"Normal is an illusion. What is normal for the spider is chaos for the fly."
...
Eu já tinha tocado a campainha e batido três ou quatro vezes na porta de Suzuki. Só ouvia silêncio do outro lado. Olhei o relógio: dez e quinze da manhã. Se ele estivesse dormindo, a essa altura já teria acordado com os murros impacientes na porta, então provavelmente não estava em casa. Claro, eu devia ter imaginado que Koto teria o levado para passar a noite com ela.
Bufei um pouco, frustrado. Não queria ter que ir atrás de Koto, preferia falar com Suzuki a sós. O problema era que, sem pistas adicionais, eu estava na estaca zero. A caixa com as coisas de Nika também não tinha ajudado muito. A agenda continha outros nomes, claro, e eu poderia partir dali. Nenhum com a data da morte dela, no entanto. Esse privilégio parecia ser só de Suzuki. Além dos nomes, só outros rabiscos incompreensíveis nas páginas finais.
O resto dos objetos também tinha quase nenhuma valia: algumas fotos dela, mas estava sozinha; itens pessoais corriqueiros; e uma flor. A flor parecia ter sido arrancada de algum lugar, mas ainda estava com o caule e folhas verdes, pétalas finas e compridas de uma cor escura, e com uma aparência de modo geral saudável. Não entendo muito de plantas assim, mas achava que elas secavam depois de alguns dias tendo sido cortadas. Se o flor ainda parecia viva, talvez fosse recente, e tivesse sido deixado por outra pessoa?
De repente ouvi passos vindo das escadas do prédio. Eu ainda estava no corredor, apoiado na parede de frente para a porta fechada do apartamento, e pensei que estava ouvindo Suzuki voltar para casa. Mas quem saiu da escada e virou no corredor na minha direção foi Daya.
Ela parou quando me viu, mas não por muito tempo. Continuou cruzando o corredor, e eu por dentro sabia que ela iria parar na mesma porta que eu estava.
— Ora, se não é meu detetive preferido — ela falou. Estava com óculos escuros mesmo dentro do prédio.
— Ele não está — eu falei, apontando com a cabeça para a porta.
Ela olhou para a porta e depois para mim.
— E ainda assim, você continua aqui.
— Achei que ele pudesse estar voltando, mas está sendo uma perda de tempo esperar.
Ela olhou de novo para a porta, e depois para os lados do corredor. Deu um suspiro que soou impaciente.
— Você tem certeza que não tem ninguém em casa?
Eu confirmei, e estava explicando que já tinha batido mil vezes na porta, mas ela já tinha parado de prestar atenção. Apoiou os óculos escuros na cabeça e começou a procurar algo dentro da bolsa que carregava. Quando achou, vi que era um cartão, do tamanho de um cartão de crédito. Antes mesmo que ela se apoiasse na porta, eu entendi o que ela pretendia.
— O que você pensa que vai fazer? — eu perguntei, segurando o braço dela.
Um sorriso sutil surgiu em seu rosto. Com delicadeza, tirou a minha mão que segurava seu braço.
— Eu não vou demorar. Se você for embora agora, pode fingir que não viu.
Daya se apoiou na porta, segurou a maçaneta com uma das mãos e, com a outra, passou o cartão pelo vão da fechadura algumas vezes, até o barulho indicar que ela tinha cedido. A maçaneta virou e a porta abriu uma pequena fresta. Ela guardou o cartão na bolsa.
— Acho que agora isso te faz meu cúmplice — ela falou, abrindo mais a porta e entrando no apartamento.
Eu fiquei incrédulo com a audácia dela de não ter demorado nem dois segundos para decidir simplesmente invadir o apartamento de Suzuki. Ainda fiquei parado por um tempo no corredor, mas acabei indo atrás dela. Talvez para ter certeza que Daya não faria mais nada de errado. Ou talvez porque eu talvez encontrasse mais alguma pista relevante. Me entenderia com Suzuki depois.
O apartamento era pequeno, apenas um quarto e sala, com um banheiro apertado, uma cozinha estreita, e mobília modesta. Daya não demorou a começar a vasculhar os móveis, abrindo gavetas, portas e o que ela achasse pela frente.
— O que você está procurando?
— Um livro. Com uma capa de couro escura, dessa grossura — ela falou, indicando alguns centímetros de espessura com os dedos — Me avise se achar alguma coisa.
— Por que você está atrás de um livro do Suzuki?
— Não é dele. Quer dizer, podia ter sido, se ele tivesse me pago. Como não foi o caso, estou pegando de volta.
Eu lembrei da conversa com Koto, quando ela disse que Daya trazia mercadorias do Makai. Pelo visto Suzuki também era seu cliente? O que mais ele estava fazendo pelas costas de Koto?
— Que livro é esse? Alguma encomenda?
Eu comecei a andar pelo apartamento também. Por mais que detestasse desconfiar de Suzuki, quanto mais eu descobria, mas ele parecia estar escondendo alguma coisa.
— Não exatamente. Apenas um livro. Parecia antigo e achei que teria algum valor, então estava tentando revender. Imagino que a essa altura você já saiba com que eu trabalho. Ou será que preciso me preocupar?
— Eu não vou te denunciar pro Reikai, se é disso que está falando. Mas ainda tenho muitas perguntas pra você.
Entrei na cozinha. Era pequena, como o resto dos cômodos. Tinha uma mesa para duas pessoas no canto, uma geladeira baixa e um fogão de duas bocas. A pia estava com algumas louças sujas do dia anterior.
Abri as gavetas e armários, mas não tinha nada além de alguns talheres e outros utensílios de cozinha. Daya ainda vasculhava o quarto.
Na porta da geladeira, duas fotos pregadas com imã, além de um folheto de restaurante. Peguei os três.
Uma das fotos era de Koto. Na verdade, era um recorte de revista, onde ela posava de biquíni. O papel parecia antigo, e eu sabia que era da época em que ela desfrutou de um breve sucesso entre os humanos, anos atrás. Estava jovem e radiante na foto, bem diferente da Koto que eu tinha encontrado no Blue Lotus.
Na segunda foto, vi rostos conhecidos que me deram uma onda de nostalgia que eu não esperava. Shishiwakamaru, Touya e Jin posavam em um parque, Jin de pernas cruzadas flutuando um pouco acima dos demais. Eu não sabia de quando era a foto, e cheguei a ver o verso para ver se tinha alguma data, mas não encontrei nada. Provavelmente era antiga, talvez tão antiga quanto a revista de Koto. Fiquei me perguntando se Suzuki ainda tinha contato com eles, ou por onde estariam. Provavelmente no Makai. Sabia que muitos tinha decidido ficar e lutar na guerra quando a barreira começou a ser erguida novamente.
Daya tinha falando alguma coisa de dentro do quarto, mas eu não prestei a menor atenção. A imagem tinha me levado de volta para um tempo onde as coisas eram muito, muito mais simples. Mesmo quando eram difíceis.
Devolvi as fotos para a geladeira. O folheto do restaurante ainda sobrava na minha mão, e também parei para olhar. Era um restaurante de curry situado na Cidade Alta, com os especiais da semana. Tinha uma marca, indicando que tinha sido dobrado ao meio, mas de resto, parecia um folheto comum. E também já iria devolver para a porta da geladeira, quando a luz da janela bateu no papel e notei que parecia ter algo escrito atrás, à mão.
Virei para ver o que era. Havia um endereço escrito à caneta de alguma rodovia, como se fosse um endereço rural, não urbano. Logo ao lado, data e horário. Não consegui evitar a surpresa quando li a data: era o mesmo dia da morte de Nika, na semana passada. Cheguei a abrir a agenda que tinha trazido comigo para confirmar, e ao lado do nome de Suzuki os números eram o mesmo: dia, mês e hora. Que raio de coincidência era essa?
— O que é isso?
Olhei para frente e Daya estava na porta da cozinha, já com os óculos escuros cobrindo os olhos de novo, apontando para o papel da minha mão. Eu olhei de volta para o papel, reli mas uma vez e entreguei o folheto para ela.
— Você sabe onde fica isso?
Ela leu o endereço em silêncio e levou alguns segundos até me responder.
— Sei — ela falou, me devolvendo o papel — É um acampamento, nas margens da estrada que segue pro norte. Fica a uma hora daqui.
— Ótimo — Eu dobrei o papel e guardei no bolso — Você vai me levar até lá.
(…)
Daya tinha um Toyota de segunda mão, antigo, com a lataria cor de prata, mas já fosca. Estava estacionado a algumas quadras do prédio de Suzuki. Ela me levou até o carro em silêncio, mas quando chegamos, antes de abrir a porta ela se virou para mim.
— Por que você quer ir até lá?
— Acho que Suzuki esteve lá, muito provavelmente com Nika. A data é a mesma da morte dela.
Ela continuou me encarando por alguns segundos, pensativa, e destrancou a porta.
— Mas ok, dessa vez eu te levo lá. Só não fique mal acostumado. Esse lugar me dá arrepios.
— Como assim? Por que?
— Você vai ver quando chegar lá — ela falou, sentando diante do volante e fechando a porta.
Eu fui para o banco do carona.
Eu não sei como Daya conseguia navegar com aquele carro pelas ruas da Cidade Alta, considerando que eram apertadas e constantemente apinhadas de pedestres. Demoramos um tempo até conseguirmos sair do bairro, mas assim que saímos, o trânsito fluiu bem mais rápido. A Cidade Alta ficava tão longe do centro que os outros bairros em volta eram apenas zonas industriais.
Depois disso, não demorou para que entrássemos na autoestrada. A paisagem foi mudando aos poucos em volta de nós.
— Que acampamento é esse? — eu perguntei.
Daya deu um suspiro.
— Você tem um cigarro?
Peguei meu maço e isqueiro do bolso, acendi um cigarro e passei para ela. Ela agradeceu. Abriu a janela para deixar a fumaça ir embora.
— É um abrigo para youkais que não têm onde ficar. Ou que não querem morar na cidade.
— O que acha que eles estavam fazendo lá, Nika e Suzuki?
Daya tragou demoradamente. Deixou a mão com o cigarro para o lado de fora, a outra segurando o volante.
— Ela era voluntária lá. Suzuki, não sei. Sendo bem sincera, eu nem sabia que eles se falavam muito além do "boa noite" ocasional quando se viam no Blue Lotus. Que dirá que estavam se encontrando.
— É, pelo visto eles estavam sendo bem discretos sobre isso. Koto também não parecia saber de nada.
— E acha que vai descobrir alguma coisa lá hoje?
Eu olhei para fora da janela. Campos e fazendas iam passando por nós. Tóquio já tinha ficado para trás. Muitas coisas tinham ficado para trás.
— Eu não sei. Eu achei que conhecia Suzuki, mas parando pra pensar, nunca fomos tão próximos assim.
— Bom, ele adorava contar que te conhecia pessoalmente. Se Koto não tivesse confirmado, eu teria duvidado de metade das histórias. Também não deixava ninguém falar mal de você. Acabava em briga se ele ouvisse alguma coisa.
Me virei para ela espantado. Por essa eu não esperava. Era a mesma pessoa que quis me bater na noite anterior? Me senti ainda mais culpado por ter entrado no apartamento de Suzuki sem ele saber.
— Isso é novidade — eu respondi. E também fiquei pensando no que ela tinha me dito quando nos conhecemos, de que todo mundo na Cidade Alta sabia quem eu era. Pelo visto não apenas sabia, como também tinha opiniões formadas sobre mim — E encontrou seu livro?
— Nada, nem sinal. Espero que o desgraçado não tenha me passado a perna.
— Como é o seu acesso ao Makai? Achei que o Reikai estivesse bem firme na fiscalização.
Ela levou o cigarro até a boca mais uma vez. Estava quase no final, então jogou o resto pela janela e fechou o vidro.
— Eu não acho que preciso dizer pra você que não é tão impossível assim burlar a fiscalização do Reikai. A barreira tem vários pontos cegos. Claro, se eles te pegam, as coisas complicam, mas…
Eu continuei olhando para ela, esperando que continuasse. Sempre soube de youkais atravessando a barreira antigamente, mas achei que sob a nova administração de Koenma, e com uma guerra do lado de lá, isso seria coisa do passado.
— Existe uma passagem. Uma passagem clandestina, escondida. Só algumas pessoas sabem onde fica.
— Incluindo você.
Daya me olhou de relance. Levantou o óculos com uma das mãos, piscou o olho e sorriu de lado.
— Uma garota precisa saber se virar, Yusuke. Tudo na vida são bons contatos.
— Que contatos são esses?
— Por que quer saber? Está pensando em fazer uma excursão no Makai? — ela sorriu novamente — Sabe, a passagem não é mais tão exclusiva assim quanto era antigamente. Existem meios de conseguir acesso. Não é uma travessia segura, mas enfim, o que é seguro hoje em dia, não é mesmo?
— Do que está falando? Não acha que o Reikai iria notar se youkais começassem a transitar livremente de um lado pro outro?
— Iria? — E ela voltou a ficar séria e a encarar o trânsito — Yusuke, esse acampamento que estamos indo visitar… pelo menos mais da metade dos que estão lá são refugiados. Vieram pra cá depois do começo da guerra. Depois de terem subido a barreira. Justamente pra escapar do inferno que se tornou o Makai.
— O quê? — eu perguntei, incrédulo. A informação fez um eco na minha cabeça. Acho que jamais pensei que poderiam haver refugiados, youkais literalmente fugindo da guerra para se refugiar entre humanos. Eu sempre enxerguei o Makai como um lugar que abrigava seres sempre tão dispostos a lutar que não me ocorreu que alguns iriam preferir escapar.
Mas fazia sentido. Eu havia conhecido todo tipo de youkai durante as minhas passagens por lá, incluindo os mais pacíficos e os menos aptos para o combate. No final das contas, guerras eram ruins em qualquer lugar.
— Por causa dessa passagem, se criou todo um mercado de atravessadores, quase uma máfia — Daya continuou — Não é fácil nem barato pra quem quer vir de lá pra cá. E ainda assim, eles vêm aos montes… A maioria depois de perder alguém. Ou antes de perder mais alguém. Enfim, é uma situação deprimente, é o que estou tentando dizer.
Eu concordei com a cabeça. O que mais eu não sabia sobre essa nova realidade? Eu tenho que admitir que estava sendo um pouco dolorido perceber o quanto eu havia me afastado, o quanto eu não sabia sobre o que estava acontecendo com as pessoas.
— É, eu sei uma coisa ou outra sobre perder alguém — murmurei. Sem perceber, toquei com o polegar a aliança que eu ainda usava na mão esquerda.
— Casado? — Daya perguntou. Estava olhando também para minha mão, para meu dedo alisando a aliança.
— Viúvo.
— Ah, sinto muito. O que aconteceu?
Eu olhei para a aliança no meu dedo.
— Um tsunami, na costa de Okinawa. Ela estava visitando os pais — Eu fiz uma pausa — Eu deveria ter ido com ela naquele dia, mas não fui. Estava trabalhando — Olhei para fora do carro. A estrada era de terra, e a poeira batia na janela — Até hoje me arrependo.
— Desculpa, não devia ter perguntado.
— Não tem problema. Isso já tem seis anos — respondi, fingindo que estava tudo bem, que era só mais um assunto.
Continuei olhando para fora o resto da viagem, pensando também no que eu tinha preferido não contar. Que o corpo dela estava na lista dos que nunca tinham sido encontrados. Que eu estava no Makai a pedido de Koenma. Que eu tinha medo de descobrir que eu tinha causado aquele tsunami. Que eu tenho pesadelos até hoje com aqueles dias.
Seguimos o resto da viagem em silêncio. De tempos em tempos, eu ainda tocava na aliança.
(…)
O acampamento era enorme, mais do que eu estava esperando. Ocupava um vale na beira de uma estrada não asfaltada, com nada em volta a não ser algumas montanhas no fundo. Uma parte das montanhas era esbranquiçada, com rochas acumuladas na base. Logo em frente, uma estrutura de concreto do que parecia um prédio abandonado.
A alguns metros da estrada, começava uma fileira de barracas que se estendia por talvez quase um quilômetro. As barracas eram cinzas, sujas e desgastadas, algumas visivelmente remendadas. O chão estava coberto por uma vegetação seca e rasteira, já amarelada pelo outono. Vários youkais se espalhavam pelas fileiras, alguns nos olhando de um jeito reservado, desconfiado.
Daya foi na frente, e vi que falava com alguém. Esse alguém apontou para trás, para um outro youkai não muito longe dali, e Daya fez sinal para que eu a seguisse. Apesar da quantidade de demônios reunidos, o lugar era quieto. Era parado quase, como se nem mesmo o vento soprasse ali. Os olhos dos residentes pesavam sobre nós.
Nós andamos na direção que tinha sido indicada. Mesmo com folhas secas no chão, várias moscas circulavam por ali. Mais do que era de se imaginar para aquela época do ano. Não fosse esse zumbido, ou nossos pés amassando a grama morta, não sei se eu teria ouvido qualquer outra coisa naquele lugar.
— Com licença — Daya falou quando alcançamos o youkai que tinha sido apontado.
Ele se virou. Usava uma bata laranja-escuro, já surrada, que o fazia pareceu um monge. No rosto, uma bandagem cobria os olhos, enrolada ao redor da cabeça até o começo da testa. Um cego.
— Sim?
Eu e Daya nos entreolhamos.
— Boa tarde, queria falar de uma de suas voluntárias — eu falei — Pode confirmar se Nika costumava trabalhar aqui?
— Sim, ela vinha pelo menos uma vez na semana.
— Sabe dizer se ela esteve aqui semana passada?
O youkai ficou parado, em silêncio. Foi apenas por alguns segundos, mas o suficiente para me incomodar e quase repetir a pergunta.
— Desculpe, mas com quem eu falo?
— Yusuke Urameshi, detetive particular. Sabe dizer se Nika esteve aqui semana passada?
Mesmo com a bandagem cobrindo os olhos, pude perceber que estava arqueando as sobrancelhas. Não sabia se a atitude era pelo meu nome, ou pelo fato de um detetive estar ali fazendo perguntas. Fora isso, não esboçou mais nenhuma reação.
— Sim, esteve. Como eu falei, ela vinha toda semana.
— Acompanhada de alguém?
— Nika era uma voluntária devota, às vezes trazia alguém para nos ajudar. Esteve aqui com um rapaz da última vez, mas não me recordo do nome. E como pode ver — e fez um gesto em direção aos olhos — também não saberia identificá-lo. Por que? Algum problema, detetive? Espero que ela não esteja em apuros.
Daya olhava para mim com o canto do olho.
— Ela tirou a própria vida semana passada. Provavelmente algumas horas depois de ter saído daqui.
O youkai levou a mão à boca.
— Eu não fazia ideia — ele falou.
— É, imagino que não. O que os dois fizeram quando estiveram aqui semana passada?
Uma mosca passou zunindo pelo meu rosto. O youkai demorou a responder, como se estivesse ainda se recuperando da notícia. Ninguém mais estava ao nosso redor, mas vários demônios nos espiavam de longe, atentos.
— O de sempre, acredito. Trabalharam em algum projeto, consertando barracas rasgadas ou distribuindo comida. Sempre há alguma coisa pra se fazer por aqui, e infelizmente não consigo dar conta de tudo. Então perdoe-me não poder ajudar com mais do que isso — ele respondeu, abrindo as mãos num gesto de desculpas — Mas por favor, sinta-se livre para conhecer nosso acampamento.
— Só mais uma pergunta. Aquela construção no fundo, perto da montanha. O que é aquilo?
— Ah, sei do que está falando. Pelo que sabemos, essa área funcionava como uma pedreira anos atrás, mas já foi desativada. A construção deve ser alguma usina de extração abandonada. Agora com licença…
Ele se curvou em um cumprimento e se afastou, nos deixando a sós. Meus olhos continuaram presos na pedreira por mais um tempo, nas paredes brancas de pedra e no concreto contrastante na frente.
— O que você acha? — Daya perguntou, me fazendo quebrar o contato visual com a montanha.
— Acho que essa história de caridade está muito mal contada. Eu vou andar por aí, te encontro depois.
(…)
Todo o resto do acampamento era igual: as mesmas barracas enfileiradas, o mesmo ar parado, as mesmas moscas, os mesmos olhares ressabiados. O contato com os youkais era difícil. Ninguém parecia disposto a falar, alguns sequer a me ouvir. Era um grupo que não parecia muito feliz em ver alguém de fora, ainda mais alguém fazendo perguntas. Será que tinha sido assim que tinham recebido Suzuki também?
Mencionei o nome dele e de Nika algumas vezes, esperando alguma reação. Não consegui quase nenhuma. Quando tentava pressionar um deles por migalhas de informação, era pior. Se fechavam ainda mais, saíam da minha frente, se tornavam agressivos.
Ao menos o mistério das moscas foi solucionado. Vi várias carcaças pelo caminho, algumas com carne já podre pendendo dos ossos, outras com sangue ainda fresco manchando a grama. Evitei pensar muito nisso, mas torci internamente que fossem apenas carcaças de animais. Era um ambiente brutal, de modo geral, e eu começava a entender a hesitação de Daya em me trazer aqui.
Estava começando a me sentir cansado e frustrado naquele lugar. Cheguei a me questionar algumas vezes o que eu estava fazendo ali, por que tinha pego aquele caso. Por que eu achava que ainda podia ser um detetive. Eu já não tinha desistido de tudo uma vez?
Cheguei até o final da milésima fila de barracas. Tinha perdido a conta quantos corredores eu tinha percorrido, sendo todos tão iguais. Na minha frente, alguns bons metros adiante, a montanha branca se elevava, encoberta pela construção abandonada que, agora vista de mais perto, era mais alta do que parecia.
O terreno por ali começava a ficar mais arenoso, com pequenas pedrinhas espalhadas pelo chão. Vários pedregulhos se juntavam mais a frente, a maioria agrupada na base da montanha ou ao redor do prédio. Por alguma razão, decidi ir até lá. O lugar tinha me intrigado desde que havíamos chegado e, apesar de achar que não encontraria nada ali, também achava que não devia ir embora sem conferir de perto.
Comecei a cruzar o terreno até o prédio, mas parei de supetão. Jurava ter ouvido alguma coisa, algo leve como um sussurro, vindo de lá, mas abafado pelo barulho que meu sapato fazia sobre as pedrinhas. Fiquei parado, esperando. Ouvi novamente, uma espécie de murmúrio, palavras sendo sussurradas, em um tom baixo demais para entender alguma coisa.
Continuei andando. O murmúrio foi me acompanhando, mesmo não vendo ninguém por perto. Os youkais mais próximos estavam a metros de distância, no alojamento que tinha ficado para trás. A única coisa que pensava é que quem quer que estivesse emitindo aquele som, estaria escondido pelo prédio de concreto, talvez até mesmo dentro dele.
E não era como se fosse um som tranquilo. Era opressivo, apesar de apenas um murmúrio. Havia algo de sinistro nas palavras que eu não conseguia entender. Imediatamente me veio à cabeça o demônio que estava na jaula, na feira do último domingo. Antes de cortar a garganta, ele tinha entoado algum cântico ininteligível assim, que tinha ficado ainda mais incompreensível por conta da língua arrancada. Eu não sabia se aqueles sussurros eram a mesma coisa, mas a sensação que me acometeu era sem dúvida a mesma.
— Está perdido, detetive?
Girei o corpo na mesma hora, na direção das palavras. O youkai cego estava ali, logo atrás de mim. Não sei se estava me seguindo, não sei nem como sabia que eu estava ali. Talvez pelo barulho das pedras do chão.
— O que é esse som?
— Tem certeza que não está ouvindo coisas?
Eu o ignorei. Voltei a ir para o prédio, e dessa vez, com ele ao meu lado. O youkai caminhava segurando as mãos nas costas, os passos nem um pouco vacilantes. Ele sabia exatamente onde estava indo.
— Espero que não se incomode com a minha companhia, sr. Urameshi.
— Dispenso o "senhor". Só quero saber do que isso se trata.
— Como eu falei, apenas uma estrutura humana abandonada.
Estávamos de frente para a parte de trás do prédio. Era de concreto cru, com janelas quebradas ou arrebentadas. Uma parte estava destruída, outra coberta por vegetação. Eu cheguei mais perto. A vegetação nessa parte, uma folhagem que subia do chão e se emaranhava pelas paredes do prédio, era verde e viçosa, com flores nas pontas de pétalas escuras. Eu arranquei um pedaço. Era terrivelmente parecida com a flor que encontrei na caixa de Nika, mas talvez fosse só minha imaginação. Guardei no bolso. O murmúrio continuava.
— Conseguiu as informações que veio buscar? — ele perguntou.
— Não acho que alguém aqui faz a menor questão que eu consiga informação alguma.
O youkai deu uma risada breve.
— Perdoe eles, são um grupo muito fechado. Tem dificuldade de confiar em quem vem de fora.
— É? São assim com os voluntários também?
Eu contornei o prédio. Havia uma entrada, uma passagem que um dia devia ter tido uma porta, mas hoje era apenas uma abertura na parede. Partes do concreto se despedaçavam ao redor.
Por dentro, entulhos se espalhavam pelos cantos. Uma escada levava para cima, mas o teto dos andares superiores tinha sido removido ou desabado. Olhando para cima, conseguia ver alguns corredores ou estruturas, mas apenas ao redor do espaço aberto onde antes haviam os pisos dos andares superiores. Nas paredes, vários rabiscos. Alguns letras, alguns círculos, algumas formas que não significavam nada. Tudo em tinta preta.
E, por cima de tudo, os sussurros que estava ouvindo desde o lado de fora. Aqui eram ainda mais intensos, mais altos, apesar de continuarem sendo apenas isso, sussurros. Murmúrios correntes, uma espécie de lamento, falados de um jeito que eu não conseguia compreender. Talvez em alguma língua estrangeira. Aquilo tudo era um pouco assustador. Não digo que eu senti medo, mas eu senti algo.
— De onde está vindo isso, esse murmúrio? E não me diga que não está ouvindo nada.
— É claro que estou, e fico feliz que também esteja. Não são todos que escutam o chamado.
— Chamado? Que história é essa?
Ele tinha me seguido para dentro do prédio, e andava pelos escombros sem esbarrar em coisa nenhuma. Cheguei a questionar se realmente não via nada.
— Você já ouviu falar em kotodama? O poder das palavras?
Eu não respondi. Estava olhando ao meu redor, procurando a origem do som, procurando alguém que justificasse aquilo. Mas não era o som de apenas uma pessoa. Os sussurros pareciam em coro, vindo de um grupo de bocas, não de uma só.
— As palavras são energia, e a energia é matéria. Muitas pessoas ficam perdidas, se desesperam quando se encontram no fundo do poço, e tudo que elas querem é ser resgatadas. Não percebem que possuem elas próprias o poder transformativo que as palavras carregam. Talvez seja assim que você se sente também?
— Olha, pode parar com essa baboseira pseudo-espiritual. Eu não sei o que isso tem a ver com-
Eu parei de falar. Minha atenção foi arrancada com força pela visão de alguém mais acima, em um dos corredores abertos dos andares mais altos. Havia um youkai parado ali, de frente para o espaço vazio, para onde um dia deve ter tido um chão e agora era apenas um vão aberto.
Ele estava no ponto mais alto, talvez dez ou doze metros acima de nós. Apenas isso, parado ali, braços do lado do corpo, imóvel, olhar fixo na frente. Talvez sussurrando alguma coisa?
— O que…
Mas antes que eu completasse a pergunta, o corpo dele se inclinou para a frente e ele caiu. Ele não se jogou, ou pulou, ou fez qualquer gesto brusco. Apenas deixou o corpo tombar, caindo com um estrondo entre os escombros exatamente diante de nós.
Eu só lembro de arregalar os olhos, abrir a boca e soltar alguma exclamação qualquer, enquanto olhava primeiro para o youkai cego do meu lado — que sequer havia se abalado com o barulho — e para a montanha de entulhos que escondia o corpo caído.
Eu corri até lá, comecei a afastar os entulhos, mas o youkai atrás de mim colocou a mão no meu ombro, disse para eu não me preocupar e, depois disso, eu apaguei.
NOTA: Esse capítulo demorou mais do que eu queria, mas eu precisava deixar algumas ideias marinando antes. E eu também não queria ter terminado assim. Na verdade, já comecei a escrever a cena seguinte, mas achei que, se eu terminasse onde queria inicialmente, o capítulo iria se estender demais, e que uma quebra seria melhor. Enfim, a parte boa é que pelo menos o começo do próximo capítulo já está escrito haha
