. Ichiro não conseguia tirar os olhos dela. Sentiu os dedinhos pequenos desenhando formas pelo seu corpo, deixando um rastro de arrepios. Não conseguiu deixar de soltar um suspiro que fez Kagome encara-lo imediatamente.
- "Qual seu veredicto?" - provocou ele, entre um arrepio e outro - "Tudo certo aí?"
Ela riu da pergunta. Ichiro sentiu que poderia sobreviver a um mês inteiro com apenas um copo d'água e aquele sorriso.
- "Você parece... perfeito..." - ele ergueu as sobrancelhas para ela, que se sentiu tentada a completar a frase - "...pra mim. Q-quer dizer, na minha opinião."
Ichiro estreitou os olhos para ela em tom de brincadeira, como se quisesse investiga-la.
- "Flertando comigo, Higurashi?"
Ela sorriu de novo, meio sem jeito, afastando a mão. Queria toca-lo, queria que ele a abraçasse como tinha feito naquela noite. Queria sentir os corpos deles mais próximos... mas não sabia exatamente como pedir. Não sabia como provoca-lo. Talvez tivesse sido melhor falar com Sam sobre esse assunto antes de sair tentando seduzi-lo, mas agora já era tarde demais. Não achava que Ichiro a daria tempo para isso.
Teria que ir no instinto.
Mas antes que pudesse pensar em fazer qualquer coisa do tipo, eles ouviram a barriga de Ichiro protestar ruidosamente de fome. Kagome riu e as bochechas dele coraram enquanto se afastava e cobria o corpo com os braços.
- "Ei! Não tem graça!" - reclamou, tentando segurar o próprio riso. Ela percebeu e gargalhou ainda mais alto.
- "Ah, não fique constrangido!" - amenizou enquanto as risadas cessavam - "Você dormiu por três dias. O que esperava?"
Ichiro franziu o cenho, confuso. Com certeza imaginava ter dormido por mais de um dia, mas não tudo aquilo.
- "Eu... apaguei?" - ele coçou a cabeça, tentando lembrar-se - "Por três dias inteiros?"
Kagome assentiu enquanto colocava a mão na testa dele para se certificar que a febre havia sumido definitivamente. Em seguida, levantou-se e caminhou até a porta. A chuva estava indo embora, pelo visto, era apenas uma precipitação de verão.
- "A gente devia encontrar algo pra você comer. Já passa do meio dia."
Ela o ajudou a vestir-se sem forçar as ataduras e saíram, Kagome insistindo para que ele passasse um dos braços em volta do ombro dela. Ichiro concordou prontamente sem ter intenção alguma de usa-la como apoio, mas deixou Kagome pensar que estava ajudando-o a andar.
Não deram mais do que quinze passos até encontrarem Shippou e Hatsue distribuindo ramos de ervas para os aldeões. Shippou abriu um sorriso enorme ao avistar Ichiro e cutucou Hatsue com o cotovelo. Ela tomou Shippou pela mão - ele ficou tão vermelho quanto uma maçã - e correu até eles.
- "Já está andando! Ichiro-san, você parece ótimo!" - disse ela, repetindo o gesto de Kagome e esticando a mão para tocar na testa dele - "Nenhum sinal de febre... Kagome-sama, isso é maravilhoso!"
Kagome sorriu para ela e Ichiro agradeceu a preocupação um pouco constrangido por receber tanta atenção de uma só vez. Seu olhar encontrou o de Shippou. Ichiro passou a mão pelos cabelos dele, bagunçando a franja que caía sob seus olhos. Shippou deu risada.
- "E você, pestinha?" - provocou Ichiro, afastando a mão - "Gostou de me ver botando aquele sarnento pra correr?"
- "Você vai ficar mesmo insuportável depois disso, não é?" - reclamou Shippou, devolvendo a brincadeira.
- "Só um pouco." - respondeu Ichiro, dando uma piscadela para ele.
Hatsue levou a mão à boca e pigarreou para interromper a conversa.
- "Lamento interromper, mas você realmente precisa comer, Ichiro-san." - ela fez sinal para que a acompanhassem e os três a seguiram imediatamente - "Já faz alguns dias, afinal de contas."
- "Sim, Kagome mencionou..." - ele achou melhor concordar e apressar-se antes que seu estômago ousasse protestar de novo.
Hatsue os conduziu para uma refeição ao ar livre: peixe, arroz e legumes ao vapor montavam a mesa que, para Ichiro e seu estômago vazio, parecia estar de ótimo tamanho. Comeu até sentir que não sabia mais nada dentro dele, e Hatsue pediu para que servissem o seu chá favorito, hortelã, alegando que além de delicioso seria bom para a digestão.
- "Você passou dias sem comer e agora ingeriu muita comida. Precisa de algo que o ajude com isso."
Ichiro não ousou protestar e pelo menos o chá era bom. Ele sentiu a bebida entrar e esquenta-lo por dentro e se agradeceu por ter obedecido os conselhos de Hatsue.
Ele não era do tipo de sair fazendo exatamente o que lhe diziam, na verdade, sua vida toda tinha demonstrado que geralmente ele fazia exatamente o contrário. Mas a experiência de quase morrer algumas vezes em um só dia fez muito pelo seu senso de auto preservação e humildade. Isso e também o fato de que, desde que a luz "entrara" nele, sentia-se muito diferente. Para melhor.
Era como se alguém tivesse desligado o botãozinho constante de raiva e passivo-agressividade que ele manteve ligado durante toda a sua vida.
- "Ichiro-san... agora que se alimentou, preciso perguntar..." - Hatsue interrompeu os pensamentos dele, repousando sua xícara na mesa - "Qual foi a sensação?"
Kagome e Ichiro olharam para ela, ambos com expressões levemente confusas nos rostos. Mas foi Ichiro quem primeiro questionou.
- "Que sensação exatamente?"
- "Oras..." - ela vestiu uma expressão interrogativa que se perguntava como ele poderia não saber do que ela estava falando - "A sensação de finalmente reaver o que faltava da sua alma."
Ichiro riu sarcasticamente.
- "É uma forma bem criativa de colocar as coisas... Mas aquela luz entrou em mim e me ajudou... foi só isso." - ele virou-se para Kagome como se tentasse procurar indícios nela de que confirmaria sua hipótese - "Foi apenas isso... certo?"
Shippou pigarreou audivelmente.
Kagome desviou o olhar. Não tinha ideia de como exatamente responder àquilo. É verdade que Ichiro sabia de toda a história entre ela e Kikyou, o fato de ambas compartilharem a mesma alma em encarnações diferentes... mas ele deixava claro que, embora respeitasse sua crença, não compartilhava das mesmas ideias. Ichiro era um cético. O que podia facilitar as coisas, caso eles decidissem fornecer informações mais simples de modo que ele seguisse a vida num certo nível de ignorância.
Ou poderia dificultar.
Ichiro provavelmente sentiria os efeitos dos últimos acontecimentos, quer acreditasse neles, ou não.
- "Lhe faria bem dar um pouco de credibilidade ao que Hatsue-sama diz, Ichiro." - disse Shippou, sua voz um pouco mais séria do que o habitual - "Afinal, foi você mesmo que usou um poço para se transportar 400 anos no tempo."
Ichiro ergueu uma sobrancelha para ele. Não tinha argumentos que pudesse usar para rebater o garoto.
- "E o que você acha que aconteceu então, Hatsue?" - perguntou ele, usando um tom meio desafiador e um tanto debochado.
Ela apenas o encarou. Ichiro não soube dizer se tinha se ofendido com o seu jeito de falar ou não, porque a voz dela não indicou nenhum traço de animosidade entre eles.
- "Bem... Para começar... Eu tenho algumas perguntas pra você." - ela tomou mais um gole de seu chá antes de continuar - "Você deve saber que aquele lugar era onde estavam os restos mortais de Inuyasha... Mas como adivinhou o caminho?
Kagome obsevou Ichiro recuar um pouco ao lado dela, numa postura mais defensiva. Mas aquela era uma pergunta para a qual ela também queria saber a resposta.
- "Não precisa ficar desconfiado." - tranquilizou, na esperança que isso pudesse deixa-lo mais a vontade - "Hatsue só vai te ajudar a... entender o que houve. Você estava se sentindo estranho desde o momento em que pisou aqui, certo?"
Ichiro quase respondeu que não precisava que ninguém lhe dissesse o que houve já que ele mesmo estava lá. Porém percebeu que, de fato, as circunstâncias nas quais havia encontrado a clareira eram misteriosas.
- "Comece do início." - incentivou Kagome, diante do silêncio dele.
Ichiro suspirou antes de falar.
- "E-eu... Bem, é... Acho que sim. Mas não sei explicar. Me sinto bem aqui." - Ichiro lutava para encontrar as palavras certas - "Antes de vir pra cá me senti muito atraído... pelo templo, pelo poço. Mas... pensei só que estava tendo uma crise de nervos ou alguma babaquice assim. Eu... já tive... antes de... enfim."
- "Você pode ter tido sim uma crise de nervos... ou algo assim..." - Hatsue ponderava, validando o que ele dizia - "Mas não foi só isso que o atraiu pra cá. Isso posso garantir."
Ichiro olhou para Kagome, mas Hatsue entendeu perfeitamente o que se passava na sua cabeça.
- "Kagome também não é a razão. Não a única." - interrompeu ela.
- "Bem, acho que você sabe tudo, não é?" - Ichiro sentia-se impaciente naquele ponto - "Porque não me diz o que acha que me fez vir pra cá então?"
- "Claro." - e ele não esperou que ela fosse ser tão colaborativa assim, de cara - "Foi a mesma coisa que te mostrou o caminho da clareira... Ou não?"
Surpreendentemente, não conseguiu encontrar motivos para discordar. E quanto mais pensava nas duas situações e no que havia sentido, mais e mais óbvia se tornava a comparação. Talvez a sacerdotisa fosse mesmo inteligente como Shippou já havia dito. Alguém que se preparara desde o nascimento para aquele momento... não tinha como ser de outro jeito, certo?
- "Acho que... sim..." - respondeu ele um tanto relutante - "Eu só... acordei e... parecia que eu estava suando de febre... só que não. Eu saí andando para esfriar a cabeça. Pensei que poderia ir ao rio. Daí apareceu aquela luz azul esquisita e eu... só a segui."
Ele parou de falar no minuto em que o olhar de Kagome encontrou o seu. Engoliu em seco. Ela estava com as sobrancelhas unidas e uma expressão preocupada - e cansada - no rosto. Certamente não achava sensato ele ter tido a brilhante ideia de andar sozinho até o rio.
- "Kagome, é que... me pareceu... o certo a se fazer." - Ichiro tentou ser firme, mas a expressão de Kagome não cedeu muito o que o fez estalar os lábios, impaciente - "Tsc! Mas que diabos! Eu já estava com uma arma pra me defender. Que mal faria?"
Kagome virou-se para ele irritada.
- "Que mal faria?! Será que você não entende?" - ela levou uma mão a cabeça, tentando dissolver os vincos de tensão que se formavam, mal conseguia encara-lo - "Não percebe que se qualquer coisa acontecesse a você..."
Não ousou concluir a frase.
E Ichiro entendeu exatamente o que ela dizia.
Era como o que ele havia sentido ao passar dias e dias sem saber o que tinha acontecido com ela. Ele queria prometer que nunca mais a faria angustiar-se daquela forma, e gostaria que ela fizesse a mesma promessa. Mas limitou-se a pegar a mão dela e apertar com força. Kagome encarou-o novamente. Ichiro encostou seu ombro no dela, empurrando-a e conseguiu arrancar-lhe um sorriso de leve.
- "Foi bem arriscado sim, Kagome-sama." - interrompeu Hatsue, servindo mais um pouco de chá para eles - "Mas acredito que ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Era o seu destino, Ichiro-san."
- "Era o meu destino seguir uma luz que ia me levar até o túmulo de um cara só pra lutar quase até a morte com o irmão mais velho dele?" - Ichiro não conseguia esconder seu sarcasmo e Hatsue riu da forma como ele colocara a situação - "Ora, convenhamos, Hatsue, isso é absurdo."
- "Você ainda não entende o que aconteceu, não é?" - perguntou ela, seu sorriso se desfazendo - "Me diga qual a sua explicação, então... Você interagiu com o motivo pelo qual as duas eras estão instáveis: aquela luz que entrou no seu corpo."
- "Aquilo...?" - ele olhou de Hatsue para Kagome, buscando algum tipo de confirmação - "Mas... mas aquilo era... o tal do Inuyasha... certo?"
Hatsue semicerrou os olhos como se estivesse analisando Ichiro e pensando no que dizer a seguir. Kagome o olhou confusa e não conseguiu segurar a pergunta.
- "Como você sabe que era ele?"
- "E-eu vi... eu vi as memórias dele... eu acho. Eu vi muitas coisas, na verdade, de pessoas que não faço ideia quem são... ou foram... sei lá."
Kagome estremeceu. Que tipo de memórias ele tinha visto? Isso não acontecera com ela quando sua alma saiu de Kikyou e retornou para o seu corpo.
Ichiro percebeu que os três o olhavam com curiosidade. Não sabia se deveria continuar a contar o que lembrava ou não. Tomou mais um gole de chá enquanto tentava ler o ambiente, mas Hatsue, como se adivinhasse as razões de sua hesitação, interrompeu seus pensamentos.
- "Por favor, Ichiro-san, continue... Você chegou até a clareira então... Por causa da luz?"
Ichiro assentiu e descansou sua xícara na mesa.
- "Isso. Quando dei de cara com o túmulo do Inuyasha... alguma coisa começou a acontecer comigo e com aquela luz. Pensei que eu fosse morrer... meu corpo inteiro doía."
- "Sesshomarou já estava lá?" - perguntou Shippou, sua voz carregando uma raiva reprimida.
- "Não. Ele chegou pouco depois... quando eu achei que fosse morrer, de fato. Ele... tentou me fazer lutar... por algum motivo. Eu já tinha me dado por vencido, mas... lembrei que ele poderia tentar fazer algo contra Kagome."
- "Sesshomarou..." - Kagome parecia pensativa, como se tentasse lembrar de uma palavra que conhecia e estava na ponta da língua.
- "Você disse que ele só agia se tivesse algum interesse pessoal, certo?" - perguntou Ichiro - "No início eu não consegui entender... porque ele estava fazendo aquilo. Mas antes que eu apagasse, uma última memória me veio à mente... e eu acho que... talvez ela explique um pouco as coisas..."
Kagome empertigou-se ao lado dele enquanto Hatsue e Shippou o observavam atentamente. Ichiro pigarreou antes de continuar.
- "Por um segundo... eu vi Inuyasha e Sesshomarou conversando no poço. Sesshomarou tinha uma espada que aparentemente ia salva-lo, mas... ele não conseguiu."
- "Tenseiga." - lembrou Kagome - "É a espada que foi deixada para ele pelo seu pai."
- "A mesma que ele usou para prolongar a vida de Rin..." - pensou Shippou, em voz alta - "Ichiro, aquela espada tinha o poder de trazer uma pessoa de volta à vida. Ela cortava o véu entre este mundo e o submundo."
- "Bem... isso eu não sabia. Mas eu vi Sesshomarou brandindo essa espada e o que quer que ele pretendia cortar com ela não estava ali. O próprio Inuyasha falou isso."
- "Não se pode trazer de volta a vida uma pessoa cuja alma atingiu o nirvana..." - argumentou Hatsue - "Por isso Sesshomarou jamais conseguiria salvar Inuyasha. A tenseiga cortava os seres do submundo que iam coletar a alma... mas quando a alma se torna 'pura alma'... eles não vem. São as outros seres que fazem a passagem.
Um silêncio que, para Ichiro pareceu uma eternidade, pousou sobre eles até que Hatsue finalmente recomeçasse a falar.
- "Eu... eu acho que entendo o que aconteceu."
A sacerdotisa levantou-se por alguns instantes e foi até uma caixa no canto da cabana. Kagome observou quando ela removeu a tampa e tirou de lá algums pergaminhos empoeirados e amarelados pelo tempo. Ela voltou e sentou-se à mesa enquanto esticava as folhas na frente deles.
- "Kagome, quando falamos sobre o que a bruxa Urasue fez com você anos atrás e sobre o que poderia ter acontecido a Ichiro-san, eu fui buscar esses escritos antigos. Achei que seriam úteis para explicar minha hipótese."
- "Heh, talvez me ajude a entender pelo menos um décimo do que vocês falam." - brincou Ichiro observando os pergaminhos com atenção.
- "Eu imagino que deva ser absurdo pra você... Sinto muito." - falou Kagome, sentindo-se culpada.
- "O que está dizendo, Kagome? Eu estou bem com qualquer que seja a explicação." - assegurou ele, tentando tranquiliza-la - "Até onde sei, você está viva. Eu estou vivo..."
- "E vocês vão poder ir pra casa." - completou Hatsue - "Acontece que, o tempo todo, Ichiro-san, a gente não conseguiria resolver nada sem você... ainda bem que veio. Apesar de arriscado... foi necessário."
- "Tá ouvindo isso, Kagome?!" - Ichiro cutucou ela com o cotovelo, provocando - "Era pra você ter me deixado vir com você desde o início! Sua orgulhosa!"
Kagome revirou os olhos para ele tentando segurar o riso. Ichiro beliscou sua bochecha tentando anima-la. Não queria que ela pensasse que tudo aquilo era demais para ele. Via o cansaço em seus olhos, sabia que provavelmente passara muitas horas dos últimos três dias ao seu lado, cuidando dele, torcendo pra que se recuperasse. Não ia acrescentar mais uma preocupação à sua lista.
Depois de sentir que deixara o clima mais leve, ele falou, por fim.
- "Antes que comece, Hatsue, me deixe terminar. Eu... acho melhor contar tudo o que aconteceu, de uma só vez. Depois... você explica o que souber."
Ichiro não poupou nenhum detalhe. Em parte, porque queria relembrar tudo o que tinha passado, mas também porque, apesar de cético, lhe faria bem ouvir algumas explicações, por mais malucas que soassem. Contou de como se sentiu quando encontrou o túmulo de Inuyasha, falou sobre os efeitos que a luz teve sobre ele - primeiro, uma dor insuportável; depois, uma das únicas coisas que o manteve de pé - narrou em detalhes tudo o que se lembrava de ter ouvido de Sesshomarou. E esse parecia ser o único tópico para o qual Hatsue ainda tinha dúvidas. Por fim, relatou a última memória que se recordava e parecia vívida, fresca em sua mente. Concluiu com o que faltava da última conversa entre Sesshomarou e Inuyasha, e, finalmente, Hatsue pareceu entender.
Era a última peça do quebra cabeça.
Todos escutaram atentamente, sem fazer muitas perguntas ou interrompe-lo. Ao final, Hatsue retomou os pergaminhos e estendeu-os mais ainda em cima da mesa, na frente deles.
- "Como eu ia dizendo, eu selecionei esses escritos com base no que Kagome-sama falou sobre a bruxa Urasue... Ichiro-san já sabe quem foi Kikyou-sama, certo?" - ela observou ele assentir positivamente e continuou - "Anos atrás, essa bruxa usou Kagome e a alma que estava nela para trazer Kikyou de volta a vida em um corpo de barro e ossos. Mas... Kagome clamou a alma dela de volta. E Kikyou ficou com apenas um pedaço, ínfimo... Tão minúsculo que ela precisava se alimentar de outras almas para sobreviver."
- "Foi ela que eu vi nas memórias também... certo?"
- "Isso. Eu já vou chegar lá... Quando examinamos o túmulo de Inuyasha notamos que as perturbações estavam mais intensas e frequentes... Eu creio que isso aconteceu porque os caminhos de vocês dois se cruzaram."
- "A 'pura alma' foi provocada... pelo meu encontro com Ichiro?" - perguntou Kagome.
- "Isso mesmo, Kagome-sama. Ichiro-san, quando Inuyasha morreu ele estava certo de que amava profundamente Kagome-sama..." - Hatsue hesitou, medindo as palavras, tentando dizer o que precisava ser dito, mas sem gerar nenhum constrangimento - "Estou certa que esse foi um dos motivos que o ajudou a alcançar o nirvana. Amor... em sua forma mais pura. Sem desconfianças, nem rancor."
Ichiro ouviu a sacerdotisa e procurou por sinais de ciúmes em seu coração, mas não encontrou. Isso porque ele e Inuyasha compartilhavam do mesmo amor e das mesmas certezas. Era quase impossível olhar para a situação dele, a vontade que demonstrara de viver uma vida inteira ao lado dela... e não se ver nele mesmo.
- "Inuyasha sempre era acordado pela voz de Kagome." - relembrou Shippou - "Mesmo quando Kikyou morreu definitivamente e ele estava consumido pela culpa... quando a sua vida estava em jogo... ele reunia forças e ia até você."
Os olhos de Kagome encheram-se de lágrimas e ela abaixou a cabeça para tentar disfarçar. Ichiro sentiu seu coração se partir em vários pedaços. Seus lábios se curvaram em um sorriso discreto... e triste.
- "Eu sei... Aconteceu o mesmo comigo." - disse ele, observando Kagome limpar o rosto com as costas das mãos - "Você, Kagome. Quando pensei que Sesshomarou poderia te matar... tudo mudou. E quando eu te vi..."
Ele deixou a frase suspensa no ar. Kagome não ousava encara-lo. Ichiro queria abraça-la com força, queria tomar o rosto dela nas mãos e dizer que estava tudo bem chorar, que ele entendia. Surpreendentemente, ele entendia... e não se importava. Mas Shippou e Hatsue estavam ali e a hipótese que ele mais temia se desdobrava em sua mente, a pergunta quase escapando de seus lábios.
- "Ele não deveria reencarnar... mas reencarnou, não é?" - ele encarou Hatsue em busca da resposta - "Ele quis reencarnar... em mim."
Mas àquelas alturas não era mais uma pergunta.
Era apenas uma constatação.
- "Isso mesmo." - Hatsue respondeu, sustentando o olhar dele, em seguida apontou para algum ponto no pergaminho do meio - "Só que... a alma se dividiu. Entrou em conflito. Você nasceu, mas... um pedaço seu ficou aqui. E era difícil dizer que pertencia a Inuyasha porque... já não estávamos mais falando dessa encarnação... nem muito menos de uma única vida."
Ichiro inclinou a cabeça para o lado, confuso. Kagome, que parecia estar mais calma, empertigou-se e falou.
- "A parte que ficou nessa Era não pertencia só a vida de Inuyasha... Era a dele e a de todas as outras pessoas que compartilharam da mesma alma." - ela inclinou-se diante dos pergaminhos, pensativa - "Talvez por isso... você tenha visto tantas memórias, e não só as da vida de Inuyasha."
- "Faz sentido..." - murmurrou ele - "Mas então... o que estava causando tudo isso era aquela luz. Que queria voltar... para dentro de mim."
- "Não voltar exatamente porque ela nunca esteve em você, para começar..." - corrigiu Hatsue - "O que me leva a uma das primeiras perguntas que te fiz, Ichiro-san... qual a sensação? De ter sua alma finalmente completa, quero dizer."
Ele se perguntou porque aquele questionamento parecia fazer mais e mais sentido com o passar do tempo. Ele sempre se sentira incompleto. Sempre havia algo faltando. Achava que tinha algo a ver com sua história de vida, talvez o trauma de ter perdido a mãe tão cedo, a má relação com seu pai e com a madrasta... Mas para além disso, Ichiro sabia que era algo mais.
E agora, de repente, ele sabia o que era esse algo.
- "Eu acho que... me sinto bem." - disse ele, finalmente - "Bem... e calmo. Mais calmo do que normalmente sou."
Hatsue o encarou, num misto de satisfação e orgulho... finalmente as coisas iam se acertar.
- "O que Inuyasha fez... foi bem arriscado." - ela engoliu em seco, relutando contra o que ia admitir em seguida - "E acredito que... Sesshomarou estava tentando ajudar..."
- "Estava sim." - confirmou Kagome, com convicção, ela olhou para a porta e fez menção de levantar-se - "Te levou ao limite para ajudar você a clamar sua alma de volta."
Ichiro sabia que Kagome falava meio dele, meio com ele, mas, por algum motivo, ela se recusava a encara-lo. Sua voz estava fria, calculada, como se ela estivesse contendo ao máximo suas emoções.
O que ela disse sobre Sesshomarou fazia sentido com a última conversa que ele tivera com Inuyasha. E se Kagome já tinha passado pela experiência de reaver sua alma, assim como ele, então ela sabia o que era preciso. Ichiro refletiu: talvez Sesshomarou jamais tivesse intenção de matar ninguém... Talvez só quisesse que ele ficasse em um estado tal que chamaria a pura alma de volta sem nem mesmo saber do que se tratava.
E o importante é que dera certo.
Kagome finalmente levantou-se e saiu da cabana silenciosamente. Ichiro sentiu seu coração pesar como nunca. Parecia que desde que acordara todos os seus sentimentos estavam se potencializando dentro dele. Levou uma mão ao peito e olhou novamente para a porta pela qual Kagome havia saído.
E muitas perguntas passeavam pela sua cabeça.
Mas no momento Ichiro não conseguia dar atenção a nenhuma delas. Sabia que teria de elaborar tudo o que ouvira e passara ali. Não agora. A única questão que remoía atualmente em seus pensamentos era "o que se passava?"
O que se passava pela cabeça dela?
