Quando você olha por muito tempo para um abismo, o abismo também olha para dentro de você." - Friedrich Nietzsche.

...

O movimento no restaurante era fraco aquela noite. Já costumava ser fraco aos domingos, mas o frio também ajudava a espantar as pessoas. Nesses dias, eu sempre me pegava olhando para o balcão achando que a qualquer momento Keiko fosse se sentar ali, pedir o de sempre e reclamar da demora. Que ela fosse sair sem pagar e piscar o olho dizendo que me esperava em casa. Mas o balcão continuava vazio.

Meus amigos também já não apareciam há anos. Pelo menos haviam desistido de me emboscar no meu local de trabalho reclamando que eu não retornava as ligações. "Amigos". Nem sei se mais me consideravam assim. A última mensagem de Kuwabara no meu telefone era de dois anos atrás.

"Você é um grande de filho da puta!", seguida de "A gente sente sua falta de verdade, seu desgraçado".

Continuavam sem resposta até hoje. Quando eu pensei em responder, já tinha se passado tempo demais e acabei desistindo. Não o julgo por nunca mais ter tentado, eu provavelmente nem teria sido tão insistente.

O ruim de dias assim, além de me fazer pensar nela, fazer me lembrar que ela nunca mais iria sentar naquele balcão, era que me fazia ruminar coisas que eu não gostava de ruminar. Fazia eu me coçar para arrumar uma briga, só para me sentir vivo.

Eu não pegava um caso novo fazia seis anos. Eu recusei tantos que eles agora nem me apareciam mais. Ninguém mais se dava ao trabalho de me procurar apenas para escutar o meu "não".

Essas tinham sido algumas das regras que eu tinha me imposto. Nada mais de trabalho de detetive. Nada mais de assuntos com o Reikai. Nada mais dos aborrecimentos que tinham me custado as coisas mais importantes da minha vida.

No começo, isso foi natural. Não conseguia ver sentido em mais nada que eu via antes. Os anos tinham se passado quase se arrastando, mas quando eu agora olhava para trás, uma eternidade me separava da vida de antes.

Acho que eu teria continuado assim, se não fossem dois problemas: o primeiro era que a conversa com Koenma não me saia da cabeça.

O segundo era que eu era péssimo em seguir regras.

Então, de uma só vez, quebrei todas ao mesmo tempo.

(…)

O boato tinha chegado até mim como chegam todos os boatos: cheio de especulações e sem fonte confiável. Pela minha experiência, pelo menos metade dos rumores eram mentirosos, sem fundamento ou, no mínimo, exagerados. Mas isso significava que metade não eram.

O que corria nas ruas era que um youkai seria a atração de um pequeno mercado de pulgas noturno em Ikebukuro. Não me pareceu improvável, apenas uma ideia estupida. Não que demônios não pudessem se comportar entre humanos — não, essa teoria já tinha ido por água abaixo há muito tempo. Pelo menos os demônios civilizados.

Mas a palavra "atração" me cheirava mal. E naquele domingo à noite solitário, de vento frio e balcão vazio, eu decidi fechar mais cedo e conferir de perto. Que mal teria?

Assim como meu restaurante, o movimento da feira não era dos maiores. O mercado era pequeno e de mau gosto, recheado de quinquilharias que ninguém dava muito valor. Coisas quebradas, coisas velhas, coisas de gosto muito duvidoso.

Andei entre as mesas achando tudo uma porcaria. As roupas e sapatos usados eram revirados pelos passantes, algumas das mercadorias nem sequer em estandes, mas em lonas espalhadas no chão. O frio fazia as pessoas se aglutinarem em pequenos grupos, as mãos enfiadas nos casacos exceto quando avaliavam algum item qualquer.

Já no final, quase afastado de tudo, uma espécie de barraca. Era grande, com estacas de metal e uma lona vermelha com decorações douradas cobrindo tudo. Do lado de fora, uma plaquinha indicando o preço, lanternas de papel penduradas e um homem com um quimono azul escuro e faixa na cabeça. Ele abria uma abertura na lona toda vez que alguém se aproximava, não sem antes cobrar o valor da entrada. Fiquei observando por um tempo. Pelo menos uma dúzia de pessoas passou por aquela lona, sumindo do lado de dentro. Nenhuma saiu. Se havia alguma atração a ser mostrada naquela feira, só podia ser ali

Quando cheguei perto, o homem do quimono mostrou os dentes em um sorriso largo. Quando perguntei o que tinha ali, o sorriso dele se alargou ainda mais. "O maior mistério da humanidade," ele respondeu. Que baboseira. Mas paguei mesmo assim.

Ali dentro, o falatório era animado. Os olhares, curiosos. O ambiente estava mais quente do que do lado de fora, e as pessoas pareciam mais à vontade. A iluminação era fraca, e a decoração, crua. Devia fazer parte do apelo misterioso da coisa. Nos fundos da barraca, apenas um palco de madeira e uma mesinha improvisada em cima, coberta com um paninho branco. Alguns ofudas de papel estavam pregados porcamente perto do palco, mas me pareciam estar ali só para compor o cenário. Talvez também fizessem parte do teatro.

Acendi um cigarro e encostei num canto enquanto esperava. Tinha um aviso em algum canto dizendo que era proibido fumar ali dentro, mas eu já tinha ignorado avisos muito mais sérios antes.

— Atenção, senhoras e senhores! Nosso show já vai começar!

Uma mulher, com roupas cerimoniais vermelhas anunciou, parecendo vir dos fundos da barraca direto para o palco. Havia uma abertura nos fundos também, assim como a da frente. A mulher tinha uma maquiagem que exagerava os olhos, unhas vermelhas e alongadas e trazia nas mãos uma pequena gaiola.

Me aprumei, esticando o pescoço. Abri espaço entre a multidão, tentando ver o que havia para ser visto. Quando cheguei mais perto, vi que um gradil na altura da cintura limitava a aproximação com o palco. Aquele parecia ser o máximo de aparato de segurança do lugar.

Então o homem que estava do lado de fora surgiu pela abertura frontal da tenda e se dirigiu até o palco. Ficou do lado da mulher e trocou olhares com ela. A gaiola, que dentro tinha uma cobra de pele escura, não muito grande, agora estava apoiada na mesinha.

A barraca não estava lotada, mas também estava longe de estar vazia. A maioria das pessoas se espremeu junto ao gradil. Joguei meu cigarro no chão, amassei com o sapato e fiz o mesmo.

— Vocês estão preparados? — o homem perguntou.

A resposta veio em forma de burburinho. Algumas pessoas já exclamavam de antecipação. Aquilo parecia estar sendo o ponto alto da noite de muitos ali. O ar ali dentro de repente parecia sufocante.

— O que vão ver essa noite é uma pequena amostra de um dos mistérios da natureza. Capturado ainda selvagem, muitos dizem que essa criatura é uma aberração. Um ser que jamais deveria ter existido.

De repente, todo mundo se calou. As pessoas pareciam estar hipnotizadas pela fala do homem. Ao redor, tive a impressão que a luz das lanternas havia ficado mais baixa. As sombras agora se projetavam nas paredes de lona em formas grotescas. Um cheiro de incenso cobriu todo o ar.

A mulher de vermelho soou um pequeno sino tibetano. A cobra se agitou na gaiola, soltando um assobio profundo. Os espectadores estavam quase em transe, ansiosas.

Então um grito gutural surgiu de fora da barraca. Homem e mulher se entreolharam novamente, cúmplices. As pessoas deixaram escapar algumas palavras de assombro, algumas exclamações preocupadas. Estavam bem mais tensas agora, como se prestes a participar de algo errado e proibido. Algo perigoso.

— Não precisam ter medo — o homem falou — mas tenham cuidado. Respeitem o espaço, não se aproximem do palco nem provoquem a criatura. Estamos falando de uma besta, um animal irracional.

A mulher abriu a fenda dos fundos da lona. Um rapaz, ainda jovem, surgiu empurrando um objeto alto, como uma caixa do tamanho de um homem, coberto por um pano, sobre um carrinho dolly. Ele deixou a caixa no palco e saiu pela mesma abertura nos fundos. O olhar de todos grudou naquele objeto. O pano que o cobria oscilou.

Os apresentadores pediram silêncio, mesmo sem ninguém ter tido coragem de proferir nem uma vogal. Pareciam sem coragem de sequer respirar dentro daquela barraca.

O pano que cobria a caixa balançou novamente, dessa vez mais forte. O mesmo grito de antes surgiu, dessa vez bem mais perto. Dessa vez, de dentro da tenda. Diante dos nossos olhos.

Meu estômago pesou na mesma hora. Considerei as hipóteses.

Podia ser realmente só um animal selvagem, talvez de algum país distante, estranho e diferente o suficiente para ter ganhado os rumores de ser um demônio.

Podia ser algum youkai em acordo com aqueles dois, fazendo uma encenação para dividirem o dinheiro.

Ou podia ser um youkai verdadeiramente capturado. Algum youkai primitivo, animalesco. O tipo mais violento. A pior hipótese.

Torci para não ser a última opção. Preferia ter sido enganado, feito de trouxa, gastado minha noite aqui. Mas estava sendo difícil ser otimista ultimamente.

Depois de alguns instantes de suspense, o homem puxou o pano. Arrancou de uma vez só, revelando a surpresa. Não era uma caixa ali debaixo, mas sim uma jaula. E dentro da jaula, um youkai humanóide, mas com a aparência mais selvagem que eu já tinha visto.

Toda a fisionomia era cadavérica. Os cabelos eram sujos e embaraçados. As presas eram enormes e manchadas de sangue. As garras, idem: grandes, afiadas, tingidas de vermelho. O corpo estava coberto de cortes e machucados, uma das orelhas faltava e os olhos — e isso me deu arrepios — eram esbranquiçados e opacos. Pareciam sem vida. Senti que todo o ar me saiu dos pulmões.

Não precisava ter a intuição de Kuwabara para saber que aquilo não podia terminar bem.

O youkai estava agitado, e aquilo não parecia encenação. Não da maneira como começou a balançar as grades da jaula, como rugiu e mostrou os dentes.

Toda a plateia soltou gritos assustados. Começaram a falar todos ao mesmo tempo, a xingar. Aquilo não parecia acalmar o demônio. Não sei quanto tempo a jaula iria aguentar.

Homem e mulher pediram calma de cima do palco. Não pareceu funcionar. Então, como que para atrair a atenção de todos novamente, ela levantou a pequena gaiola com a cobra e a exibiu para o público.

— Nossa criatura está com fome — ela falou, em tom cabalístico enquanto erguia a gaiola.

Todos acompanharam com o olhar quando ela abriu a gaiola, pegou a cobra de dentro e a aproximou do youkai. Ele acompanhou os movimentos com os olhos vidrados. Eu me perguntava se ele conseguia enxergar alguma coisa com as pupilas daquele jeito.

Com um gesto rápido, o demônio puxou a cobra da mão da mulher. Novos gritos de surpresa, alguns de horror, outros de asco. Na frente de todos, o youkai mordeu a cobra ainda viva e arrancou sua cabeça. O sangue espirrou pelo palco. Se portando como um animal há dias sem comer, ele devorou a serpente da maneira mais brutal que era possível. A plateia se dividia entre estar encarar aquilo de maneira completamente assombrada, ou desviar o olhar, tampando o rosto.

Tudo aquilo me deu uma ojeriza que eu nem conseguia descrever.

Primeiro o absurdo de trazer um youkai com potenciais violentos para um evento como esse, repleto de humanos. O potencial que aquilo tinha para terminar em tragédia era imenso. Mesmo os demônios mais baixos ainda são mais fortes que um homem comum.

E segundo, toda a maneira como tratavam o youkai era deprimente. Era humilhante, degradante. O jeito a que se referiam a ele, o espetáculo apelativo que faziam com a cena da cobra, os machucados que ele ostentava, provavelmente feitos na tentativa de fazer com que se subjugasse.

Tudo era errado, em todos os níveis possíveis.

Senti algo que há muito tempo não sentia: o meu sangue ferver. O impulso de pular naquele palco era imenso. De interferir naquilo, acabar com o show e mandar todo mundo para casa. Mas me segurei. Eu só iria piorar as coisas. Era melhor esperar aquela barraca se esvaziar, e torcer no canto para que nada daquilo desse merda.

Depois da refeição, o youkai, no entanto, não parecia nem um pouco satisfeito. Voltou a sacudir as grades e a gritar, agora com mais sangue em volta. Tenho certeza que para muitos ali, a cena era de terror. Era impressionante como mesmo depois de anos de convivência, a relação entre humanos e youkais ainda podia ser tão grotesca.

Pela primeira vez, vi que o olhar que homem e mulher trocaram em cima do palco não era mais de cumplicidade, mas de medo. Aqueles idiotas não faziam ideia do que estavam fazendo ali em cima.

Agora a jaula balançava tanto que começava a oscilar de um lado para o outro. As pessoas já não se espremiam mais para ficar perto do gradil que as separava do palco. Em um ato desesperado para manter a calma, o homem pegou o pano do chão — também estava respingado de sangue de cobra — e tentou colocar por cima da jaula.

Talvez estivesse nervoso demais, mas as tentativas de fazer isso a certa distância não funcionaram e ele teve que chegar mais perto para conseguir jogar o tecido para o alto das grades; o youkai, afinal, era mais alto do que ele.

— Seu idiota… — eu murmurei. Sabia exatamente o que iria acontecer.

Assim que chegou perto, o demônio esticou sua mão entre as grades e agarrou o homem. O puxou para a grade e ele bateu no ferro com força, fazendo o pano deslizar de suas mãos para o chão. Mesmo esquálido, a força do demônio era muito superior. Para variar, humanos subestimando o que não conheciam.

Aquilo foi a deixa para as pessoas entrarem num verdadeiro estado de pânico. E o desespero fazia com que as pessoas parassem de pensar. Num frenesi, começaram a se empurrar e se pisotear, tentando achar a abertura da lona para que pudessem sair dali. Vários caíram, vários puxaram a lona e ela começou a oscilar. A última coisa que faltava era a barraca ceder.

Nesse meio tempo, o youkai já tinha batido a cabeça do homem na grade mais algumas vezes, e o sangue que sujava a jaula já não era mais só da cobra. Manchas escuras se espalhavam pelo quimono. A faixa da cabeça já tinha se rompido.

Consegui me desvencilhar da confusão a tempo de ver a mulher indo tentar ajudar o homem, já desfalecido, e quase ser vítima do mesmo ato. Não fazia mais sentido me conter, agora que o dano já tinha sido feito. Pulei no palco no mesmo momento que algumas das barras de ferro da jaula se soltaram. Me veio um pico de adrenalina. Meu corpo já nem sabia mais o que era isso.

Olhando de cima, o tumulto era geral. Eu só queria que as pessoas realmente fossem embora dali antes que mais alguém se machucasse. Eu daria conta do demônio, isso não seria problema. Mas ter uma pequena multidão como dano colateral não estava nos meus planos.

O demônio olhou para mim com seus olhos nublados e gritou, as costas curvadas, braços caídos e os dentes à mostra. A mulher, por pura sorte, conseguiu puxar o homem para longe de nós dois. Eu torci para que aquele sujeito ainda estivesse vivo — apesar de ter achado que ter apanhado daquele jeito não tinha sido tão ruim assim. Talvez o susto o ensinasse a achar outras formas de ganhar dinheiro. Formas mais seguras.

Dei um passo na direção do youkai, mas ele logo desviou o olhar para atrás de mim. Soltou mais um grito e tomou impulso. O desgraçado não estava interessado em mim, claro. Tinha um banquete de humanos logo atrás.

Percebi o que ele ia fazer e tomei impulso igual. Quando ele saltou por cima de mim, pulei ao mesmo tempo e o agarrei no ar. Apesar de muitas pessoas já terem saído da barraca — dava para ouvir os gritos ao longe vindos do lado de fora — não achei seguro arriscar um leigan. Também não era necessário. Apesar de ele estar descontrolado, não ia ser difícil abater com os próprio punhos. E sendo bem sincero, era exatamente isso que eu queria. Sentir a mandíbula de alguém quebrando no contato com meu soco.

Caímos nós dois no chão, longe do palco, embolados um no outro. Na queda, senti que empurramos mais alguém, algum dos incautos que ainda estavam por lá, e que caiu do nosso lado. Na pressa, apenas olhei de canto do olho para ver se estava tudo bem. Fiquei surpreso por um segundo: a pessoa que se levantava, atrapalhada, do meu lado também parecia uma youkai. Tinha as orelhas finas e pontudas, como as de Jin. Estava completa de brincos. Uma tatuagem enorme cobria uma parte do pescoço.

Aquela surpresa me custou um arranhão. O demônio, querendo se livrar de mim, raspou suas unhas no meu pescoço, fazendo quatro riscos que na hora mal senti, mas que depois arderiam como o diabo.

Ignorei a pessoa das orelhas pontiagudas e antes que o youkai voasse no pescoço de mais alguém, corri até ficar na frente dele e o acertei com um murro.

O infeliz caiu na mesma hora.

(…)

A minha noite estava sendo mais longa do que eu gostaria. Os paramédicos chegaram junto com a polícia, e agora davam os primeiro socorros e colhiam depoimentos. O homem teve o rosto praticamente deformado pelo youkai, mas tinha sobrevivido. Sorte dele. Um demônio um tiquinho mais forte e o desfecho seria diferente.

Os policiais estavam conversando com algumas das pessoas que tinham presenciado o ocorrido e eu sabia que em breve seria minha vez. Não estava com a menor vontade de ter que esperar, muito menos de falar com as autoridades. Por mim teria ido embora, mas talvez fosse bom dar o meu ponto de vista. Nem que fosse para ajudar a colocar aquele casal patife na cadeia.

Eles dificilmente responderiam por maus tratos ao demônio, por terem o mantido em cativeiro ou qualquer coisa nesse sentido. Se fossem responsabilizados, seria apenas por ter colocado a vida de todas aquelas pessoas em risco. E só.

Isso me lembrou o que Koenma me disse quando o encontrei. "Você sabe muito bem que a polícia não vai mexer um dedo para investigar qualquer coisa." O baixinho sabia do que estava falando. Humanos podiam ser desprezíveis quando queriam.

Acendi um cigarro, tentando me esquentar. Uma dose de vodca seria mais eficiente, mas aquilo já serviria para aquecer a garganta. Ficar ali tanto tempo não estava nos meus planos. Nada daquilo estava nos meus planos, na verdade. Onde eu estava com a cabeça?

Uma vez Kurama me falou que eu jamais ia conseguir sossegar, jamais ia conseguir ficar longe de problemas. Bom, e os últimos seis anos tinham sido o quê?

Todo mundo esperava que eu me mandasse para o Makai quando a guerra estourou. Acho que até eu esperava. Até hoje não sei se ter decidido ficar foi um ato de coragem ou de covardia. Talvez de burrice. Afinal, lutar sempre foi a coisa que eu fazia de melhor. Raios, talvez a única coisa que eu conseguia fazer direito. Mas até mesmo esse ímpeto me fugiu completamente. Quando você perde a única coisa boa que se tem na vida, todo o resto se perde junto.

Comecei a perambular, em parte para me manter aquecido, em parte para me distrair. Ali perto, um mini trailer, desses que são carregados a reboque por um carro, estava parado no gramado não muito longe da barraca. As portas estavam abertas, escancaradas. O trailer era simples e gasto, parecia ter rodado centenas de quilômetros. Nenhum carro ou caminhonete estava por perto. Sem ter o que fazer, fui até lá.

Mesmo antes de entrar, já sentia o cheiro que vinha de dentro. O trailer fedia. De sangue, excrementos, lixo. Mas principalmente de sangue. Era fácil adivinhar o que transportava.

Do lado de dentro, algumas lâmpadas iluminavam tudo: gaiolas de animais amontoadas — galinhas e cobras, principalmente —, uma estante atulhada de pastas e papéis, uma caixa aberta com vários ofudas empilhados e uma outra jaula, bem maior do que a dos bichos. O youkai estava lá, já acordado, ainda vivo. Mas meu palpite é que ele não iria durar muito mais tempo assim. Me surpreendia que toda a guarda do Esquadrão Especial de Koenma ainda não tivesse baixado ali até agora.

Cheguei perto da jaula. Aquela devia ser outra, já que a anterior tinha sido despedaçada durante o ataque de fúria. Quantas jaulas reservas esses caras tinham? Me veio à cabeça que as intenções talvez fossem de capturar outros demônios. Expandir o show, sei lá. Preferia não pensar muito nisso.

O youkai agora parecia bem diferente de antes. Estava sentado no chão, cabisbaixo, com a energia já quase esgotada. As mãos estavam na frente do corpo, entre as pernas. A cabeça, apoiada nas grades. Parecia dopado. Talvez o tivessem dado um sedativo ou qualquer coisa assim. Agora, o vendo mais de perto e com calma, vi que, entre os machucados do corpo, havia uma sequência de números pintada no braço, provavelmente uma tatuagem. Algum número em série? Do que?

A boca se mexia, e alguns sons baixos saíam dela. Talvez estivesse tentando falar algo, mas nada inteligível saía naquela voz. Eram apenas grunhidos, sons fechados. Mas vinham em uma cadência constante, como se fosse um cântico.

Me agachei para ficar na mesma altura. Acenei com a mão, e ele levantou a cabeça na minha direção.

— Ei, meu chapa. O que você está dizendo?

Ele continuou no cântico-grunhido dele sem alterar uma nota. Todo o queixo estava vermelho com o sangue de antes, agora já seco. Havia algo estranho nele, mas não conseguia dizer o que era. Não que ele todo fosse estranho, com seus olhos esbranquiçados e corpo que era só pele e osso. Mas ainda assim, tinha mais alguma coisa me incomodando.

As mãos enfiadas entre as pernas também se mexiam. Faziam uns gestos circulares, repetitivos, arranhando o chão de madeira da jaula. As garras raspavam no piso, faziam alguns arranhões, mas fracos demais para se entender o que era. Estaria querendo escrever algo? Se comunicar?

Olhei novamente para o rosto do youkai, que seguia entoando seu mantra indecifrável. Agora aquilo me soava místico, cabalístico. Talvez eu estivesse ficando impressionado demais, mas não tinha como negar que aqueles olhos, brancos, opacos, sem vida, me davam uma impressão nefasta. Assim como os números no braço. Os machucados. A boca-

A boca!

Finalmente entendi o que era tão estranho. O que parecia estar de errado. Além das garras tortas e manchadas, a boca era um vão escuro, vazio. Ele não tinha língua. Ela tinha sido cortada. Ou arrancada.

Algumas gotas escorreram pelo meu rosto, e limpei apressado. Estava suando. Não sabia como, já que minhas mãos continuavam duas pedras de gelo.

— O que significa isso? — eu perguntei inutilmente. O youkai não poderia responder. Sem a língua, não conseguia fazer mais do que alguns sons, e quanto à escrita, ele também não parecia muito inclinado.

Eu já tinha visto o suficiente. Não iria ter mais respostas ali, e ainda que tivesse, nem sabia se queria continuar vendo aquela cena. Eu precisava sair dali. Não só do trailer, mas daquela rua, daquela área. Foda-se a polícia e os depoimentos.

Mas a voz-cântico-grunhido do youkai ficou mais alta e eu parei para olhar uma última vez antes de sair. Erro meu.

Pois sem explicação nem aviso, a medida que o volume do mantra aumentava, ele começou a se erguer dentro da jaula. Não sei como, mas conseguiu se manter de pé, apoiado nas pernas finas e machucadas. Aquilo não era bom. Ele olhava diretamente para mim. Queria me dizer algo? O que?

Quando vi, sua mão já estava na altura da própria garganta. As garras se fincaram ali. E se fincaram de tal modo que filetes de sangue começaram a escorrer, primeiro finos, mas cada vez mais grossos. Ele estava furando a própria pele.

— Que diabos…

E, de maneira lenta e controlada — e completamente hipnótica, trazendo meu olhar como um imã forte demais para resistir — arrastou as garras de ponta a outra da garganta, trazendo pele e carne junto. O que antes era só um gotejamento de sangue agora rompia como uma barragem. A voz ficou borbulhante.

O cântico cessou. Ele caiu em espasmos, deixando o sangue encharcar o chão de madeira da jaula. Eu fiquei ali, estático.

O que caralhos eu tinha acabado de presenciar?