Marguerith Black estava sentada sob a agradável sombra de uma ameixeira próxima ao pequenino lago cristalino do jardim coberto da casa do noivo. Embora, lá fora, o frio do inverno praticamente dominasse a paisagem, ali dentro, aquecedores mantinham a temperatura amena para as plantas e para quem ali se decidisse descansar. Ela bordava com delicadeza ímpar uma peça do seu enxoval. Como a mãe passava grande parte do dia deitada por causa da enfermidade, ela aprendeu a bordar com Rosette para lhe fazer companhia e tomou gosto pela atividade.
Era a primeira vez que visitava a residência dos Thorne no norte da Inglaterra. Como não ficaria de bom tom ela pernoitar sozinha na casa de Pericles antes do casamento, Hesper foi junto com a sobrinha. Contudo, naquele momento, a matriarca dos Black havia saído com o ruivo em uma visita ao vilarejo próximo, Wallsburg.
Quem observasse à distância a jovem morena de olhos verdes, julgaria que ela estava acompanhada somente de seus próprios pensamentos, porém, se olhasse com mais atenção, perceberia que uma figura se mexia detrás dos arbustos próximos à árvore.
- Nossa. Definitivamente este jardim é maravilhoso - uma moça de cabelos chanel bastante escuros, disse, saindo por entre as plantas.- Acho que vou tirar as minhas próximas férias aqui.
Sob a ameixeira, a Marguerith riu, não desviando o olhar de seu bordado.
- Acho que os criados ficariam um pouco incomodados em ver alguém acampando aqui. - Marge gracejou.
A outra morena apenas sorriu, sentando-se ao lado da gêmea. Carmilla Sheridan foi colega de quarto de Marguerith durante os anos que estudou em Hogwarts, e, não poderia ser mais diferente da jovem Black em termos de personalidade. Ela também estava passando o feriado de Natal em Wallsburg com a família e seu noivo, Abraham Reinfield.
Carmilla sentou-se na grama, apoiando a cabeça sobre os joelhos dobrados e fitando o céu cinzento através do teto esvidraçado do jardim.
-Vai sujar sua roupa se ficar sentada aí. - Marge advertiu.
A outra morena apenas deu de ombros.
- E não aproveitar um jardim assim maravilhoso em toda sua plenitude? Quero algo assim na minha casa e de Abe- ela falou sonhadoramente.
Sempre amou plantas e seu noivo sabia dos planos de Carmilla e a apoiava com a ideia do jardim.
Saindo de seus devaneios, a jovem Sheridan virou o rosto de lado para fitar a outra moça, sentada no banco.
- Mas você ainda não me contou como está a vida de mulher quase comprometida. Teve muitos momentos românticos ao lado do seu noivo?
Marguerith não se deu ao trabalho de desviar os olhos do bordado, assim não pôde ver o sorriso maroto no rosto de sua amiga.
-Minha querida Marge, discreta como sempre. Te prometo que o que contar aqui vai permanecer entre nós duas. Promessa de dedo mindinho.
A gêmea finalmente levantou o rosto. Ao ver o sorriso de provocação nos lábios da morena de cabelos chanel, Marguerith meneou a cabeça. Sabia que Carmilla não ficaria satisfeita sem resposta alguma, e, abaixando o rosto, ela disse:
- Pericles é um homem gentil, Milla. Eu estou satisfeita com o caminhar das coisas. Além disso, você sabe que minhas obrigações são para com minha família também. Esse casamento será muito bom para todos nós.
Carmilla suspirou, movendo-se para mais perto de Marge. Apoiou as costas no largo tronco da ameixeira, assim como fazia a moça de cabelos anelados.
- Obrigações não trazem felicidade para ninguém, Marguerith. Você precisa parar de exigir tanto de si mesma, não tem que dar exemplo de perfeição o tempo todo.
Marge soltou o tecido e a agulha que usava para fazer seu bordado e fitou a colega, séria.
-As coisas ao são tão simples assim. - ela respondeu.
Carmilla deu outro suspiro. Realmente, era complicado entender a situação da amiga. Ela tivera uma educação relativamente liberal para os padrões de bruxo da alta classe.
-Sabe, Marge - ela começou, adquirindo um ar mais sério do que as pessoas que conviviam com Carmilla estavam acostumadas. - eu sei que as coisas são complicadas... Especialmente para famílias tão importantes e tradicionais como a sua, mas eu acho que todas as pessoas deveriam ter a felicidade como prioridade.
-Casamento e amor são a mesma coisa apenas para sonhadores como você. E já disse, Pericles é um homem gentil. Pretendo ser uma boa esposa para ele. É a coisa certa a se fazer.
-Talvez eu realmente seja ingênua. – Carmilla respondeu – Sabe, Marge...
A gêmea mordeu os lábios de leve, esperando o encaminhamento da conversa da outra.
-Você sempre foi reservada demais, e, por isso, muitas vezes, em respeito ao seu jeito de ser, eu e Alicia evitávamos em entrar na sua intimidade, mas isso não significava que não gostássemos de você menos do que gostávamos uma da outra. Eu realmente queria que você fosse feliz.
A caçula das gêmeas Black sentiu sua expressão se desanuviar com as palavras da amiga. Nunca suspeitou que as colegas se preocupavam a tal ponto com ela.
-Eu agradeço, Carmilla - ela respondeu, com um sorriso.
Entretanto, a outra moça não sorriu em retribuição, continuou com o semblante grave.
-Sabendo quem você é na sociedade bruxa, certamente eu não deveria lhe dizer isso. Mas, se eu ficar calada, minha consciência não vai me deixar em paz. - ela fez uma breve pausa - Sempre foi óbvio para mim e para Alicia que você era apaixonada pelo Alphard desde jovem. E ficamos felizes quando soubemos que iam se casar. Alphie contou para Abe e Bart...
-Se ele me amasse mesmo, não teria ido embora- Marge cortou a colega, deixando transparecer uma pontada de melancolia em sua voz.
A morena de cabelos chanel abaixou a cabeça, pensativa.
-Isso é uma coisa que Abe nunca entendeu, nem eu. Alphie parecia tão feliz e resoluto. Simplesmente resolveu partir e agir como se não tivesse acontecido nada entre vocês. - ela retorquiu – Eu sei que isso te fez sofrer muito. E por tudo o que conversamos hoje, ficou óbvio para mim que você não ama Pericles, que faz isso apenas por dever à sua família. Eu não sei se seria capaz de passar o resto da minha vida ao lado de alguém que eu não amo. E não é porque Alphard foi idiota que você deveria fazer isso.
Marguerith mordeu novamente os lábios. Carmilla estava sendo dura, quase agressiva em suas palavras, mas a moça reconhecia a verdade que existia ali. Ela desviou o olhar para a cesta de costura ao seu lado, guardando o tecido e a agulha dentro dela.
-Já está tarde, acho que um bom chá seria bem-vindo agora - Marge disse, levantando-se e espanando o vestido de modo a evitar encarar a outra.
A moça de cabelos chanel suspirou novamente, tentando se acalmar. Nunca antes falara de modo tão direto com Marguerith, devia ter imaginado de que nada adiantaria e que a reação dela seria se trancar em sua concha.
-Obrigada, Marge - ela respondeu, de um modo mais formal do que pretendia - Mas eu preciso ir embora, Abe está me esperando na vila. Agradeço pelo convite. Foi bom revê-la. Também agradeço pelo convite para o casamento, mas não poderei comparecer, estarei na Escócia no próximo mês.
-Eu lamento, mas compreendo - Marguerith respondeu - E agradeço por ter vindo me visitar, Milla.
A outra moça assentiu. Em silêncio as duas caminharam em direção à saída do jardim. Marguerith podia sentir suas têmporas pulsando, como se as palavras de Carmilla estivessem reverberando por toda a sua mente.
Marguerith abriu a porta com uma das mãos enquanto equilibrava a bandeja de chá na outra. Na mesa do escritório, Pericles estava concentrado no trabalho que trouxera para terminar em casa. Ele desejava adiantar o máximo possível de coisas para que pudesse desfrutar calmamente as festividades de final de ano com a noiva.
O homem apenas levantou a cabeça quando notou a sombra de Marguerith se projetar sobre os documentos que ele avaliava.
- Boa noite, querida. – ele disse, fitando-a com um sorriso cansado no rosto.
A moça apenas retribuiu o gesto, enquanto depositava a xícara de chá de canela diante de noivo. Ela observou o homem sorver o líquido fumegante, notando a satisfação dele no ato.
- Obrigado. – ele falou, antes de beber um novo gole.
A morena de olhos verdes anuiu, pensando consigo mesma que aquela seria a vida dela nos próximos anos. Já dera as instruções para as tarefas dos criados no dia seguinte. Assim como na casa dos Black, onde ajudava a tia e a irmã na administração do casarão, ela se sentia bastante confortável com a tarefa, e a tentava cumpri-la com empenho.
No fim das contas, a vida dela não seria tão ruim. Pericles era um bom homem e aquele seria um bom lar. Mesmo que isso significasse matar seu antigo e tolo sonho adolescente.
Ela sentiu a mão do noivo segurar a sua com delicadeza. Tentando abafar seus pensamentos e suas dúvidas, ela o fitou, observando o olhar preocupado no rosto dele.
- Marge? Você está bem? – Thorne perguntou, com uma voz grave – Está pálida e calada desde que voltei de Wallsburg com sua tia.
A moça apenas meneou a cabeça, forçando-se a dar um sorriso, ainda que tênue.
- Eu estou apenas cansada, Pericles. E com um pouco de dor de cabeça.
O homem levantou-se, segurando Marguerith pelos ombros e depositando um beijo suave na fronte dela.
-Você tem se esforçado em demasia. Sei que o casamento é no próximo mês e ainda há muito que fazer, mas se continuar neste ritmo, vai adoecer.
Ela ergueu o rosto o observando com cuidado. Pericles era um homem bom... - Marge repetiu mais uma vez para si.
Ele se preocupava com ela, era gentil, cuidava bem dela... O que mais a caçula das gêmeas poderia querer?
- Perry – ela murmurou, em um fio de voz – Já que estamos tão perto da cerimônia de casamento... Talvez não devêssemos mais esperar.
O homem não respondeu de imediato, apenas observou atentamente os traços do rosto da noiva. Ele percebia a determinação natural e constante presente em cada um dos atos dela, mas havia o rastro de alguma outra coisa que ele não conseguiu discernir com precisão.
Sem dizer palavra alguma, ele soltou os ombros de Marguerith, dirigindo-se até a porta, trancando-a, para que não pudessem ser incomodados. Fazendo o caminho de volta, ele enlaçou a mão dela, conduzindo-a até o divã que havia no escritório.
A moça se deixou levar, mantendo o olhar fixo no chão. Mesmo ao sentir a maciez do estofado do divã, ela não ousou levantar o rosto. Sentiu os lábios de Pericles pousarem novamente em sua testa, as mãos dele deslizarem carinhosamente por seus cabelos. Ela apenas fechou os olhos, deixando que o noivo avançasse em suas carícias.
Os lábios dele tocaram os dela, enquanto as mãos passavam dos cabelos para a cintura. Pericles afastou-se de Marge momentaneamente. Ela matinha os olhos fechados, mesmo depois de encerrado o beijo. O homem a aconchegou em um abraço, a cabeça apoiada na curva do pescoço que se insinuava sob a gola do vestido. Calmamente, ele começou a desamarrar o laço da roupa que Marguerith usava. Foi, então, que ele percebeu o corpo dela se tensionar completamente. Pericles, então, a soltou, o que acabou por fazer com que a moça abrisse os olhos e o fitasse com uma expressão de indagação.
- Realmente estamos próximos da cerimônia de casamento, Marguerith e, por isso, podemos esperar. – ele disse – Não quero que faça nada contra sua vontade. Você não precisa provar nada para mim.
A moça abriu a boca, tentando dizer algo em resposta à afirmação dele, contudo, não conseguiu encontrar as palavras adequadas para a situação.
-Eu já estive com outro homem. - ela disse por fim.
Pericles assentiu. Aquilo não era algo comum em se tratando de moças de família tradicionais, porém, não iria julga-la. Não quando sabia que a própria mãe havia casado grávida dele, ainda que o caso tenha sido abafado na época.
-Ele foi bruto com você? – o homem perguntou, apreensivo.
- Não, mas prometeu se casar comigo e fugiu... – ela sentiu a pontada de dor aumentar no peito.
-Sinto muito. – ele disse, completando – Não é por isso que precisamos nos apressar. Vamos aproveitar com calma nossa noite de núpcias.
- Tudo bem- ela finalmente balbuciou, levantando-se em direção à saída – E obrigada. - Marge disse, já na porta, olhando uma última vez para o noivo.
Não havia rancor nos olhos dele, apenas compreensão.
Pericles era um bom homem, talvez bom demais, era o que Marguerith pensava enquanto caminhava pelos corredores da casa.
Sem que notasse, seus pés a levaram até o balcão que dava vista pra os jardins. Ela se encostou na amurada, deixando os olhos pousarem, em uma expressão vazia, na paisagem. Ela não percebeu quando os flocos de neve começaram a cair do céu muitos minutos depois, umedecendo os cabelos dela.
A moça só retomou ao mundo real, resgatada dos seus pensamentos confusos e desconexos, ao sentir o calor da mão que pousou suavemente sobre seu ombro.
- Marge? Aconteceu alguma coisa? – a mulher mais velha perguntou.
- Tia... – Marguerith murmurou – Será que eu estou realmente fazendo a coisa certa?
Hesper colocou carinhosamente a mão no rosto da sobrinha; ela não precisava ser vidente para saber que algo perturbava o coração da menina. Desde que retornara à Mansão dos Thorne , ela havia notado a inquietação silenciosa que pulsava em Marguerith.
- Certo para quem? Para seu tio? Para você? Para Pericles? – a feiticeira mais velha, perguntou em um tom sereno.
- Eu não sei... – a moça mordeu os lábios.
Marguerith suspirou, sem conseguir continuar. Sentia-se encurralada em uma armadilha que, em parte, foi elaborada por ela mesma.
- Você não precisa dizer nada, se não quiser, Marge.
A mais velha sorriu de lado, acariciando novamente o rosto da sobrinha. Embora Marguerith e Betelgeuse fossem reservadas como convinha a uma Black, existiam coisas que eram possíveis de se perceber nas entrelinhas. Ela cogitara diversas vezes a possibilidade de caçula das gêmeas estar enamorada por outro, apesar de ter aceitado o noivado. Talvez ainda fosse Alphard, talvez outra pessoa.
- Muitos são os sacrifícios que são exigidos de nossa posição. – Hesper continuou – Você não foi a primeira, e, infelizmente, não será a última das Black a se ver enredada em um relacionamento por razões de vantagens econômicas e sociais.
- Eu sei... – Marguerith concordou.
- Entretanto... – a voz firme de Hesper fez com que a moça focasse toda a sua atenção nas próximas palavras da matriarca – se você mudar de ideia e quiser desistir do noivado, saiba que tem meu apoio incondicional. Eu já enfrentei Sirius por Lycoris, e faria o mesmo por você.
-Eu sei, tia... eu sei... – Marguerith respondeu, voltando mais uma vez a fitar o horizonte.
A moça piscou os olhos verdes, pensando nos últimos acontecimentos. As conversas que tivera com Carmilla, Pericles e Hesper se misturavam e se confundiam em sua mente. Faltavam poucos dias para o casamento, poucos dias para começar a nova etapa de sua vida.
Marge simplesmente poderia terminar com tudo e aceitar a ira de Sirius Black sobre si. Seria insuportável nos primeiros meses, apesar de contar com a proteção de Hesper. Contudo, com o tempo o tio aceitaria que perdeu aquela batalha e buscaria outro consorte para a sobrinha. Talvez alguém por quem ela pudesse se apaixonar.
A questão era exatamente aquela... Marguerith poderia novamente se apaixonar?
Ela não ganharia nada contrariando Sirius. Não tinha mais nada por que buscar... Também não havia nada que a mantive em Grimmauld Place... Tampouco algo que almejasse...
Embora Hesper as tivessem educado para serem mulheres inteligentes e proativas, ainda era esperado dela e da irmã o destino de todas as mulheres das famílias tradicionais: casarem e terem sua própria prole.
Por que ela deveria lutar contra isso, se não tinha mais nenhum outro sonho na vida?
Sentia-se como uma casca vazia quando pensava em seu futuro.
Escutou batidas na porta a puxando de volta para a realidade
-Pode entrar - ela disse, acreditando que era um dos criados da casa ou mesmo sua tia.
Entretanto foram os olhos preocupados do noivo que surgiram pela porta aberta, trazendo uma bandeja com o desjejum.
-Bom dia, Marge. Sei que não seria adequado que eu viesse a seu quarto antes do casamento, especialmente depois sobre o que conversamos ontem. Mas queria ver como estava. Hesper disse que acordou indisposta.
Marguerith apenas anuiu, ajeitando-se na cama, de forma pudesse se sentar e servir-se do conteúdo da bandeja que Pericles depositou no criado mudo próximo.
-Apenas estou me sentindo um pouco exaurida - ela falou, antes de mordiscar um pedaço de bolo de nozes.
-Posso? - Pericles perguntou, apontando para um espaço da cama perto de Marguerith ao que ela concordou, intuindo que ele desejava se sentar.
-Se sente mal pelo que me contou ontem? - ele perguntou, segurando uma das mãos da noiva. - Eu não acho que seja menos digna por ter tido uma experiência antes de me conhecer...
Marguerith abaixou os olhos, observando os dedos entrelaçados. Embora estivessem no fim de 1951, a pureza de uma mulher ainda era tão valorizada quanto na época em que sua tia e sua mãe haviam se casado. Para Marge, aquilo dizia muito do que Pericles sentia por ela. Ele parecia ser diferente dos demais homens de seu círculo de convivência. Ainda assim, depois da conversa com Carmilla, sentia-se insegura.
-Estamos fazendo a coisa certa? – a jovem Black perguntou, esperando que o ruivo pudesse decidir por ela.
Pericles deu um meio sorriso e com a mão livre fez um carinho suave no rosto da noiva.
-Só o tempo vai dizer. Todo casamento é uma aposta, e eu quero acreditar que o nosso é uma correta. Só posso prometer te amar e te tratar com o respeito que você merece.
Ainda de cabeça baixa, sentindo-se um pouco melhor, ela respondeu:
-Também quero me arriscar nessa aposta.
