"O passado é um país estrangeiro: as coisas são feitas de maneira diferente por lá." - L. P. Hartley
...
Depois da morte de Suzuki, eu passei as duas noites seguintes em claro, vivendo a base de café e do meu estoque de cigarro. Eu não conseguia deixar de repassar tudo que tinha acontecido até então, tudo o que eu tinha visto e ouvido naquele acampamento, no Blue Lotus, na feira de Ikebukuro. Comecei a achar que estava esquecendo de algo, ou que tinha deixado algum detalhe escapar e isso não me deixava dormir. Revirei a caixa com as coisas de Nika, li e reli a agenda de clientes e marquei alguns nome, procurando por todas as instâncias que Suzuki aparecia. Era como se até então eu não tivesse levado esse caso a sério o bastante e agora precisasse recuperar o tempo perdido.
Depois que encontramos Suzuki, os bombeiros apareceram para controlar as chamas e a polícia surgiu logo em seguida, dizendo que iria investigar a causa do incêndio. Uma perda de tempo. Para mim, estava óbvio. Eu tinha visto a garrafa de álcool 70 aberta e vazia no canto da cozinha, parcialmente derretida pelo calor. Eu tinha visto as labaredas se concentrando no corpo de Suzuki. E, principalmente, eu sabia de outros dois suicídios recentes e igualmente insólitos, um deles que eu tinha visto com meus próprios olhos. Aquilo não podia ser coincidência. Como Kurama tinha falado, eles não podiam ser incidentes isolados.
Foi aí que me veio um estalo.
Comecei primeiro em arquivos de jornal. Foquei em algumas palavras-chave, buscando qualquer nota com menção a suicídios ou mortes inexplicáveis relacionadas à comunidade youkai. Procurei nos obituários e nos pequenos noticiários locais.
O primeiro que encontrei era de um mês atrás. Um comerciante, morador da Cidade Alta, que havia caído nos trilhos do metrô às sete horas da manhã. A nota era bem vaga sobre as circunstâncias da morte, e focava mais no atraso dos trens em uma das principais linhas da cidade.
Aquilo não era o suficiente para embasar minha teoria. Então comecei a olhar também nos tabloides semanais, nos mais sensacionalistas. Eles não tinham filtros e nem muito critérios, publicavam assuntos que jamais chegavam nos jornais maiores.
E aí os casos começaram a brotar.
Uma dona de casa que havia enfiado a cabeça em uma panela de água fervendo. Um jovem que se enforcou usando o cabo de um aparelho eletrônico. Um casal que teria ingerido doses cavalares de querosene. Um carpinteiro que se decapitou com uma serra elétrica.
Sete ao todo, nos últimos três meses. Fora os que não haviam sido reportados.
Eu fiquei consternado com aquelas informações. Lembro de olhar no relógio e ver que era pouco mais de seis da manhã, que o sol já estava começando a dar as caras. Meu café já estava frio, mas eu terminei mesmo assim e joguei o resto do cigarro dentro da caneca.
Que inferno. Pelo visto eu teria que ir ao Reikai.
(...)
O lugar estava o mesmo de sempre. O olhar de todos sobre mim, também. A minha reputação junto ao Mundo Espiritual tinha tido altos e baixos, mas nos últimos anos eu tinha conseguido um recorde. Meu status de persona non grata tinha sido atualizado com sucesso depois do escândalo de seis anos atrás. Não que eu me importasse. Por mim, não pisaria nunca mais no Reikai, mas aquelas eram circunstâncias extraordinárias e tive que engolir o orgulho.
— Vim falar com Koenma — eu avisei para o ogro que barrava a passagem no salão principal.
— Ele não está recebendo ninguém.
— É? Que pena.
Empurrei o pobre coitado para o lado, e ele ficou sem reação. Eu sabia que logo teriam alguns oficiais na minha cola, mas eu não estava querendo transformar aquilo em um circo. Quanto mais rápido resolvesse aquilo com Koenma, melhor.
Claro que não foi bem assim. Outros tentaram me barrar pelo caminho, alguns soaram alarme de intruso e eu estava com a minha impaciência no talo quando Koenma apareceu para colocar panos quentes. Liberou todo mundo, disse que eu tinha autorização e me mandou seguir até sua sala. Mas depois que fechou a porta, já não estava mais tão simpático.
— O que você quer, Yusuke?
— Você soube que Suzuki morreu?
Ele não respondeu. Estava apoiado na porta fechada, onde cruzou os braços, abaixou a cabeça e soltou um suspiro aborrecido.
— É claro que sabe — eu falei.
— Você veio aqui para falar sobre Suzuki?
— Você sabe por que eu vim aqui. Eu sei sobre os suicídios.
Koenma me encarou. Ele tinha aquele olhar de quem sabia mais do que gostaria de admitir. O aborrecimento virou cautela no rosto dele.
— Yusuke-
— Era sobre isso que você estava falando aquele dia que me encontrou, não é? Tem alguém, ou alguma coisa, por trás desses suicídios. E você sabe o que é. Merda, esse tempo todo você sabia.
Sim, eu sei. Não é como se Koenma não tivesse tentado falar sobre isso antes comigo. Eu não tinha muita moral para cobrar explicações quando tinha sido eu quem não quis saber, quem praticamente pediu para ficar de fora disso. Mas eu estava agitado demais para me importar. Koenma, ao contrário, continuava parado, me olhando.
— Eu achei que você não queria mais se envolver com esse tipo de assunto.
— As coisas mudam um pouco de figura quando meus amigos começam a morrer. Agora foi Suzuki, quem vai ser o próximo?
Ele descruzou os braços e foi até a mesa se sentar. Estava extremamente relutante. Parecia estar pensando mil vezes antes de falar qualquer coisa.
— Você não tem nada a dizer? — eu insisti.
— Sim, você tem razão. Eu notei um padrão estranho na morte de alguns youkais. Suzuki foi a vítima mais recente.
— Por quê? Por que isso está acontecendo?
Koenma hesitou mais uma vez.
— Yusuke… eu não deveria ter mencionado esse assunto com você aquele dia. Foi apenas um desabafo. Não posso pedir que você colabore.
— Você não entendeu o que eu disse? Dessa vez sou eu que quero que você me conte o que você sabe. Eu que quero poder ajudar!
— Acontece que eu não sei se é prudente deixar que você tome alguma participação nisso.
— O quê?!
— Yusuke, existem coisas… — Ele fez uma pausa, como se estivesse medindo as palavras — coisas que fogem da minha compreensão. Que nem eu mesmo sei se tenho condições de lidar. E que eu temo que você também não tenha. Acredite, eu não estou na menor condição de recusar nenhum tipo de ajuda, mas eu simplesmente não posso arriscar-
— Ah, mas era só o que me faltava — eu gritei — Desde quando você está preocupado com o que acontece comigo? Onde estava sua preocupação quando você me mandou praquela merda daquela caverna? Quando deixou Keiko morrer?
O rosto de Koenma estava rígido feito pedra, e às vezes eu penso que era sua maneira de esconder o quanto tinha ficado sentido com aquela acusação. Mágoa faz com que a gente seja cruel de vez em quando. E eu nunca tive o hábito de pensar antes de falar. As palavras saíram antes mesmo que eu me desse conta.
Nessa hora, a porta da sala se escancarou e nós dois olhamos ao mesmo tempo. Eu já esperava encontrar ali algum membro do Esquadrão Especial para me jogar para fora, já esperava poder descontar minha frustração em alguém, mas em vez disso no meio da porta estava Botan.
Ela me olhava com uma expressão de espanto, que logo virou felicidade.
— Yusuke! Você voltou!
E ela jogou os braços ao redor do meu pescoço, quase me derrubando.
— Botan, menos — eu falei, dando alguns tapinhas no seu braço para que me soltasse.
Ela se desprendeu, mas ainda mantendo as mãos nos meus ombros. E não demorou para notar o clima terrível que pesava naquela sala, olhando de mim para Koenma, e de novo para mim.
— Não me diga que brigaram de novo — ela falou.
— Botan, por favor acompanhe Yusuke de volta para o Ningenkai.
Koenma já não mais conseguia me encarar. Desviou o rosto, começou a juntar alguns papéis da mesa e fingiu se ocupar com qualquer outra coisa para não precisar olhar para mim.
— Não precisa, Botan, eu conheço o caminho. E quer saber? — eu falei — Foda-se essa merda.
E sai, batendo a porta. Voltei para o apartamento e dormi até o dia seguinte.
(…)
Dizer que eu acordei com uma dor de cabeça dos infernos era um eufemismo. Acordei cansado, como se não tivesse descansado nada. O pesadelo tinha vindo de novo, mas muito mais vívido dessa vez. Provavelmente por causa da briga com Koenma.
No sonho, eu estava no mesmo lugar, como sempre. A caverna no meio do oceano, com as paredes cobertas de espirais e blá blá blá. Mas era diferente. Dessa vez eu ouvia os sussurros que tinha ouvido no acampamento, sentia as moscas voando perto de mim e notava rabiscos diferentes na parede. A flor negra crescia pelos cantos. Eu ficava parado no lugar, hipnotizado. Querendo sair, mas não conseguindo. Acordei suando frio.
Tinha uma chamada não atendida de Kurama no meu celular. Eu demorei a retornar a ligação. Precisava tomar um banho e arejar a cabeça um pouco, pensar no que eu estava disposto ou não a fazer. Ou nem sequer pensar em nada. Era bom quando eu conseguia fazer isso, deixar a mente em branco, completamente vazia.
No chuveiro, me senti quebrado. Tinha hematomas que eu nem lembrava como tinha feito, e a pele ardeu por causa de algum arranhado que eu também já tinha me esquecido.
Ainda enrolei um pouco depois do banho. Pela janela, vi o dia feio e cinza escuro, uma ótima analogia para como estava indo minha semana. A caixa com as coisas de Nika estava aberta na mesa, o material que eu tinha encontrado sobre os suicídios espalhados pelos cantos. Eu achei que tinha feito progresso descobrindo as outras mortes, mas se não visse qual era a ligação entre eles, de que adiantava? E a ida ao Reikai ajudou muito pouco a esclarecer qualquer coisa.
Merda. A dor na cabeça pulsou forte. Liguei para Kurama e pedi para que me encontrasse no restaurante.
(…)
O restaurante ainda levava o nome da família da Keiko. Quando os Yukimura se aposentaram e se mudaram para Okinawa, eu prometi que manteria o lugar intacto e cuidaria da cozinha — e é o que eu tenho feito até hoje, mesmo que eles não estejam mais aqui para ver isso. Até a fachada era a mesma de anos atrás. Cuidar do restaurante tinha sido a única coisa a manter minha sanidade nos últimos anos, então era com um pouco de remorso que eu me dava conta do quanto estivera deixando ele de lado nos últimos dias por conta desse maldito caso.
Kurama não demorou a chegar. Eu destranquei a porta para que passasse, mas voltei a trancar e manter a placa de "Fechado" na porta. Mais um dia sem clientes. Eu voltei para a parte de trás do balcão, onde estava preparando um udon rápido apenas para ter algo no estômago além de café. Ofereci para Kurama, mas ele recusou.
— Como você está?
— Um lixo — respondi — Parece que tem uma britadeira martelando a minha cabeça há dias.
— Eu quis dizer como você está.
Eu parei de cozinhar um segundo. Estava de costas para ele, que agora estava sentado em uma banqueta diante do balcão, mas eu tinha entendido a pergunta. Não era exatamente sobre os últimos dias que ele estava se referindo.
— Estou indo, você sabe como é... Pra ser sincero, achei que já ia estar mais acostumado com o fato de que as coisas nunca mais vão ser como antes, mas no fundo continua sendo uma droga. Eternamente pensando em como tudo poderia ter sido diferente se eu tivesse feito escolhas diferentes.
— Não vale a pena pensar no que não aconteceu, Yusuke.
Claro. Falar era muito mais fácil do que fazer. Mas eu não ia entrar nesse mérito.
— Tem visto Kuwabara?
— Sim, às vezes.
— Como ele está?
Eu trouxe meu prato para o balcão e sentei de frente para Kurama. Ele deu um sorriso discreto.
— Eu acho que você sabe o que eu penso.
Eu olhei para ele, mas logo voltei a afundar minha cara no prato.
— Que eu devia perguntar isso pra ele pessoalmente. Eu sei. Mas por que não diz logo o que queria falar comigo?
Kurama voltou a ficar sério. Abriu o lado esquerdo do paletó e tirou de bolso interno o plástico com a flor negra que tinha colhido no acampamento. Colocou o plástico no balcão.
— Lembra disso? — ele perguntou.
— A planta que estava crescendo no prédio em ruínas. O que tem ela?
Ele olhou para a flor no balcão por alguns segundos a mais do que eu esperava. Kurama nunca fora de rodeios.
— Seu nome é Lírio da Noite. O último registro dessa espécie no Makai é de pelo menos 1800 anos atrás. Como eu já tinha imaginado, é uma planta extremamente rara, que precisa de condições especiais para florescer, e ainda assim, brotou aqui, no Ningenkai.
— Tinha uma dessas entre as coisas de Nika. Mas parecia fresca, recém-arrancada.
Kurama balançou a cabeça.
— A Lírio da Noite não morre depois de cortada. Ela é um tipo de "sempre-viva", uma planta que mantém suas características mesmo quando podada.
— Me desculpa, Kurama, mas não estou vendo como nada disso é importante.
Ele fez uma pausa novamente, hesitante.
— Tem mais uma coisa. Existem…. Algumas lendas urbanas em volta da aplicação dessa flor no passado. Histórias que sugerem o uso do Lírio em rituais de magia negra, ou cultos relacionados a necromancia ou ciências ocultas. São histórias antigas, claro, quase ancestrais, e é difícil encontrar informações concretas a respeito. Mas digamos que a reputação dessa flor é um tanto obscura.
— Magia Negra? Como o dragão de Hiei?
— Não exatamente. As Chamas Negras de Hiei são elementais, em teoria, apesar de não saber exatamente o que envolve o processo de dominação da técnica.
Eu olhei para ele, ainda mastigando a comida. Havia algum resquício de receio no olhar de Kurama, uma certa apreensão enquanto falava sobre o assunto, como se ele não fosse muito agradável. Aquilo era novidade. Não lembrava de ver Kurama tendo muita dificuldade para abordar qualquer tema que fosse.
— O que você está querendo me dizer? Que estão praticando alguma magia negra milenar do Makai naquele acampamento?
— O detetive é você, Yusuke.
— Mas é uma possibilidade.
— É uma possibilidade.
— Que ótimo — eu falei, largando os hashis no prato vazio. Era isso que teria matado Suzuki, Nika e os outros? Era isso que Koenma não queria me contar? Que alguns lunáticos estavam tentando replicar rituais de magia negra de dois mil anos atrás? — É por isso que você sabia que Suzuki seria a próxima vítima?
— Foi apenas um palpite… não apenas pelo Lírio da Noite, mas eu também vi runas inscritas no interior daquele prédio, caracteres de uma língua morta do Makai que, infelizmente, não sei ler. Achei que pudessem ter uma conexão.
— Bom, baita palpite certeiro então, não é?
Eu contei sobre os outros casos que eu havia descoberto. Sobre como Koenma havia confirmado, mas ao mesmo tempo, negado qualquer informação adicional. Contei tudo de maneira mecânica, factual. Eu ainda não tinha processado tudo, mas a ficha ia caindo a medida que eu relatava para Kurama.
Aquele caso era muito, muito pior do que eu achei que seria.
(…)
Eu voltei para casa um pouco atordoado. Admito que não teria dado muita importância para esse papo de magia negra se não fosse Kurama falando a respeito. O que posso fazer? Ele tinha credibilidade. Ainda disse que precisava de mais tempo para entender quais eram as verdadeiras propriedades do Lírio e fazer alguns testes. Pelo visto a flor era realmente tão antiga e insondável que até Kurama esbarrava em dificuldades.
A morte de Suzuki também ainda queimava no meu cérebro. Me incomodava que a última vez que nos falamos tinha sido para brigar, que ele estava ressentido comigo e que não chegamos a nos entender. Não que fossemos muito próximos, de qualquer forma, mas me deixava indisposto saber que ele morreu me considerando um filho da puta. Era como se o assunto tivesse ficado inacabado.
Pensei em todo mundo de quem eu me afastei. Pensei em Raizen literalmente morrendo de fome e deixando a vida acabar por causa de um amor perdido. Acho que eu não era muito diferente dele no fim das contas.
Entrei em casa, me joguei no sofá e não deu dois segundos para que eu sentisse a presença dela. Porque eu não estava surpreso?
— Oi, Botan — eu falei, antes mesmo de vê-la — Por favor não me diga que ficou aqui me esperando esse tempo todo.
— Eu estava preocupada!
— É claro que estava.
Eu continuei deitado, encarando o teto, vendo Botan se aproximar pelo canto do olho.
— Por que você foi falar com Koenma? — ela perguntou.
— Ele não te contou?
— Ele não tem me contado quase nada ultimamente.
— Então talvez seja melhor assim.
Eu fechei os olhos, na esperança que ela não insistisse. Mas não seria Botan se ela não insistisse. Minha ida ao Reikai era a abertura que ela precisava para tentar falar comigo.
— Yusuke, você não acha que deviam fazer as pazes de uma vez por todas? Eu entendi o seu luto, entendi melhor do que ninguém, de verdade. Eu vejo pessoas passando por isso todos os dias. Mas já são seis anos. Essa briga não vai levar a lugar nenhum.
— Eu realmente não quero falar sobre isso, Botan.
— Mas você não pode continuar agindo desse jeito.
— Eu acho que posso continuar agindo do jeito que eu quiser.
Ela ficou calada e eu abri os olhos. Botan estava agachada do meu lado, agora me olhando com a testa franzida e a boca apertada de indignação.
— Você está sendo injusto.
Eu me sentei no sofá e ela voltou a se levantar. Tateei no bolso a procura do cigarro e acendi um.
— Será que você não percebe como tudo isso afetou o senhor Koenma também? — Botan continuou.
— Agora eu deveria sentir pena dele, é isso?
— Eu só estou dizendo que ele já pagou pelos erros dele. E continua pagando. Você não imagina como ficou a posição dele no Reikai depois do que aconteceu. Ele foi praticamente alienado pelos outros membros do Mundo Espiritual, perdeu quase todo o apoio. Se hoje ainda obedecem ele, é por mera formalidade.
— Nada disso é problema meu.
— Koenma quase não tem mais aliados, sabia? Ele sempre teve que lutar contra a maré no Reikai, principalmente por sempre te defender.
Eu levantei, me enervando com aquela conversa que eu nem queria ter começado.
— Botan, tudo isso é consequência das ações que ele tomou, consequência que podia ter sido evitada.
— Ele não tinha como saber-
— Ah não, de novo esse argumento? Para com isso, né? Ele não é a porra do líder do Mundo Espiritual? Não é literalmente a obrigação dele saber essas coisas?
Botan me lançou um olhar ofendido. Eu falei que não queria conversar sobre isso. Eu sabia que iria explodia com ela assim como tinha explodido com Koenma. Ela tinha me pego num mau dia, e querer pintar Koenma de vítima era a gota d'água.
Eu odiava relembrar aquilo, mas agora meus pensamentos, um tanto masoquistas, estavam me levando para caminhos que eu preferia não ir. Se eu pudesse, apagava todas aquelas lembranças da minha cabeça.
Seis anos atrás eu já nem era mais um detetive espiritual a serviço de Koenma. Mas, na época, a vida de dono de restaurante/detetive particular nas horas vagas não estava sendo suficiente para me tirar do tédio — a maioria dos meus casos era completamente banal, com esposas desconfiando da traição dos maridos e vice-versa. Então quando Koenma pediu minha ajuda, eu aceitei sem pensar duas vezes.
Ele me explicou que existe um ponto de convergência entre os três mundos — Humanos, Demônios, Espiritual — onde a conexão entre eles é maior e, por causa disso, bem frágil. Só que, de repente, essa conexão dava alguns sinais de instabilidade e ele precisava de alguém para verificar o que estava acontecendo. Segundo ele, um desequilíbrio nesse local poderia ter consequências catastróficas. Quais, nem ele sabia.
O problema era que esse ponto ficava nas profundezas do Makai, em uma região tão remota que nenhum ser do Reikai jamais tinha ido. Mesmo sendo uma área de convergência, o acesso era apenas a pé pelo próprio Makai. Era aí que eu entrava.
Koenma quase não me deu instruções nenhuma sobre o que fazer ao chegar lá, ou mesmo como chegar lá. Ele alegou que nada remotamente parecido já tinha acontecido antes, e por isso, o melhor que eu poderia fazer era ter cautela e reportar de volta assim que possível.
O que eu descobri depois era que isso não era exatamente verdade. Algo semelhante havia acontecido, porém há tantos anos que Koenma ainda nem sequer existia. O Rei Enma tinha lidado com isso na época, mas Koenma estava tão decidido a não depender do pai para tomar suas decisões, que consultá-lo sobre o assunto não passou pela cabeça. Idiota. Como podia ser tão incompetente?
— Ele me enviou praquela caverna completamente despreparado. O mundo podia ter acabado porque "Koenma não tinha como saber". Ah, dá um tempo, Botan!
— Bom, não é como se você tivesse se importado muito com isso na época, não é? Você sempre foi impulsivo, pra não falar cabeça-dura! Corria o risco de nem ouvir orientação nenhuma e fazer o que desse na telha. Não foi sempre assim com você? Você sempre atirou seu bom-senso pela janela quando estava em alguma missão. Por que seria diferente dessa vez?
Minha cabeça doía. Eu não acreditava que estava tendo essa mesma discussão mais uma vez. Meu cigarro acabou, e eu acendi outro na sequência. A acusação de Botan pegou na minha ferida e eu quis ferir de volta.
— E as almas perdidas daquele dia, Botan? O Reikai por acaso já as recuperou? Ou elas continuam desaparecidas?
Ela fechou a cara.
— É impossível conversar com você.
— Eu falei que não queria falar sobre isso.
— Tudo que você faz é afastar as pessoas que gostam de você.
Eu me virei de costas, balançando a cabeça. Fechei os olhos e as imagens da caverna surgiram de novo. O tal ponto ficava assim, dentro de uma caverna, em uma ilha no meio de um oceano com águas tão quentes que era conhecido como Mar de Fogo. As paredes eram cobertas por espirais marcadas na pedra e eu não lembro de quase nada, nem de quanto tempo fiquei lá. Pelos meus cálculos, 36 horas. Mas eu não tenho certeza. Tudo é um borrão quando se trata dessa maldita caverna.
Só depois ficamos sabendo que a presença física de algo ou alguém ali era o que causava esse desequilíbrio. A caverna era tão remota que as incidências eram baixíssimas. A teoria era que provavelmente algum animal teria passado perto e causado uma pequena interferência, que seria dissipada sozinha em pouco tempo. Ou seja, que não havia motivo para se preocupar. Mas Koenma, na ânsia de se mostrar um líder capacitado, me mandou às pressas. A banalidade daquilo era desconcertante.
E claro, minha ida à caverna causou abalos por toda parte. Um tsunami varreu a costa do Japão. Vulcões adormecidos por todo o Makai foram acordados e jorraram lava por quilômetros. E centenas de almas que seriam conduzidas pelo Reikai naquele dia simplesmente se perderam.
— Talvez eu só queira ficar sozinho. Você já parou pra pensar nisso?
— Keiko ia detestar te ver assim.
Merda. Eu achava que ia passar mal. Fui até a janela, e o tempo continuava fechado e sem-graça. Como tudo podia ter mudado tão rápido?
— Ela estava grávida, Botan — eu falei, ainda sem me virar. Falei em voz baixa, mas alto o suficiente para me fazer entender. Ouvi o pequeno susto escapando da boca dela.
Por um tempo, ela ficou sem palavras.
— Eu… eu não fazia ideia… — ela falou baixinho.
Eu me virei. Botan tinha os dedos em frente da boca, me olhando com uma mescla de choque e pena. Parecia tão incrédula quanto eu estivera seis anos atrás.
— Descobrimos na véspera da minha ida ao Makai. Combinamos que iríamos anunciar pra todo mundo depois que eu estivesse de volta, mas enquanto isso, ela quis ir passar uns dias com os pais em Okinawa.
— Eu realmente sinto muito.
Era a primeira vez que eu falava sobre aquilo em voz alta com alguém. Doeu menos do que eu achei que fosse doer. Talvez eu já estivesse anestesiado. Ela se desculpou mais uma vez e o assunto finalmente morreu entre nós. Afinal, o que havia mais para ser dito? Que tinha sido meu desespero que me levou a ter um comportamento extremmente hostil aquele dia? Que me levou a me afastar de todo mundo?
Mas talvez agora Botan entendesse porque era tão difícil perdoar o Koenma. E pior ainda, porque era tão difícil me perdoar.
