II- Ilusionista

It don't even matter if

E isso nem importa mesmo

I'm an illusionist

se eu for um ilusionista

And look at the lies in here

E olhe para as mentiras aqui

If I make them disappear

Se eu as fazer desaparecerem

Will he then talk?

Então ele irá conversar?

(Amanda Jenssen – Illusionist)


Da extensa lista de coisas que Hermione mais odiava na vida, perder o autocontrole estava no topo. Passara a semana toda escrevendo alguns artigos para a seção "Bruxos saudáveis alcançam a longevidade" do Profeta Diário, mas sua mente não estava inteiramente conectada com o trabalho em questão; vagueava pelas paredes de pedras frias e irregulares da prisão de Azkaban, e no início do famoso projeto de Agosis Pertindum. A princípio cuidaria da regularidade das instalações, dos cuidados com a alimentação e contenção dos dementadores; o próximo passo seria a entrevista com os presos, a fim de descobrir seus níveis de periculosidade, bem como o estado de saúde em que se encontravam. Por último, tendo tornado a prisão o mais agradável possível, os profissionais afastados seriam submetidos a um tratamento bastante minucioso, para então serem realocados em seus cargos.

Seria, sem dúvida, uma tarefa bastante árdua e demorada.

A pena encantada parara de escrever enquanto Hermione refletia sobre seus desafios futuros, a ponta fina e molhada de tinta batia repetidas vezes no pergaminho, fazendo pequenos furos úmidos e borrados.

Finite encantatem — com um floreio de varinha a pena parou no ar e graciosamente caiu em cima das anotações melindrosamente organizadas sob a escrivaninha.

Hermione apanhou o pergaminho manchado e suspirou profundamente. Os dedos alisaram as quatro primeiras palavras que haviam sido escritas para o artigo que deveria entregar na próxima semana.

"Chá de folhas de mandrágoras"

Seria um artigo e tanto, se conseguisse terminá-lo. Estivera pesquisando há meses sobre as propriedades das folhas de mandrágora, raríssimas e muito poderosas. Tinham o poder de regenerar ossos calcificados e recompor partes necrosadas do corpo humano, problemas considerados insolúveis e irreparáveis para a maioria dos Medibruxos. A literatura trouxa ajudara muito nas pesquisas, pois o mundo bruxo pouco se importava com as questões não resolvidas pela magia. Para alguns medibruxos — mesmo os mais experientes — o que a magia não conseguia curar, irremediado estava. Hermione, porém, não filiava-se a este pensamento; acreditava que se houvesse métodos alternativos, oriundos de outras fontes de conhecimento, estes deveriam ser utilizados pelo bem da vida.

E foi por esta razão que aceitou iniciar seus estudos no Instituto Dilys Derwent quando a guerra acabou. O lugar, mantido pelo Hospital St. Mungus, era mundialmente reconhecido pelos tratamentos inovadores e pelos renomados medibruxos e curandeiros que haviam estudado ali. Hermione sempre tivera grande habilidade com feitiços e contra-feitiços, e seus N.O.M's em Poções, Herbologia, Transfiguração e DCAT haviam sido os melhores, conforme lhe explicara incansavelmente o Dr. Ralph Stradivarius, o mesmo homem que, assombrado com o desempenho da jovem, nomeou-a medibruxa antes mesmo de passados os cinco anos necessários à formatura.

Depois de quatro anos e meio intercalando sua rotina profissional entre St. Mungus e Profeta Diário, Hermione sabia que abraçar outro projeto seria o equivalente a mais uma oportunidade de auxiliar a comunidade bruxa na construção de uma sociedade mais evoluída. Quando seu chefe, Agosis Pertindum, lhe propôs o projeto de inclusão, não havia um motivo sólido que a fizesse aceitar, além da morte de Ronald Weasley e a possível suspeita, extremamente improvável, de um crime . Por isso, no início, a perspectiva de na última etapa do projeto ter de entrar em Azkaban a perturbava em demasia. Mesmo Harry, que era um auror experiente e antes de ser auror tivera muito contato com dementadores, não gostava daquele lugar e o evitava ao máximo.

Todavia, há duas semanas conversara com Agosis Pertindum e decidira, impulsivamente, começar por Azkaban e, desde então, já não se lembrava mais do significado da palavra "Autocontrole". Não conseguia impedir as lembranças e os fantasmas do passado, tinha dificuldades em pregar os olhos quando chegava a hora de dormir. Suas olheiras denunciavam o início da insanidade que a falta de sono estava lhe causando. A sensação de pânico, velha conhecida, visitava-a com uma frequência incômoda.

Atirou então o vigésimo quarto pergaminho, decidida a continuar a matéria mais tarde, se conseguisse. Havia dado sua palavra para Agosis Pertindum, numa decisão bastante imponderada, é claro, mas que ela sabia, seria um desafio para sua carreira, e Hermione Granger nunca fugia de desafios.

— x—

O som do mar podia ser ouvido de dentro da cela. A espuma se desfazendo quando se chocava com as pedras pontiagudas da ilha. Draco estava caminhando por entre os corredores da prisão, com sua máscara de comensal, a marca negra ardendo como se estivesse sendo chamado para uma reunião de emergência. As paredes sangravam e gemiam insultos; as mãos de Draco suavam e suas têmporas pulsavam num ritmo descompassado. Não chegava a lugar nenhum, embora caminhasse apressado. Começou a correr e seus pés o levaram até uma sala redonda com uma única mesa posicionada ao centro. Ele estava lá, Voldemort, sentado, comendo e bebendo com uma expressão de prazer. O suposto banquete era composto de pedaços de carne humana, e dentro de duas jarras de vidro estavam as cabeças de Lucius e Narcissa Malfoy. Uma risada fria e cruel cortou o silêncio. O som da mastigação chegou nitidamente aos ouvidos de Draco; era como se as cartilagens sendo esmiuçadas pelos dentes do falecido Lorde penetrassem tão fundo que nem mesmo cobrindo as orelhas o rapaz conseguia abafar o som.

Todas as noites o mesmo pesadelo assombrava Draco Malfoy, que, tão logo despertava, já se dirigia à pequena pia da cela para despejar o pouco conteúdo de seu estômago. O mar estava mais calmo, pôde notar pelo som fraco das ondas. Era ainda madrugada, e ele sabia que não dormiria mais, estava acostumado com a insônia, fiel escudeira de muitos anos — costumava fazer par com o desejo de morrer.

Na escuridão da cela não havia muito o que fazer, mas, com um pouco de sorte, conseguiria acender uma chama de emergência e assim leria o exemplar do O Profeta Diário da Semana retrasada ,uma cortesia de Anthony Feggis.

As chamas de emergência serviriam para a leitura. Elas eram pontos de luz azulados dentro de garrafas de hidromel que, ao toque humano, soavam um alarme por toda a prisão. Só poderiam ser acesas uma vez por mês, e apenas nos casos em que o preso estivesse morrendo — de inanição ou qualquer outra causa que tivesse a negligência como fator desencadeador.

Draco não se importava com as eventuais emergências. Em Azkaban morrer era o melhor que poderia acontecer a alguém, e ele não ficaria nem um pouco decepcionado se não pudesse avisar de seu falecimento com antecedência, afinal, não era como se tivesse uma família lhe esperando lá fora, pronta para chorar por sua vida desperdiçada.

Com a chama acesa e tomando muito cuidado para não tocar nela, afinal de contas não queria acordar a prisão inteira e passar algumas semanas no confinamento, Draco apanhou o jornal e sentou-se no chão.

Sentia saudade da época em que mandava os elfos domésticos jogarem fora o seu exemplar logo após a leitura da seção de esporte, e ao mesmo tempo enxergava a si mesmo como um completo fracassado, ali, naquele lugar, tendo contato com o mundo exterior através de jornais velhos.

A primeira notícia era sobre o Gringottes e a prometida reforma do local que mesmo depois de tantos anos não havia sido reconstruído de maneira eficiente. A fuga do dragão causara um estrago gigantesco. Um dos funcionários do banco alegou na entrevista que o atraso da reforma era puramente político. A verdade era que o Ministério estava cansado dos duendes com sua ganância e habilidade para o engodo. Pouco a pouco seriam todos estirpados da comunidade bruxa, essa era a realidade que o jornal tentava mascarar com palavras difíceis e termos que a maioria das pessoas não compreenderiam.

Draco não pôde evitar um sorriso. Os bons bruxos, no final das contas, continuavam o trabalho de Voldemort, eliminando aqueles considerados inadequados. E ele teve mais certeza ainda de sua constatação quando na página seguinte notou que a "lei de inclusão dos elfos doméstcos no testamento das famílias bruxas e outros benefícios" não havia sido aprovada.

Então parou por um instante. Seus olhos se detiveram na seção "Bruxos saudáveis alcançam a longevidade – escrita por Dra. Hermione Granger". Uma vontade incontrolável de atirar o jornal no fogo se apossou de Draco; um desejo de rasgar o exemplar em milhares de pedaços começou a borbulhar e a saliva ácida e fluída desceu rasgando pela sua garganta. Não ouvia falar dela desde o dia de seu julgamento, e estava muito feliz sem se lembrar de sua existência. Ela tinha conseguido, afinal. Era destaque no mundo mágico, mesmo sendo alguém que não merecia sequer ter recebido uma educação bruxa. Alcançara o que ele não havia alcançado — ou o que ele deixara se perder.

"Maldita!" Pensou com ferocidade.

Na seção "Sociedade bruxa" ela também aparecia, segurando uma longa taça de alguma bebida desconhecida; com os cabelos presos num coque baixo e uma maquiagem bastante ousada, piscava lentamente e sorria sem exibir os dentes. Não se parecia nada com a Hermione Granger dos tempos de Hogwarts, e sim uma mulher de sucesso que antes dos trinta havia conquistado tudo o que desejara, embora houvesse uma máscara quase indetectável de tristeza cobrindo os olhos castanhos muito bem delineados.

Sem pensar muito, Draco atirou o papel para longe, amaldiçoando Hermione Granger, Harry Potter e até o defunto Weasley, por tudo aquilo que ele havia perdido e eles haviam conquistado, uma vez que mesmo o pobretão ruivo havia sido condecorado e recebido todas as honras póstumas imagináveis. Ergueu-se num salto e deitou-se em sua cama, contemplando fixa e continuamente o teto de sua cela até que seus olhos ardessem.

— Doutora Hermione Granger — A voz saiu arranhada e desdenhosa. Algo em seu íntimo lhe incitava a repetir o nome daquela que ele tratara como sangue ruim por longos anos, e que novamente estava na sua frente. — Doutora, desgraçada, imunda, indigna, Hermione Granger.

A saliva, desta vez, desceu grossa e quente, quase fechando-lhe a traqueia. O abafado da cela também contribuía para a sensação crescente de sufoco. Draco apertou os lençois da cama com força, até sentir a ponta das unhas atravessando a fina camada do tecido e furando a carne da sua palma.

Sentiu raiva das vitórias de Hermione; asco por vê-la vencendo. Contudo, o que mais encheu Draco de ódio foi imaginar que naquele exato momento ela dormia tranquilamente, enquanto ele se consumia em pesadelos, insônia, e inveja.

x—

O relógio marcava 2:45 da madrugada e o colchão rangia à medida que o corpo leve de Hermione rodopiava por entre os lençois.

Ela sabia que seria mais uma madrugada de olhos abertos e pensamentos impertinentes. Não tomaria nenhuma poção desta vez, estava cansada da dependência e do quanto se sentia apática e sem inspiração quando se utilizava deste método para conseguir dormir.

Após a terceira noite insone naquela semana, Hermione não poderia afirmar que acordara disposta. No banheiro analisou sua aparência e com alguns feitiços removeu as olheiras escuras que nunca abandonavam sua expressão cansada e doentia. Nunca fora fã de maquiagens e derivados quando era mais nova, mas o ritmo acelerado da vida adulta e as muitas noites mal dormidas tornaram necessário o uso de inúmeros produtos para camuflar o constante aspecto de estafa e morbidez que o rosto de Hermione possuía quando ao natural.

As escadas em caracol que levavam ao andar de baixo da casa estavam sedosas e enceradas, Hermione sentiu os dedos deslizarem na madeira lisa e escorregadia e precisou buscar apoio no corrimão. Conforme pisava nos degraus sua mente viajava para todos os lugares possíveis, inclusive na visita de Harry e Gina. Por muitos anos evitara encontrar o casal, tentara fugir das possíveis notícias e comentários que pudessem vir acompanhadas de sua ex-futura cunhada e seu melhor amigo. Pois este era o problema de manter vínculos com a família do namorado falecido: para eles a namorada representaria eternamente o vínculo que os unia às lembranças do morto.

Desde o dia em que fora interpelada por seu chefe, quando estava fazendo compras para a visita dos amigos que não ocorreu, estivera refletindo sobre os riscos à sua saúde mental que uma visita dos amigos poderiam lhe expor; precisava ponderar se seria seguro vê-los novamente.

Tal ponderação, entretanto, não aconteceria, pois a manhã mal havia começado e trouxe uma figura ruiva bastante agitada, balançando o corpo para frente e para trás no seu portão.

Gina estava sozinha. Não trazia o costumeiro sorriso compreensivo e afável de sempre, mas rugas de preocupação na testa sardenta, e olhos vermelhos demais para alguém que tivesse dormido uma noite tranquila.

— Gina! Quanto tempo... Como vai? — Hermione antecipou-se da janela da cozinha, enquanto procurava a chave da porta em algum dos bolsos de seu casaco — Espere um minuto, estou procurando as chaves.

Gina não parecia apressada, mas cansada, provavelmente aparatara até ali, o que não era uma viagem muito agradável, dada a distância entre sua casa nos arredores de Londres e Hawkshead.

Hermione apanhou a chave e abriu a porta, caminhando até o pequeno portão de madeira onde, do lado de fora, estava a amiga, segurando uma mochila azul escura que Hermione conhecia muito bem.

— Desculpe vir assim, sem avisar, Mione, mas preciso de um favor, e sei que você é a única que pode me ajudar. — Gina tremia, apesar de disfarçar muito bem o seu nervosismo. Hermione aproximou-se e tocou o braço da amiga guiando-a para dentro de sua casa.

— Venha, Gin, vamos entrar e você me conta o que está acontecendo com mais calma. — Comentou, enquanto seu próprio corpo ameaçava desmoronar ali mesmo, na grama mal cuidada que ela um dia prometera plantar algumas magnólias.

Os olhos de Hermione, embora tentassem não demonstrar, não paravam de fitar a mochila que Gina trazia consigo. Pertencera a Rony, ele a utilizara para sua última viagem, a que fez com que ele nunca mais voltasse a ser o mesmo.

Nunca conseguiram encontrá-la. Rony havia dito, na época, que não se lembrava de ter levado bagagens, apenas uma bolsa pequena com alguns sicles, que ele perdera no acampamento dos centauros albaneses enquanto tentava fugir. Mas Hermione nunca acreditou na história, os olhos dele ficavam confusos quando ela voltava a tocar no assunto, o rapaz sempre mudava de posição na cama, alegando estar com muitas dores e lamentando que sua cabeça doía demais, bem como resmungava que não estava pronto para falar sobre a viagem, pois descobrira coisas que ninguém entenderia, tomara conhecimento de traições das quais tinha nojo.

— É a mochila do Ron. — Hermione não perguntou, afirmou, sabendo naquele momento que Gina não estava tão nervosa à toa. E, embora houvesse fugido pelo maior tempo que conseguiu, não havia como escapar agora. Por anos Hermione considerara a mochila uma invenção de sua cabeça, uma ilusão criada por si própria a fim de justificar a morte de seu namorado. Mas ela existia e estava ali, revelando que seu maior medo era descobrir a verdade.

A amiga assentiu à afirmação de Hermione e aceitou a primeira sugestão. Ambas seguiram em silêncio até o portão de entrada.

Hawkshead parecia mais escura e solitária do que o habitual. Os ventos do norte estavam mais fortes do que nunca. Hermione sabia que a proximidade do lago influenciava a intensidade e a temperatura da brisa, que estava genuinamente fria. Não sabia como Gina estava aguentando, vestindo apenas uma camisa de seda e uma saia evasê que balançava violentamente de acordo com os movimentos do vento.

A porta da cozinha foi aberta e ambas entraram na casa, que estava muito mais aconchegante do que o lado de fora, o feitiço de aquecimento funcionando perfeitamente era tudo o que elas precisavam para encarar aquela que, de acordo com as suspeitas de Hermione, seria uma conversa delicada.

— x—

Quinta- feira era o dia oficial de inspeção e exames de rotina. Draco estava acostumado, depois de seis anos tendo que enfrentar perguntas ensaiadas e verificações rápidas de seu estado de saúde, nunca faziam um exame apurado e minucioso das condições dos presos. Pelo pouco que ele sabia havia um homem que estava em vias de perder um olho por conta de uma contaminação que se espalhara pelas celas, portanto, as inspeções eram inúteis e meros cumprimentos de protocolo.

As contaminações não eram uma novidade. Por diversas vezes, Draco tivera a cabeça raspada para evitar uma infestação de piolhos; dormira no chão de pedra fria para que alguma doença contagiosa, transmitida por pulgões da Bavaria — cortesia de um dos presos — não fosse adquirida.

Negligência era uma palavra muito gentil quando em se tratando de Azkaban. O cheiro que as celas exalavam fazia com que somente os dementadores ficassem por ali sem um feitiço de vedação respiratória. Tal feitiço era frequentemente utilizado pelos médicos que raramente apareciam para examinar os presos. Os medibruxos, ou enfermeiros, quando aqueles não tinham tempo nem vontade de descer ao nível dos presos, vestiam uma espécie de máscara verde e arredondada que reproduzia o cheiro escolhido pelo usuário. Os aromas variavam, iam desde grama recém-cortada, sapos de chocolate, café fresco, ou, ainda, o perfume de alguém especial, por mais bizarro que isso pudesse ser.

Naquela quinta-feira, contudo, ninguém apareceu. Sua refeição foi empurrada pela portinhola destinada para esse fim. Não haviam trazido água, nem nada que fosse líquido o bastante para fazer descer aquela massa disforme cinza com um cheiro forte de gordura amanhecida e leite azedo que eles chamavam de café da manhã.

Desde muito cedo, Lucius Malfoy ensinara que o ser humano tinha a magnífica capacidade de acostumar-se com as situações em que eram inseridos. Segundo ele, cria-se no homem, ou na mulher, para fins de sobrevivência, uma adaptação ao ambiente e às condições impostas. Com Draco não fora diferente. Abocanhava todos os dias a comida da prisão de olhos fechados e respiração trancada; o alimento descia escorregadio e pegajoso pelo esôfago, e o sabor de banha permanecia na língua por várias horas. Ele sempre cuspia no chão para eliminar a saliva gordurosa, o que secava sua boca e gerava a necessidade de água. Então, aprendeu a mascar o tecido da calça, que era áspero, mas não a ponto de ressecar as mucosas. Era uma medida desesperada, porém, eficaz, pois a água somente chegava à sua cela uma vez por semana, salobra e turva, numa jarra de um litro.

O silêncio, contudo, o perturbava mais do que o fato de que sua dose diária de água ainda não tinha chegado. Alguma coisa nova estava acontecendo, e Draco desejou poder escutar os burburinhos do ambiente para saber exatamente o porquê de tanto mistério.

— x—

Ansiedade podia ser uma grande merda às vezes, e Hermione admitiria isso em voz alta, se não estivesse diante de uma Gina tão nervosa e parcialmente descontrolada, a julgar pelo olhar desconfiado e paranoico que dirigia a cada dez segundos para a porta todas as vezes que o vento fazia a madeira antiga ranger.

— Mione... — A jovem de cabelos ruivos e rosto arredondado, que estava sentada na ponta do sofá numa posição bastante desconfortável, começou a falar, deixando de observar a porta e, assim como a amiga, dirigindo seu olhar à mochila surrada de couro de dragão, tingida de azul com uma tinta já desgastada. — Encontrei essa...coisa... nas tralhas do Harry, quando estávamos orientando os duendes decoradores na reforma do Largo Grimmauld. E serei bem direta, pois confio em você. Eu não sei o que pensar, Mione! Afinal, ao que tudo indica, ele sabia da existência dela e, o que é pior, nunca nos contou.

Hermione analisava cuidadosamente cada mancha de sangue seco e desgastes do couro. A mochila estava pesada também, ela sentiu quando se atreveu a segurar a alça. Se sua mente não fosse tão treinada contra alucinações e distúrbios paranoides, poderia jurar que o perfume de Rony ainda estava agarrado no tecido do bolso externo. Era quase como tê-lo ali, tocando seu pescoço com as mãos grandes, calosas e quentes; tal qual uma viagem no tempo em que acordavam lado a lado, após uma noite de desejo e ternura na casa que ele alugara para quando eles se casassem, sentindo cheiro de café preparado magicamente.

— Como isso veio parar em suas mãos, Gina? — Questionou, abrindo os olhos, espantando o fantasma de Rony da sua alma. A pergunta era plausível, afinal de contas, Hermione acreditara durante seis anos que não existissem mais quaisquer recordações a respeito de seu falecido namorado, muito menos um objeto que ele afirmara com veemência não ter levado consigo na viagem.

A ex- cunhada permaneceu calada. Ela estava estranhamente taciturna, os grandes olhos castanhos cheios d'água, e uma expressão de quem ainda não havia sequer contado a pior parte.

— Eu tenho recebido cartas anônimas... — a voz de Gina Weasley falhou na última palavra. — Com informações sobre o paradeiro do assassino. A pessoa que escreveu sabia onde estava a mochila, e disse que Harry sempre soube também. A atitude mais sensata? É claro que seria eu ter conversado com o Harry sobre esse tal "anônimo", tentado resolver da melhor maneira. Droga, meu marido é um auror, certo?! Mas eu tinha que verificar, Mione... E foi horrível descobrir que a pessoa com quem eu me casei está, por algum motivo desconhecido, mentindo para mim.

— Espere um pouco... Gina? Você não acha mesmo que Harry seria capaz de esconder algo assim de propósito? É do Ron que estamos falando, lembra? O irmão que Harry não teve, o melhor amigo que ele perdeu... Alguém está fazendo uma brincadeira de extremo mau gosto! E se o Harry escondeu isso de você, de mim...Céus! Ele escondeu isso do Departamento dos Aurores, do Ministério da Magia e isso é obstrução da justiça. Ele deve ter um motivo legítimo, que provavelmente envolve a sua segurança, a minha, e sabe-se lá de quem mais.

Hermione levantou-se, cruzou o balcão que dividia a sala da cozinha e começou a remexer em algumas gavetas do armário. Gina virou-se para acompanhar os movimentos da amiga que apanhou uma pasta de papelão muito velha, colocou debaixo do braço e voltou para o lugar onde estava.

— Olhe estes papéis. Está vendo? São todas as informações sobre a morte dele, Gina. Olhe bem: "Causas naturais". Ele não foi morto, apenas contraiu alguma doença desconhecida. Há anos eu estudo sobre as possíveis causas da morte dele, e em todo este tempo não obtive respostas significativas!

Hermione afundou o rosto entre as mãos, uma mecha longa de seus cabelos volumosos escorregou para a palma, fazendo o choro se misturar às madeixas , causando uma confusão de ondas e lágrimas. Gina apoiou a mão nos ombros da amiga, tentando trazer com o toque um pouco de conforto e um pedido silencioso de desculpas por trazer Rony de volta à vida de Hermione.

— Mione... Você é minha única amiga, e eu só posso contar com você. Sei que Harry seria incapaz de me esconder uma coisa dessas, tenho ciência também de que não deveria recorrer justo a você. Mas não tenho mais ninguém. Depois que Fred morreu, e Ron, logo em seguida, a família não possui estruturas para assuntos fúnebres. Eu preciso do seu apoio, embora, se ele não for possível, eu entenderei...Não serei egoísta a ponto de negligenciar sua dor, minha amiga.

Olhar para Gina passou a ser um desafio depois da morte de Rony. Ela era ruiva. Ela sorria com liberdade e tinha aquela típica "simplicidade Wesleyana", que te faz imaginar como uma família tão desprovida de recursos pode ser, ao mesmo tempo, tão acolhedora e empática. Hermione sabia que tais traços nunca abandonariam Gina Weasley, mesmo depois de enfrentar o luto duas vezes em períodos tão curtos. Primeiro pela perda de Fred, depois, foi a vez de Ron.

Os olhos castanhos da amiga eram o único disfarce, a singular camuflagem; o ponto de fuga da aparência que parecia gritar "Ronald Weasley".

Contudo, Hermione não fugiria. Não era de seu feitio abandonar seus amigos, mesmo que toda essa lealdade pudesse lhe custar uma dose generosa de altruísmo e, em hipóteses mais extremas, seu tão estimado autocontrole, que na atual conjuntura já não estava mais tão preservado.

— Vamos abrir a mochila… Eu preciso saber o que tem aí dentro. — Insegura, Hermione apontou para a mochila num gesto pouco convincente e nem um pouco decisivo. Se precisava começar de alguma forma, que fosse rápido, mas isso não excluía o fato de que estava com medo.

Gina olhou para a mesa de centro onde estava, um pouco desconjuntada, a mochila de Rony. Hermione notou que a amiga estivera esperando para abrirem juntas, o que faria daquilo um espetáculo inédito e com quase nenhuma previsão de sucesso.

Não deixando que a própria insegurança a contivesse, Hermione adiantou-se e agachou-se em frente à mesa. Abriu o zíper de uma vez, e manteve a respiração suspensa, esperando que um anjo descesse do céu e lhe entregasse, numa caixinha de veludo, a coragem de tocar nas coisas de Ron.

— Só não sei se estou confortável com a ideia de violar a privacidade dele desta maneira. — Hermione falou, após uma longa pausa, em que contemplara a mochila por alguns breves e significativos minutos.

Gina tocou nas mãos da amiga, encorajando-a.

—Bem, é necessário. Você sabe o quanto esperamos por esse dia. — A amiga argumentou, embora soubesse que convencer Hermione Granger a fazer algo que ela considerasse errado seria uma tarefa que beirava a impossibilidade.

— Abrirei, mas quero que você olhe primeiro. — Hermione por fim decidiu.

E foi tão rápido que Gina questionou a si mesma se aquela era sua amiga, pois, atipicamente, Hermione Granger não havia levado muito tempo para decidir sobre uma atitude fora das regras.

"Os tempos mudaram, de fato." Gina pensou, sorrindo a despeito da situação delicada que ali se desenrolava.

— Não será uma tarefa agradável, mas foi por isso que vim até aqui, Mione. Para fazermos isso juntas. Você abre e eu leio primeiro.

Hermione sorriu para a amiga, mas logo sua expressão se converteu em plena dúvida. Um ar investigador e perspicaz davam um brilho já conhecido nos olhos castanhos da jovem medibruxa.

— Eu só gostaria de saber, antes de mais nada, o porquê de não ser o Harry a pessoa escolhida para esse momento. Ele guardava tantos vínculos com Rony quanto eu, exceto por alguns detalhes.

Gina estava começando a levantar uma teoria que faria muito sentido, em se tratando de Hermione. Tinha quase certeza de que a amiga soltara aquela pergunta para postergar um pouco mais o momento em que a verdade seria posta diante de seus olhos.

— Se não se importar, podemos falar sobre isso depois? — Gina começ leve tom de amargura na voz cansada.— Harry está estranho, Mione. Depois que começou a receber serviço extra do Ministério não tem quase dormido em casa, anda na companhia de aurores que eu não conheço. As vezes sinto que ele está me escondendo algo.

Gina não costumava ser uma mulher fraca, muito pelo contrário, sua marca registrada era a impulsividade e a capacidade de tomar decisões com firmeza. Naquele momento, porém, Hermione via apenas uma sombra da força e personalidade de Gina Weasley.

— Sim, Gin, podemos falar sobre isso mais tarde. — Foi a resposta de Hermione ao perceber a gravidade da situação. — Por agora podemos nos ocupar com a mochila, afinal, ela não se abrirá sozinha. Certo?

O tom de voz era falsamente convidativo e aventureiro. As cordas vocais haviam, muito provavelmente, encontrado alguns obstáculos antes de reverberarem o que Hermione pretendia falar. Obstáculos como o medo de descobrir que a morte de Rony ainda não tinha sido resolvida. Até o momento em que vira sua amiga com a mochila nos braços, a hipótese de morte por assassinato era apenas um subterfúgio para consolar a si própria quando sentia que fora incompetente na pesquisa para a cura da doença que levou seu namorado à morte. Contudo, com a perspectiva de um possível homicídio se descortinando sob seus olhos, a situação tomava outras proporções. Era uma nova ferida em cima de outra que ainda nem cicatrizara.

Com a abertura da mochila alguns papéis e objetos se revelaram. Gina, que estava encarregada de lê-los em primeira mão, começou a tarefa.

— Achei uma carta bastante estranha, escrita por ele. Tem também uns pergaminhos e pequenos bilhetes presos com uma fita asediva. É assim que se fala? — Gina chamou a atenção de Hermione, enquanto segurava a carta aberta numa das mãos e sustentava no colo duas pilhas de outros papéis.

— Chama-se "fita adesiva". O que dizem os papéis?

— Hermione questionou

— Não consigo compreender. São palavras sem sentido; talvez seja um anagrama. Nós brincávamos de criar anagramas quando éramos crianças — Hermione, com um gesto, pediu que Gina lhe entregasse o calhamaço de pergaminhos e papéis estranhos, e a amiga o fez. Guardou a carta com a mensagem indecifrável no bolso da calça e começou a vasculhar as demais.

— Aqui nós temos algumas fotos… E mais cartas. Algumas são minhas, outras escritas por ele e que, provavelmente, não foram enviadas a tempo. — Hermione evitou olhar as fotos. Ela estava em duas delas, que tinham sido tiradas no jardim da toca e no quarto do casal Weasley para enfeitar o álbum de casamento e estampar os convites de noivado.

Gina acomodou-se entre Hermione e a mochila, colocando a no colo para que conseguisse amparar a amiga, caso fosse necessário.

Ambas começaram a vasculhar os pequenos e médios bolsos, onde encontraram cartões de sapos de chocolate, embalagens vazias de feijõezinhos de todos os sabores.

— Rony sempre foi afeito às porcarias. — Hermione sorriu, melancólica. — Não comeria coisas saudáveis nem se o ameaçassem com serviços dos elfos domésticos e serviços eternos de desgnomização.

— Mione...

Gina estava incrivelmente séria. Suas sardas ficaram apertadas na região do nariz e testa. Aquilo não era bom sinal. O vinco entre as sobrancelhas e a expressão intrigada da amiga prenunciavam uma péssima notícia.

— Não faça essa cara. Gina... O que houve?

— Olhe. — Gina estendeu a mão. Uma terceira foto de Rony e Hermione com grossas marcas de sangue seco surgiu em meio aos papéis de bala e caixas usadas. O retrato era antigo e ambos sorriam. Fora tirada um dia antes de Rony sair em missão, num jantar de despedida na Toca. — Algumas cartas estão coladas às fotos.

— Sim, mas não é a letra dele. — Hermione constatou, enquanto lia . Sentia os pulmões travados e inchados. — São instruções para o preparo de alguma poção que eu desconheço. Na verdade, esses ingredientes são raros, geralmente utilizados por adeptos à magia negra.

— Você não acha que Rony preparou isso, acha? — O tom de dúvida é desconfiança era latente na voz de Gina.

Ambas trocaram olhares rapidamente.

— Aqui está marcado como "concluído", Gina. Talvez ele não soubesse o que estava fazendo. O que me intriga mais do que o preparo da poção em si é que Rony nunca disse nada sobre estar acompanhado. Veja bem, como eu disse, esta letra não é dele!

Hermione buscou em suas memórias qualquer detalhe que pudesse ter lhe escapado sobre a viagem de Rony. Pelo que se lembrava a ordem fora bastante clara, "sigilo absoluto". Apenas ela, Rony e Harry tinham conhecimento de partes da empreitada, e ainda assim, Dumbledore optara por fragmentar as tarefas, para que, caso um deles fosse pego, a missão não estivesse completamente comprometida.

— Harry sabia. — Gina assumiu uma expressão sombria e fria. Não havia questionamentos, apenas uma constatação.

Hermione levantou a cabeça tão rápido que sentiu um estalo no pescoço, acompanhado de uma dor fina e persistente. Gina estava lhe dando uma informação nova, que poderia mudar algumas coisas.

— Sabe, Mione... Na época eu não quis lhe contar, mas Harry sabia de algo que nós desconhecíamos. Uma coisa que, por certo, ia além das missões e tarefas que Dumbledore desginara. Quando Rony morreu ele ficou insano, como você bem lembra, e não descansou até descobrir um possível culpado.

— Sim, mas acredito que isso foi porque Rony assumiu um encargo que Dumbledore havia, a princípio, confiado a ele. Talvez o sentimento de culpa tenha impulsionado e alimentado essa obsessão. Harry sempre gostou de terceirizar as responsabilidades pelos seus fracassos, não antes, é claro, de se afundar em auto comiseração. Embora ele seja meu amigo, devo admitir que isso me irrita um bocado e...

— Hermione, você não entende? — Gina interrompeu a amiga. Suas orelhas adquiriram uma coloração tão vermelha que fazia os cabelos parecerem desbotados — Harry ficou insano quando eu disse que vinha recebendo mensagens sobre um possível culpado. Proibiu-me de ir atrás disso. E quando digo "Insano", acredite, eu não estou sendo exagerada. Ele ficou possesso, vetou o acesso das corujas em nossa casa e esteve de olho o tempo todo; não me deu um minuto sequer de privacidade...

— Espere um pouco, Gina, você não está insinuando que Harry tenha alguma coisa a ver com a morte do Ron, está? Por Merlin! Não me faça pensar que você também está louca! — Hermione jogou os braços para o alto, os olhos em choque, a expressão de quem havia ouvido que um vira tempo era uma bijouteria trouxa.

— Sinceramente, Mione? Eu já não sei mais em quê ou quem acreditar. No momento eu só quero descobrir a verdade. A aparição repentina desta coisa — as mãos de Gina tremiam conforme apontavam repetidas vezes para a mochila azulada, o braço fino chacoalhava em conjunto. — Só quero a droga da verdade ... Não se preocupe, eu sei que Harry não tem nada a ver com isso. Ele é meu marido, merda!

— Talvez ele estivesse querendo proteger as pessoas que ama. Harry sofreu muitas perdas e não lida muito bem com esses assuntos, você sabe... Ele consegue ser um asno quando se trata de tentar proteger os outros, achando que está tomando a decisão certa, e agindo sozinho, mas acredito que suas intenções sejam as melhores. — Hermione abraçou a amiga, tão forte como nunca havia feito antes. Sentia falta de Gina, dos velhos tempos, do cuidado da amiga; sentia saudades de estar na companhia de alguém que não fosse sua coruja e seus pesadelos.

— x—

Filetes dourados saíam da varinha do homem moreno, cabelos arrepiados e vestes desalinhas. Estava exausto. A mão direita tremia e os dedos não encontravam o encaixe perfeito, nem a execução do feitiço se mostrava eficaz.

O espaço era apertado. Uma sala circular cheia de armários empilhados. As paredes eram negras, mas conforme o local girava, um brilho arroxeado se tornava perceptível.

— Está doendo? — uma voz masculina saiu de dentro do único armário que estava perfeitamente alinhado, na frente dos demais.

— Um pouco. — O tom de súplica estava implícito, mas o outro homem não parecia se importar.

— Ótimo! Espero que isso controle aquela mulher. Da próxima vez que ela tentar atrapalhar tudo, não serei tão piedoso, e não aceitarei seu sacrifício como estou fazendo hoje. — crueldade começava a escorregar em cada palavra. O homem não estava fazendo ameaças vazias.

— E quanto... — os gemidos de dor se intensificaram — e quanto à Azkaban, senhor?

— Eu ainda preciso descobrir o que fazer com aquele lugar. Um grande amigo meu está, digamos, trabalhando lá. Ele não sabe, mas será de grande utilidade para o que desejo.

— x—

Poderia chover, como nos clichês trouxas. A chuva sempre representava a chegada de coisas ruins. Hermione sempre estranhou o fato de que no enterro de Rony tivesse feito o mais belo dia de sol. Talvez as sardas ficassem mais bonitas sob a luz do astro brilhante, e os cabelos mais luminosos.

Gina havia partido com a promessa de que em breve voltaria, em melhores condições, junto com Harry, que ela tinha certeza, não estaria ocupado.

Hermione não quisera revelar nada sobre o projeto em Azkaban, sobre as possibilidades que se descortinariam, caso a mochila fosse a prova cabal de que Rony havia sido assassinado e não tido uma morte por causas naturais. Ainda era cedo e pretendia resolver sozinha aquela questão.

A decisão de fazer da prisão o primeiro lugar do projeto ainda queimava em seu coração. Sabia que ali seria o lugar perfeito para descobrir qualquer coisa. Sendo parte de um projeto do Ministério teria acesso aos presos, aos funcionários, às fichas, documentos e ao que mais desejasse.

O fogo da lareira crepitou três vezes, indicando uma chamada do hospital, e impediu que Hermione continuasse consumindo a si mesma com os próprios pensamentos e teorias acerca da morte de Rony e de seu próximo trabalho. Provavelmente Neville estivesse com problemas. Ele costumava fazer alguns trabalhos esporádicos no St. Mungus, enquanto não conseguia uma vaga efetiva como professor de Hogwarts. O jovem herbologista amadurecera bastante, conhecia muito sobre plantas medicinais e estava fazendo um excelente avanço junto de Hermione, principalmente na matéria que publicaria no Profeta Diário.

Ela estava certa, era Neville, mas seu rosto, mesmo embaçado pelo vulto das chamas, indicava que o problema era muito maior do que uma emergência na ala dos acidentes herbáceos, ou de danos permanentes — que ele também visitava com frequência.

— H-Hermione… Você precisa vir até o hospital. Temos uma emergência, que, bem...pode te interessar. Não que a desgraça alheia seja seu prazer, mas…bem... — Neville continuou tropeçando nas palavras e tentando consertar, até desistir de passar uma mensagem mais elaborada. — Olha, apenas venha. É importante, eu garanto.

— Não pode adiantar alguma informação, Neville? — Hermione detestava não estar por dentro dos quadros clínicos ou emergências das quais participaria. Fazia parte de uma certa fixação pelo controle sobre tudo.

— Gui e Fleur chegaram de viagem hoje, como você já deve saber — Na verdade, Hermione não sabia. Evitava ao máximo ter notícia dos Weasleys. Era o melhor a ser feito, em prol de sua saúde emocional — Eles apresentaram os sintomas... Ao que tudo indica os vasos sanguíneos estão se perdendo. Lembra muito a doença trouxa que você havia indicado como a possível causa mortis do Rony, Granulomatose de Wegener. Mas não podemos afirmar nada com certeza. Eles receberão transfusões de sangue, assim como a pequena Vic, que foi encaminhada para a antiga Mansão Malfoy.

Hermione entrara num estado de choque no qual era impossível esboçar qualquer reação. Sua pele ficara duas vezes mais pálida e uma crescente preocupação se instalou em seu peito. Se já estavam apresentando os sintomas, poderia ser tarde demais, assim como fora com Rony.

— Neville, eu chego aí em um minuto. — Foram as únicas palavras que saíram dos lábios trêmulos.

A lareira apagou. Hermione pegou a varinha que estava no sofá, caminhou apressada até a porta, e agradeceu silenciosamente por morar numa cidade quase deserta, onde poderia aparatar sem medo de ser vista por trouxas.

Estava já visualizando o beco que costumava aparatar e a loja de roupas onde o St. Mungus se camuflava, quando uma mão segurou seu pulso, fazendo-a se virar, assustada. Não era uma hora muito apropriada para ser assaltada, ainda mais ali, em Hawkshead — não que houvesse um momento bom para isso.

A figura de seu melhor amigo, e quase irmão, foi suficiente para fazer seu coração desacelerar, embora não por muito tempo. O verde dos olhos de Harry pareciam ter desaparecido, as pupilas estavam dilatadas e ele tremia como se Voldemort estivesse em seu encalço.

— Harry. Céus! Você está horrível! O que houv-

Foram as últimas palavras de Hermione; o último som emitido por sua voz assustada antes de sentir uma pancada forte em sua cabeça. O vulto de Harry jogando-lhe a capa da invisibilidade, provavelmente foi a derradeira lembrança.

It don't even matter if

E isso nem importa mesmo

I'm an illusionist

se eu for um ilusionista

...