VIII- Dragão

Até que um dia eu tive o suficiente

Desse exercício de acreditar

Eu me inclinei e deixei doer

E deixei meu corpo sentir a sujeira

(Pluto - Sleeping at last)


Se em todas as primaveras poderia vê-la, seu desejo era que florescesse o ano todo.

Janice estava ocupada com alguma coisa misteriosa nos últimos meses. Ela sonhava em sair da Inglaterra quando crescesse, e sempre falava com um brilho nos olhos sobre seus planos de viajar para a França, e a ideia de partir para lá parecia tão real que, por diversas vezes, Draco flagrara-se pensando que ele também poderia viver na cidade das luzes, em algum bairro bruxo e nobre.

Sentado na mesma cadeira de sempre, esperando seus pais chegarem de mais um almoço, Draco sabia que as horas não passariam mais rápido do que o tempo levado pela velha coruja de seu avô para entregar as cartas que nunca diziam nada de importante.

Olhou para o imenso jardim pela segunda vez, suspirou, e rumou para o lado de fora. Já havia aprendido a ameaçar Dobby, então o elfo não se atreveria a fazer objeções e lhe daria as chaves do portão, desde, é claro, que o garoto voltasse antes de seus pais, o que ele sempre fazia não por obediência ou respeito ao criado, mas por medo do castigo que poderia receber.

Marchando pela estrada de terra, sob o aroma sagrado das magnólias que ele tanto adorava, continuou pensando em Janice, e em qual seria a próxima aventura que começariam. Já se conheciam há dois anos, e vez ou outra, fora da estação, se encontravam para pregar peças em alguns moradores da Vila comandada por Lucius Malfoy, caçavam gnomos para a avó de Janice fazer suas poções, e imaginavam, fingiam que viviam em um universo onde podiam ser quem escolhessem.

Como você demorou hoje! — A voz alegre e estridente de Janice o pegou de surpresa. A garota havia saído do meio de uma camada espessa de arbustos, e Draco deu um grito.

Garota idiota! Como se atreve a fazer esse tipo de brincadeira? — ele vociferou— Isso pode matar uma pessoa! E eu sou muito importante na minha família para morrer tão cedo.

Janice revirou os olhos. Estava mais do que acostumada com o jeito rabugento dele, então continuou caminhando sem se preocupar com os resmungos de Draco, que a seguia, como sempre.

Aonde vamos hoje? — ele perguntou ríspido, mas curioso.

Hoje vou te apresentar minha casa. Tenho um presente para você. — Janice respondeu animada.

x—

Todas as vezes que ela visitava aquele local, não deixava de admirar a grandiosidade e imponência de cada detalhe. O imenso lustre de cristal, pendurado no centro do hall de entrada, dava um ar aristocrático e senhorial à Mansão Malfoy. As cores escuras, que ainda persistiam em alguns cômodos, davam o tom lúgubre, tétrico e sombrio, digno da família que se perdera nas promessas perversas de um Lorde que agora jazia morto, junto com suas convicções.

Algumas estátuas de mulheres francesas cobertas por uma espécie de véu, e o cheiro das poções, proveniente da pequena saleta que ficava num apertado apêndice no canto mais escondido da sala, dava o ar de mudança que o antigo lar dos Malfoy precisava. Agora o lugar era um banco de sangue, que recebia doadores de todas as espécies. Visto de fora o local ainda se assemelhava à residência de Lucius, Narcissa e o único filho do casal. Mas, no interior, uma estrutura hospitalar fora montada a fim de receber bruxos debilitados pela perda abruta de sangue.

Hermione ainda estava suja, e seu braço ardendo pela recente picada de agulha. O vestido azul claro maculado por borrões vermelhos, cheirando a ferro, precisaria de um bom feitiço higienizador hospitalar. Ela faria isso o mais rápido possível, não antes, claro, de colher algumas amostras para uma pesquisa detalhada ali mesmo no banco de sangue.

A partir dos sintomas de Draco, idênticos aos apresentados por Rony, ela poderia não mais começar suas investigações pessoais do zero. Malfoy não saíra da prisão, o que tornava o leque de hipóteses ainda menor. Hermione sentiu que, finalmente, descobriria se a morte de seu namorado fora ocasionada por alguma doença contraída na viagem, ou se ele havia sido assassinado.

A segunda opção lhe parecia muito mais provável, e tudo indicava que ela estava muito próxima do culpado. A única coisa que ainda a deixava intrigada era o método utilizado para a consecução dos atos criminosos, mas se contasse com o auxílio as pessoas certas, esse seria o menor dos seus problemas.

Hermione estava sentada na sala de espera. Um hall aconchegante, com duas mesas de centro e elfos trabalhando a todo o momento na reposição dos biscoitos amanteigados que ficavam à disposição dos visitantes.

Em seu colo repousava um bloco de anotações que ganhara de sua mãe aos dez anos. Como boa aficionada por organização e planejamento que era, sua mãe lhe fizera muitas recomendações a respeito de como e quando utilizar o bloco, vez que, nas palavras dela, não poderia ser um amontoado de papéis recheado de informações avulsas que se perderiam no tempo. "Blocos de notas servem para informações passageiras, após a utilização, as folhas devem ser descartadas." Foi o que Jeanine Granger lhe disse na ocasião, ao som do motor da caneta de alta rotação que trabalhava freneticamente na remoção de duas cáries do pequeno e assustado, David.

Mas ali ela desobedecera a primeira regra de sua vida. O bloco ficara guardado, com todas as folhas preenchidas e informações avulsas, como sua mãe temia que acontecesse.

Tudo Hermione havia anotado ali, pois, apesar de ser uma bruxa, não abria mão de suas raízes trouxas. Nomes de ingredientes, livros, datas de aniversários, datas de exames e coisas rápidas que precisavam ser escritas com urgência, como as matérias que Rony precisava estudar com mais afinco, e as missões do trio, nas quais ela sempre figurava como mentora intelectual todo santo ano.

Era o preço a ser pago pela amizade de Harry Potter.

Draco quase sempre era alvo das investigações de Harry, e Hermione, por ser a melhor e mais discreta observadora entre eles, acabava por ficar com a odiosa tarefa de sondá-lo em e suas atividades suspeitas.

Desde a primeira investigação ela notara que ele religiosamente se retirava nos horários das refeições, exceto nos dias em que era servida a deliciosa torta de abóbora com carne de javali. Malfoy sempre repetia quatro ou cinco vezes. Hermione observara esse comportamento pela primeira vez durante o segundo ano, quando Harry pedira que ela e Rony permanecessem atentos a cada movimento de Malfoy e suas possíveis idas a lugares que pudessem abrigar a entrada para a câmara secreta.

Ela passou, então, a monitorá-lo discretamente. Não conseguira concluir muita coisa, pois ele logo deixou de ser alvo das suspeitas e os esforços mudaram de direção. Sua função passou a ser única e exclusivamente de pesquisa.

Após ser petrificada pelo basilisco, e todos descobrirem que tudo havia sido obra de Voldemort — e Lucius, indiretamente— as investigações perderam um pouco de sentido.

Hermione, porém, sempre quis saber para onde Draco ia quando não estava comendo com os demais, embora nunca desse exagerada atenção à essa curiosidade

No sexto ano ele não saía mais das masmorras, sequer aparecia para comer nos dias em que a tal torta era servida. Ele era visto em algumas aulas, sempre irritadiço e desconfiado, cada vez mais magro e assustado. Às vezes, nos dias em que a torta era servida, Hermione via Crabbe e Goyle saindo da mesa aos tropeços, carregando dois ou três pedaços da refeição. Ambos pareciam lutar contra a própria vontade de devorar a comida que carregavam.

Ela escrevera tais informações em seu bloco de notas, sem saber ao certo qual seria a utilidade daquilo.

"Malfoy parece gostar muito da torta de abóbora com carne de Javali."

x—

Eu acordei do mesmo sonho:

Caindo para trás, caindo para trás

Até que isso me virou do avesso

Draco abriu os olhos com cautela e, buscando reconhecer o local, movimentou o globo ocular em todas as direções. Ele conhecia o ambiente, mas parecia estar encaixado em outra realidade.

Sua cabeça pesava demais para se mover, então ele tentou levantar a palma de uma das mãos, interrompendo o movimento quando observou uma tira curta e fina de alumínio — ou seria aço?—presa ao seu braço, não só por estar cravada em sua veia, mas pelo adesivo estranho muito bem colado em sua pele, levando a uma espécie de cano estreito, que terminava conectado em uma sacola quadrada e transparente, preenchida pelo o que ele presumiu ser sangue.

Não quis fazer movimentos bruscos, temendo soltar os fios que o prendiam e causar um ferimento grave. Seu cérebro, no entanto, insistia em alertar que ali era um lugar perigoso e que ele deveria sair, se possível correndo, antes que tentassem enfiar alguma coisa suspeita em seu corpo — se já não haviam feito isso.

Malfoy procurou em suas memórias o motivo de estar naquele quarto terrivelmente familiar, e lembrou-se de tudo, até o momento em que perdeu os sentidos, caindo no colo de Hermione Granger, indefeso e humilhado. Ali, porém, não era Azkaban; não cheirava a podridão como a prisão, não era frio ou escuro, pelo contrário, havia luz em excesso, a ponto de machucar os seus olhos cinzentos e turvos.

Alguns emplastros na perna também aliviavam parcialmente a dor persistente, que ele não sabia o motivo, mas retornara com força.

Havia um relógio no local e Draco sentiu uma satisfação intraduzível. Saber as horas nunca fora algo especial, mas, depois de seis anos, o caminhar repetitivo e irritante dos ponteiros parecia uma boa lembrança da vida normal, sendo, portanto, a melhor coisa que ele contemplaria naquele dia.

— Conheço este lugar. — Draco falou em voz alta, testando as próprias cordas vocais, que pareciam adormecidas.— As paredes.O..o teto.

O teto.

A abóbada gótica era inconfundível, e as estampas mágicas do símbolo da família Malfoy ainda estavam nítidas. As manchas em volta do brasão demonstravam as inúmeras, e infrutíferas, tentativas de remoção.

"Filhos da mãe."

Embora estivesse fervendo de ódio pela usurpação e tentativa de descaracterização de seu patrimônio, Draco não se preocupou tanto quanto o momento em que procurou a sua Constelação. Os fios prateados do feitiço que sua mãe fizera havia muitos anos, pendiam fracamente no ar. Não estava escuro, mas ter visto os restos de sua infância destruídos lhe encheu de rancor e tristeza. Sua casa não era mais seu lar.

x—

O garoto entrou na cabana com receio. Por fora parecia pequena e apertada, mas no interior era um pouco mais aconchegante. Do cômodo que ele imaginou ser a cozinha emanava um aroma agridoce e muito gostoso, que fez seu estômago roncar, o lembrando que ainda não havia comido. Havia uma mulher cantarolando enquanto cozinhava, e Draco, ao passar pela porta entreaberta, notou que a dona dá voz era encantadora.

Janice, meu amor, você está aí? — a mulher chamou, inclinando a cabeça para o vão da porta, e Draco prontamente se escondeu.

Estou, mamãe. Trouxe um amigo para conhecer nossa casa. — Janice respondeu a mãe.

Ele é daqui da vila?

Sim, mamãe. — a garota afabou um risinho com uma dass mãos, e com a outra puxou Draco pelo braço.

Draco olhou para o quarto e teve vontade de rir da ingenuidade da garota em chamar aquele muquifo de quarto. Não havia ventilação suficiente, o que dava ao ambiente um cheiro constante de madeira úmida. Provavelmente aquele quarto era dividido com mais alguém pois algumas roupas femininas estavam penduradas num armário descascado.

São as roupas da minha mãe. — Janice falou, percebendo que Draco não tirava os olhos do vestido ocre. — E essa é minha caixa de brinquedos. Aquele ali é o meu estoque de materiais para minhas experiências. Eu estou esperando minha carta para Hogwarts, então quero estar pronta… Sei que vai demorar um pouquinho, mas minha avó é muito organizada.

Eu vou para Durmstrang. — Draco interrompeu a garota. — Meu pai não suporta Hogwarts, nem o Diretor de lá.

E se não for? — Janice perguntou. Seus olhos fitaram os de Draco com curiosidade e um leve desapontamento. — Isso pode acontecer, sabia? Você ir para um lugar diferente.

Havia um pouco de cinza nas orbes brilhantes, assim como nos olhos dele.

Bem, se nada desse certo, o que eu acho difícil, eu iria para Hogwarts. — ele disse, tentando consolar Janice. — Nos daríamos bem na Sonserina.

A garota sorriu e estendeu a mão para um aperto cordial. Quando Draco recebeu o cumprimento, Janice o puxou para um abraço, que ele, desajeitado correspondeu com alguns tapinhas nas costas da garota.

Fico feliz por ter te conhecido, Draco. — a voz dela estava embargada, ele não sabia o porquê. — Você é meu melhor amigo...

O garoto não soube como reagir àquelas palavras, mas sentiu um calor em seu coração. Um sentimento engraçado, uma alegria que ele jamais experimentara antes em sua vida.

Sua idiota… — ele falou baixinho — É bom saber que você está sempre por aqui.

Então você tem um quarto só seu? — Janice deu um gritinho. Ela estava sentada em cima das próprias pernas e batendo palmas de alegria. — E como é?

Draco estranhou a reação da menina. Para ele ter um quarto era algo normal. Estranhas eram as crianças que não tinham um.

Sim, tenho um quarto — ele falou, fitando-a com os olhos semicerrados — e cheios de estrelas no teto. Elas só sairão de lá se a casa ficar vazia ou… como é mesmo a outra condição? Ah, sim, se a propriedade for passada por um Malfoy a uma pessoa estranha, que não seja da família. O que nunca vai acontecer, é claro.

Você me leva lá um dia? — Janice pediu.

Não sei… Meu pai não gosta muito de visitas, ainda mais se souber que você é daqui da vila. Sabe… ao que parece não posso brincar com crianças inferiores. — Draco falou, não muito consciente de suas palavras.

E o que são "crianças inferiores"?

Eu não sei… No livro de palavras do meu avô diz que são pessoas menores.

Janice se levantou da cama e puxou Draco pelo braço, forçando-o a se levantar também. Ela pareou seu ombro direito com o ombro esquerdo dele e olhou para cima, passando a palma da mão sobre o topo de sua cabeça e a de Draco.

Mas eu sou maior do que você. — ela falou, olhando confusa para o amigo.

Então eu acho que você pode visitar minha casa…— Draco respondeu incerto.

x—

Hermione analisava cada mudança no comportamento do paciente por um espelho falso. Deixá-lo sozinho era importante para que ele fizesse, por si só, o reconhecimento do local. Não queria estar por perto quando Malfoy descobrisse que estava recebendo uma transfusão de sangue no local onde passara toda a sua vida.

— AHHHHHHH!— Malfoy gritou, como nunca antes. Havia em seu olhos uma expressão sombria e machucada. Sua alma parecia rogar por ajuda. Os sentimentos externados se confundiam entre ódio, dor e saudade.

Essa era a leitura de Hermione, que se apressou em direção à porta sob o pretexto de controlá-lo de alguma forma.

— Podem deixar que eu resolvo isso. — Ela dirigiu-se aos dois guardas que estavam guardando a entrada do quarto. Sabia que se eles resolvessem conter Malfoy, não fariam da maneira correta.

— A senhorita tem certeza? — O mais alto deles perguntou. Seu nome era Ralph, ou Randy.

— Sim. As portas de acesso geral estão seladas, certo? — Ela perguntou.

— Sim, senhorita. Não há ninguém além de nós e o senhor Feggis aqui. — o guarda confirmou, não compreendendo muito bem a indagação da medibruxa.

—Então não temos com o que nos preocupar. Este preso, debilitado do jeito que está, não pode fazer mal algum.

Os guardas cederam passagem e Hermione abriu a porta. Suas mãos suavam e ela não imaginava o motivo.

Com a entrada abrupta da medibruxa, Draco refez sua expressão de desdém, embora perplexo por notar que não estava sozinho em sua antiga casa. Não conseguiu, porém, enxugar a lágrima infeliz e inoportuna que escorrera em sua têmpora, descendo para a orelha, e umedecera o travesseiro.

— O que diabos você está fazendo neste lugar? — seus lábios crisparam, e as palavras pareciam ter dificuldade em sair deles de tão contraídos que estavam.

— Como assim "o que estou fazendo aqui?" Você quase morreu na minha sala, e agora há pouco deu um grito capaz de acordar todos os mortos deste lugar. — Hermione falou, exasperada.

Sem encarar diretamente o paciente, seus olhos buscavam o laudo médico dele. Encontrou o bolo de pergaminhos em cima de um gaveteiro de mogno e passou a observá-lo atentamente.

— Sabe, eu já salvei sua pele algumas vezes, embora você não merecesse. — ela continuou falando — Salvei você ontem. No primeiro ano, deixei de delatá-lo duas vezes, uma no segundo ano e outra no sexto. Não sabe como me arrependo de nunca ter contado sobre seus sumiços na hora das refeições. Dumbledore poderia estar entre nós se eu tivesse contado…

Ele parecia não entender o que Hermione estava tentando dizer ou onde ela estava querendo chegar. Seu rosto endureceu, e uma sombra de dúvida não passou despercebida.

Ela girava distraidamente a varinha sobre os pergaminhos que indicavam seu estado de saúde, mas franziu o cenho num certo momento, deixando um suspiro de incredulidade escapar.

— Eu nunca pedi sua ajuda. Você costuma bancar a enfermeira quando alguém que você não gosta está morrendo na sua frente, Granger? — Draco questionou, fitando-a com incredulidade.

Hermione girou os olhos, devolveu a prancheta com as informações de Draco ao lugar anterior e continuou segurando a varinha. Draco olhou de relance para o seu próprio laudo médico e notou que havia vários "OK's" escritos em tinta azul cobalto, característica das letras produzidas pelas varinhas.

— Eu tive que aprender a salvar vidas, Malfoy, qualquer uma, até mesmo as mais repugnantes. Fiz um juramento no dia da minha formatura. — ela respondeu com enfado. — Coisas que você não compreende, eu suponho.

— Eu tive que aprender a tirar vidas... O mundo é contraditório? É eu também acho às vezes — ele retorquiu. Não havia remorso em suas palavras, mas um rastro de lembranças ruins, embora não necessariamente repudiadas por ele.

— E você não vai tentar me convencer de que nunca quis matar? Isso diminuiria sua pena, Malfoy. Não precisa me convencer de sua extrema maldade. — ela provocou.

— E eu nunca quis. — ele engoliu em seco, de repente sentindo um calor no curativo de sua perna. —Já matou alguém, Granger? Ver a morte pelos olhos de outra pessoa é a coisa mais perturbadora do mundo, perdendo apenas para os gritos de crianças chorando pelos pais assassinados.

Pelas constantes olhadelas de Malfoy para a própria perna, Hermione supôs que ela deveria estar ardendo, coçando e pinicando através da bandagem úmida e manchada pelo unguento cicatrizante de cor marrom e aroma mentolado. Eram reações comuns à pasta de lágrimas de seminiviso.

—Eu nunca matei ninguém, mas já vi a morte nos olhos de outras pessoas. Uns apareciam feridos demais, outros padeciam de tanta fome. Eu escolhi o lado que ganhou a guerra, Malfoy, mas isso não me tornou imune aos acontecimentos. — Hermione rebateu, sentindo que Malfoy a tratava como uma criança boba, inexperiente e iludida.

Ele sorriu, debochado, sabia que havia tocado em seu orgulho, e isso era mais gratificante do que receber duas refeições diárias em sua cela. Provocar Hermione Granger dava-lhe a certeza de que estava vivo, por mais enervante que fosse ouvir o tom pedante da voz dela e a arrogância enfiada em cada afirmação certeira e inconteste. Voltar ao passado era o que significava a presença de Granger. O único elo com a sua vida antiga.

—Não me arrependo de nada — ele falou de súbito, aproveitando que ela ainda estava irritada com sua última declaração —. Hoje eu teria feito algumas coisas diferentes, como matar Dumbledore, por exemplo. E tirar a vida das pessoas certas para que eu pudesse escapar com dignidade no final de tudo.

Hermione pareceu se interessar novamente no assunto. Disfarçadamente, fingindo uma dor nos joelhos, procurou a cadeira de plástico destinada às visitas, e sentou-se, sem fazer barulho.

—Então você poupou vidas? — Ela questionou, fingindo indiferença.

—Infelizmente sim.

— Muitas? — Não conseguiu esconder a curiosidade, quase adolescente, que conferiu um brilho peculiar em seus olhos castanhos e inquisitivos.

— O suficiente para que me causassem problemas demais. — ele respondeu sem se dar conta de que estava dialogando com ela com certa naturalidade.

Ela percebera.

— Você teve alguns atos heroicos, então. — Hermione afirmou. Qualquer um que a observasse poderia jurar que seu corpo se projetou alguns centímetros para frente. Tinha um ponto fraco pela redenção das pessoas.

—Elas morreram, de qualquer forma. — ele falou, soltando o ar pelo nariz e meneando a cabeça, como se estivesse reprovando as próprias ações.

—Mas você as deu a oportunidade de não morrer. Por que fez isso? — Já não havia mais, da parte dela, a tentativa de esconder a curiosidade latente.

—Para ter um álibi— ele respondeu, finalmente olhando-a nos olhos. Sorriu ao notar a proximidade dela e um discreto muxoxo ao ouvir a resposta dele.— Desapontada?

— Não. Faz parte de você ser assim.— Ela deu de ombros, voltando à postura inicial, distraindo-se com as manchas de sangue do vestido. Precisava trocar de roupa.

— E isso que acabou de dizer é uma análise mental? Ou um julgamento ressentido?

Provocação.

— Se fosse uma análise mental, você responderia tudo o que eu perguntasse?

Estratagema.

— Eu te responderia porque estou lhe devendo um favor, e porque você me prometeu algumas coisas caso eu cooperasse com "sabe-se lá o que".

A barba estava crescendo novamente. Os pelos contornavam o maxilar e davam uma aparência completamente discrepante daquela portada pelo jovem Malfoy nos tempos de Hogwarts. Quem imaginaria, afinal, que naquele rosto pálido e marmorizado haveria rastros do desleixo de uma barba mal feita. Havia um inegável charme naquela visão, Hermione admitiria, se não lhe custasse todo o orgulho e vergonha na cara.

— Até que enfim está falando com racionalidade, Malfoy.— ela adotara a postura séria e indiferente novamente— Cumprirei o que prometi, e eu voto por começarmos agora para acabarmos logo com isso.

—Desde que eu receba meus benefícios assim que pisar naquele inferno novamente. — Ele falou dando de ombros.

—Quanto a isso não precisa se preocupar, eu já deixei tudo preparado.

— E se eu não aceitasse? — Ele perguntou, erguendo uma das sobrancelhas. — eu poderia negar e você teria gastado seu latim em vão.

Foi a vez de Hermione sorrir com deboche. Aquela expressão parecia ornar com ela, porque era isso que ela sempre fazia com os que considerava menos capazes, inteligentes ou perspicazes do que ela. Debochava. Com um sorriso contido, uma expressão indignada, um estalar de língua (indicador de desaprovação) e um meneio de cabeça.

Ela ainda estava com o vestido azul. A peça, mesmo suja, ainda lhe caía bem.

—Quero saber como era sua relação com Daphne Greengrass. Eram namorados em Hogwarts? — Hermione perguntou, desviando a atenção para a perna de Malfoy, descoberta e avermelhada. Os pelos loiros haviam sido raspados para que o curativo recente não enroscasse neles. — Como está a perna?

A segunda pergunta pulou de seus lábios sem que ela pudesse refreá-la. Fora inesperada, ela teve certeza à medida que a contrariedade e a duvida nasciam no rosto de Malfoy.

— Daphne e eu não éramos namorados. Eu protegia a pele dela por ter um histórico familiar desconhecido e ela me pagava com alguns agrados especiais na biblioteca. Acho que não preciso explicar o que ela fazia, ou preciso? - Draco não parecia falar a verdade. Mas sinceridade não era o seu forte, então Hermione não esperava mesmo que ele falasse abertamente sobre seus sentimentos, não para ela pelo menos.

—Não preciso de detalhes. Isso é irrelevante para o que quero saber. — Hermione sentiu a pele do pescoço e bochechas corar — O que houve com ela?

— Essa é uma pergunta que eu venho me fazendo desde o dia que fui levado para Azkaban.

Hermione percebeu que era a primeira vez que notava algum traço de emoção na face de Malfoy, que não fosse ódio, nojo, infelicidade. Havia só o cansaço e a saudade.

— E minha perna está ardendo como os infernos, já que perguntou.

x—

Eu ainda estou preso sob o peso

De que o que eu acreditava ia me manter seguro

Então me mostre onde minha armadura termina

— Machucou o braço tentando me salvar? — Draco questionou, percebendo que Hermione não falaria com ele, pois estava ocupada com a leitura de um livro trouxa. Ela não fizera mais perguntas, talvez por pena.

— Indiretamente. — ela respondeu sem tirar os olhos do livro.— Não havia nenhum doador compatível, então eu tentei utilizar o meu sangue.

Os olhos de Draco cresceram, o prenúncio de uma explosão de ódio e indignação parecia chegar em poucos minutos. Hermione estaria ali para ouvir de qualquer forma.

— E eu suponho que não tenha servido. Não imagino que haja compatibilidades, por motivos óbvios. — ele disse, e possuía uma confiança inabalável em sua fala, muito embora o receio não estivesse ausente.

—Acredite se quiser, mas nós somos compatíveis. — Hermione despejou a informação com uma satisfação insofismável em seus olhos cor de chocolate. Abaixou o livro apenas para deliciar-se da expressão desesperada e de pura ojeriza que Draco não fez questão de camuflar.

Ela esperou a aparência vitrificada se transformar numa palidez mórbida e tenebrosa. Logo chegaria a fase de negação, e então ele começaria a bombardeá-la com injúrias e declarações preconceituosas, as quais ela não estava inclinada a ouvir e permanecer na paz de espírito que sempre mantinha. Por isso, resolveu concluir seu relato.

— Mas não doei meu sangue devido a alguns problemas de saúde na infância, que me tornam incapaz de ser doadora. — ela falou, por fim, quase se arrependendo ao ouvir o ruidoso suspiro de alívio.

— A quem eu devo agradecer por essa sua impossibilidade? Ah, Granger! Tenho certeza que adoraria ser honrada com a mistura da sua imundície ao meu sangue puro e nobre. — Draco provocou, retomando seu sarcasmo e altivez. — Quem foi o doador? Eu o conheço?

— É "ela", e você a conhece sim. E devem ter uma relação ótima, eu suponho, a ponto de fazê-la abandonar os próprios afazeres para vir até aqui saber de seu estado. Foi Kayla O'Boyle. — Hermione fitou Draco com firmeza. Em seu íntimo arrependia-se por não ter adicionado à sua grade curricular a disciplina de leitura corporal, disponível para quem fosse trabalhar na junta médica dos aurores. Na época dera prioridade para tóxicologia de ingredientes mágicos.

— Como? — Draco inclinou a cabeça para o lado. Estava confuso e aturdido demais para formular uma pergunta menos idiota.

— Kayla O'Boyle foi sua doadora. — Hermione repetiu, caçando alguma reação nos olhos dele. — O seu tipo sanguíneo é O-. Você, apesar de ser o doador universal, só pode receber transfusão de alguém com o mesmo tipo.

— Mas ela é…

— Ela se autodenomina mestiça, embora, é claro, essas classificações no mundo bruxo já não encontrem respaldo algum. — Hermione completou a frase de Malfoy.

— Então como...

— Como eu disse, Malfoy, sangue é apenas sangue. — Hermione falou calmamente, como quem explica para uma criança que ela deve dividir seus brinquedos. — E é neste momento que você sente o impacto. Descobre que toda a sua vida foi uma grande, magnífica e retumbante mentira.

Ele sentiu as mãos perdendo a sensibilidade, e logo notou que fora porque não parara de pressioná-la com o máximo de sua força. Hermione falava como uma sabe-tudo implicante e competitiva. Parecia estar tendo seu momento de glória ao cuspir seu ideal barato de igualdade. Sim, ideal porque não se dignaria a chamar aquele amontoado de merda de realidade.

Queria se vingar dela por sorrir diante de sua desgraça. Seu desejo era ter em suas mãos o poder de machucá-la tão profundamente a ponto de quebrá-la por dentro.

— Sempre ensinando os demais como se comportar. Não é mesmo, Granger? Gostaria de saber como Weasley se comportou em sua última viagem para uma tal missão secreta? — Draco saboreou as palavras. O sorriso desfeito e o assombro repentino de Hermione foram suficientes para acrescentar alguns pontos em seu orgulho recém massacrado. — Não se atreva a brincar comigo, Granger, ou eu vou te ferir onde mais dói.

Saber que poderia manipulá-la ao seu bel prazer trouxe a ele uma esperança há muito tempo adormecida. Sabia agora onde trabalhar para conseguir seu passaporte de saída da prisão, com algumas regalias adicionadas por cortesia da própria doutora Hermione Granger.

Teria o que quisesse dela.

A batida de um dos guardas na porta impediu que Hermione avançasse sobre Draco e lhe desse outro tapa, com mais violência e raiva.

— Senhorita, Feggis está aqui fora e quer lhe falar.

Hermione saiu apressada do quarto. Suas mãos tremiam e o peito não conseguia abrigar o coração desesperado que, em batidas violentas, denunciavam toda a raiva, dor, vulnerabilidade e humilhação que sentia.

x—

Gina rodopiava a colher de chá com o dedo mínimo. Suas unhas estavam longas e bem lixadas, pintadas de marrom, como Harry gostava. Se estivesse certa, e ela estava, sabia disso, ele atrasaria mais alguns minutos. "Preso no trabalho, Gina, você sabe, toda a burocracia…" seria a frase introdutória, que vinha antes do beijo e cumprimento, ou perguntas corriqueiras como "Olá, tudo bem? Como foi seu dia?". Ele sempre chegava atirando as justificativas pelo ar.

O clima em Londres estava anunciando uma tempestade, apesar do vento gelado que às vezes atravessava os vãos de seu suéter. As árvores do lado de fora pareciam contentes em terem suas folhas arrancadas. As mulheres que caminhavam apressadas nas calçadas pareciam felizes ao segurar a barra dos vestidos esvoaçantes. O dono do café parecia feliz porque todos resolviam tomar alguma bebida quente quando o clima começava a esfriar. Todos pareciam felizes.

Exceto ela.

A vida conjugal não era a perfeição que todos desenhavam. O trabalho dos sonhos de repente não era tão empolgante. Os problemas da vida adulta chicoteavam suas costas sem piedade, e tudo o que ela queria era poder deitar no colo de sua mãe, pedir um leite morno com mel e dormir a tarde toda.

— Senhora, o seu bolo. — o rapaz de camisa azul colocou um prato florido nas laterais em cima da mesa. Gina sentiu a boca salivar à imagem do bolo de nozes e chocolate, com pelo menos três camadas de recheio e uma cobertura espessa de chocolate ao leite. — Bom apetite.

— Obrigada. — ela respondeu afetuosamente.

A primeira mordida era sempre especial. Geralmente Harry chegava nesta parte, para impedi-la de comer antes de completarem o ritual que consistia na divisão do primeiro pedaço, relembrando a primeira vez que Harry a levara naquele lugar (que ela nunca ouvira falar) para experimentar o melhor da culinária trouxa.

Ambos estavam sem dinheiro, pois era o fim da guerra e nenhum banco havia se restabelecido das perdas. Harry, então, achara em uma meia velha que pertencera ao seu tio, uma nota de cinco libras. Eles entraram no café e pediram um pedaço de bolo e o dividiram, jurando que no futuro, quando tivessem condições, frequentariam o local todas as sextas-feiras.

Gina mordeu o primeiro pedaço, mastigando devagar, esperando o marido chegar para interrompê-la.

Mas ele não apareceu.

x—

Suas mãos tocaram a pele alva e macia. Cada centímetro do corpo dela parecia um convite ao delírio. Seu corpo fervia em excitação só de sentir os seios dela contra o seu peitoral. Estar com ela era arriscado, mas valia o esforço quando vislumbrava o torpor e êxtase que causava na mulher apenas com alguns beijos.

A casa estava quente, apesar da ventania do lado de fora. O barulho das janelas batendo e de alguns trovões não os intimidava, pelo contrário, dava o ritmo para os gemidos presos na garganta, e para as carícias cheias de lascívia.

As mãos dela procuraram o zíper da calça, e por cima do tecido pesado acariciaram com vontade o membro rígido. Ela sabia como deixar um homem louco, e ele teve certeza do fato quando sentiu a peça ser abaixada junto com a cueca e a mão dela alisando-o lentamente para cima e para baixo.

— Kay, você vai acabar comigo. — ele sussurou, num fio de voz quase inaudível, erguendo-a em seguida e apoiando o corpo esguio na mesa da cozinha.

As suas mãos eram fortes e pressionavam a carne das coxas brancas com força. Ela sentiu as costas se chocando contra o tampo frio de mármore e, num piscar de olhos, viu sua calcinha sendo atirada para longe. Não teve tempo de rir ou protestar, porque, sem prévio aviso, ele entrou nela e perdeu-se num universo paralelo, onde só existiam os dois e o movimento continuo entre os quadris, que aumentava a cada segundo.

Quando terminaram, permaneceram deitados na mesa, sentindo finalmente o quão fria ela era.

Antes de ele chegar, Kayla pensara por um breve momento, que ele não viria.

Mas ele sempre aparecia.

x—

— Trouxe os nossos lanches, Hermione, exatamente como especificou. — Anthony Feggis apareceu com uma sacola de papel. — Mas você não me parece bem. O que houve?

— Obrigada, Anthony— Hermione pegou dois lanches dos quatro que estavam na sacola. — Eu estou sob o efeito de Draco Malfoy. O que nunca é uma boa coisa.

Feggis apoiou o peso do corpo na parede onde agora estava o espelho falso. Não sabia o que dizer, pois Hermione parecia frágil demais para qualquer pergunta. Abriu a boca várias vezes para tentar formular uma frase de consolo, mas desistiu.

— Ele é um monstro. — o homem falou, olhando para a parede oposta.

— Bem, disso eu tenho certeza. — ela falou, assertiva.

— Mas é um monstro com espinho nos pés. — Feggis rebateu, e Hermione não entendeu ou que ele quis dizer. — Nunca ouviu falar da famosa lenda do Dragão e o espinho?

Hermione negou com a cabeça.

Feggis desceu os olhos para o assoalho. Sorriu vagamente, lembrando-se da primeira vez que vira Malfoy.

xx

As mãos pequenas e inseguras apertavam os dedos pálidos e frios de Narcissa que, de tempos em tempos ajustava o anel de família para que a flor pontiaguda de esmeralda não machucasse a pele do filho.

Ele resmungava, insistindo para que ela o levasse em todas as lojas, mas a mulher caminhava decidida numa única direção. A loja de plantas e objetos herbáceos, onde o pai é o avô de Feggis trabalhavam há anos.

O jovem Anthony não via Narcissa desde a formatura em Hogwarts, quando ela anunciou o casamento com Lucius Malfoy para as amigas mais próximas e ele, sem querer ouvira.

Não quero entrar neste lugar imundo, mamãe. Tem cheiro de repolho velho e mofo. — o garotinho choramingou, suas mãos soltaram a de Narcissa e começaram a puxar a saia do vestido dela no sentido oposto ao da loja.

Feggis olhava para a cena que se desenrolava do lado de fora, sorriu com pesar ao notar que o menino era a cópia do pai, embora ainda não tivesse o caráter formado, por ser apenas uma criança.

Draco, querido, nós vamos entrar um pouquinho e já sairemos. Se você se comportar, eu encomendo uma daquelas capas iguais as que seu pai usa, para quando chegar o dia da recitação. — Narcissa olhou de um lado para o outro, verificando se havia alguém conhecido no beco diagonal.

Os olhos de Draco se iluminaram à menção do dia da recitação. Ele decorara todos os conceitos de pureza do livro da família, decorara sua árvore genealógica, e aprendera todas as regras atinentes à proteção do sangue.

"Ninguém toque num sangue puro."

"Sangue puro não se mistura"

"Afaste-se dos sangues ruins"

"Traidores do sangue são piores que trouxas"

"A inteligência é uma característica da pureza".

O garoto repetia o mantra diariamente. E logo receitaria para seu pai em um jantar muito importante, no qual estariam dois primos distantes e o seu avô, que finalmente sairia do litoral para ver o neto.

Tudo bem, mamãe, contanto que eu não tenha que ficar muito tempo nessa espelunca. — o garoto falou, dirigindo à mãe o mesmo olhar que seu pai tinha quando era forçado a enfrentar eventos do Ministério que reuniam mestiços e traidores do sangue.

O sino que anunciava a entrada de clientes na loja tilintou, e Anthony, já sabendo de quem se tratava, fingiu total indiferença.

Em que posso ajudá-la, madame? — ele perguntou, com o máximo de formalidade que conseguiu.

Preciso que consertem este objeto. — Narcissa falou em tom autoritário, empurrando no balcão um colar com duas pedras esverdeadas engastadas num circulo dourado e envoltas por uma fina tira de prata que reluzia contra a luz bruxoleante dos candelabros da loja.

Feggis olhou para as mãos da mulher em sua frente. Estavam cheias de cicatrizes rosadas e grossas.

Não trabalhamos com este tipo de objeto, senhora. — Feggis falou quando viu do que se tratava. — Peça ao seu esposo, ele sabe lidar melhor com arte das trevas do que qualquer outro.

Draco não conseguia acompanhar a conversa com clareza, mas percebera que o homem estava tratando sua mãe com pouca gentileza. E mencionara seu pai, ainda por cima.

Draco. — Narcissa chamou, antes que ele pudesse cuspir no chão daquele lugar e quebrar alguns vidros nas prateleiras. — nos dê licença um momento.

Mas, mãe, eu não quero deixá-la sozinha com esse verme.

Isso não está em discussão. — a mulher o fuzilou com o olhar.

Venha, garoto, eu vou te apresentar alguém para brincar. — Feggis atravessou o balcão e tomou a mão de Draco, que se esquivou, uma expressão de nojo em seus olhos.

Não me toque, seu pobretão! — o garoto ordenou, desvencilhando-se do toque de Anthony.

O homem suspirou exasperado, olhou para Narcissa, que não parecia nem um pouco tentada a corrigir o filho, e pensou no quão imbecil estava sendo por, mais uma vez, atender algum pedido dela. Por mais uma vez se preocupar com ela.

Margareth! Venha aqui, querida. — ele chamou, e uma garota de pele bronzeada, cabelos negros e olhos levemente puxados apareceu por detrás de uma cortina que dividia a loja em dois cômodos.

Sim, papai? — a garota falou, e parecia estar se recuperando de um longo acesso de riso.

Leve esse garoto para brincar, ou sei lá o que. Qualquer coisa que essas crianças ricas fazem. — o homem pediu, ao que a filha obedeceu prontamente, levando um Draco muito contrariado para o lugar onde ela estava anteriormente.

Narcissa acompanhou o filho sumindo por entre as cortinas. Seus olhos azuis pareciam mais intrigados que o habitual.

"Papai"? — foi o que ela perguntou quando voltou a encará-lo.

Sim, ela é minha filha mais velha. — Anthony respondeu placidamente. — As pessoas costumam seguir em frente, Narcissa. Só não entendi ainda o porquê de você estar aqui.

Eu preciso descobrir algumas coisas através deste orbe. — ela falou, enfim, deixando o cansaço tomar seu rosto belo e quase divino.

E o que eu tenho a ver com isso? — ele tentou soar indiferente. Mas era difícil ser indiferente à ela.

Tudo. Você uma vez conseguiu algo impossível com Samantha Todd. Ela descobriu tudo sobre o noivo traidor do sangue.

E me arrependo até hoje de ter feito aquilo.

Mas ela está feliz. — Narcissa insistiu.

Não está. Casou-se com um bruxo rico, mas cheio de trambiques na travessa do tranco. Isso sem contar no desprezo e maldade que ele tem para com ela. — Feggis disse, angustiado.

Eu sabia que vir aqui seria uma perda de tempo. — Narcissa falou, arrancando a peça do balcão, mas, sendo interrompida pelas mãos de Anthony, parou no meio do caminho.

O homem pressionou com carinho os dedos de Narcissa. Ainda continuavam macios. As cicatrizes ondulavam por baixo de sua pele e ele sentiu toda a dor que o momento exigia.

Quantas vezes tentou abrir esse colar? — Ele questionou, visivelmente preocupado com os ferimentos.

Cinco.

Silêncio.

Deve ser algo importante para desafiar até mesmo sua inteligência e racionalidade.

Sim, é importante.

Narcissa Black, ou melhor, Narcissa Malfoy, sempre conseguira fazer com que ele se odiasse por ceder aos seus olhos azuis delicados, aguçados, sensíveis e persuasivos.

Tudo bem, eu te ajudo.

xx

— Eu nunca ouvi essa lenda, Anthony. — Hermione falou, demonstrando interesse na declaração do homem, que por um momento parecia ter sido transportado do lugar em que estava.

— É uma história antiga, que meu avô me contava de vez em quando. Se encaixa muito com o nosso prisioneiro do outro lado. Começa mais ou menos assim.

"Havia um dragão muito poderoso e mau que tinha uma pilha de tesouros saqueados de todos os reinos de Montan-Her (era como se chamava a terra antigamente). Ele guardava com ganância tudo aquilo que possuía, e passava horas e horas contemplando sua fortuna, compondo poemas para as pepitas de ouro, e entoando belas canções para os pingentes de esmeralda.

O dragão confiava em sua força e habilidade, bem como se portava como o grande senhor do reino, de modo que todos deveriam se curvar ao seu poder e soberania. E ninguém conseguia derrotá-lo, pois suas escamas eram tão duras quanto os diamantes de sua fortuna.

Certo dia, enquanto circundava os portões setentrionais de uma das terras que havia invadido, o dragão sentiu algo preso em sua pata dianteira. Pulou de um lado para o outro, desesperado, assustado, cheio de dor.

Quando os habitantes do reino encontraram o dragão em agonia e vulnerabilidade, passaram a tripudiar do grande lagarto. Jogavam restos de comidas e torturavam-no com palavras de humilhação.

'Eis aí o poderoso dragão, que dantes possuía todo o nosso tesouro, e agora permanece afugentado por alguns pedaços de legumes podres'

Cansado de tanta vergonha, o dragão se recolheu na caverna mais escura, suja e mal cheirosa. E ali ficou por muitos anos, até que uma garotinha o encontrou e teve piedade dele, pois estava fraco, doente e cheio de feridas.

A garota cuidou dele e o alimentou. Ele era muito rabugento, sentia dores horríveis, e o peso da humilhação o fazia ter raiva de todos. Ate o dia em que a garota descobriu que o Dragão pisara num espinho, e por isso nao conseguia caminhar. Ela, então, removeu o espinho e o fez prometer que nunca mais faria mal à ninguém.

Assim, o dragão não mais apareceu nas regiões habitadas, e a garota passou a viver nas proximidades, pois criara uma amizade muito bonita com o dragão."

E fim.

— Agora você me conta essa história e espera o que, exatamente?… Por acaso quer me fazer pensar que eu sou a tal garotinha, Draco é o dragão (que tem uma lesão na perna) e vou curá-lo. Assim as coisas ficarão bem e todos seremos amigos? — Hermione falou, fitando Feggis com um misto de descrédito e perplexidade— Isso é impossível, e sabe por que, Anthony? Porque eu odeio tudo o que Malfoy tem, todas as pessoas que um dia ele conheceu, tudo o que ele já fez. Talvez porque odiá- lo é, e sempre foi a única saída para mim. A maneira que eu encontrei de me defender dele, das vezes que ele me machucou quando me dirigia a palavra. Porque, sim, acredite, ele conseguia me atingir.

— Não. Não estou insinuando que tudo ficará bem.— ele meneou a cabeça com tranquilidade— Estou dizendo que uma pessoa pode se tornar boa, basta que encontre alguém que tenha fé nela.

—Eu vou levar o lanche para ele. — Hermione decidiu. Pegou um dos sanduíches e dirigiu-se novamente até a porta. — Foi uma boa história, Anthony. Mas é só uma história… Pessoas são mais difíceis de compreender.

E ele sabia disso.

x—

Mostre-me onde minha pele começa

Como a última peça de um quebra cabeça

Isso tudo faz perfeito sentido pra mim.

Ela ainda estava sentindo os resquícios da raiva pelas palavras de Malfoy. Ainda estava em dúvida se ele lhe jogara um blefe, ou se sabia mesmo sobre a morte de Rony. Precisava descobrir, e não fraquejaria novamente. Agora chegara o momento de fazer uso de todo o seu lado racional e matemático, para deixá-lo pensar que estava assumindo o comando, e assim, mantê-lo em suas mãos.

Ele estava ali, deitado numa cama macia, contemplando o nada. Os dentes já não tão brancos e lustrosos, a pele já não tão sedosa e aveludada, mas era ele. Draco Malfoy.

Poderia ser considerado bonito, ainda ostentava um porte aristocrático, cheirava a arrogância, apesar dos pesares. Mas a expressão de nojo constante em seu rosto translúcido e doentio impediam que qualquer ser humano dotado da mínima consciência o achasse belo.

Entretanto, o mais intrigante, na opinião de Hermione, era que ele poderia passar uma imagem angelical, se assim desejasse. Poderia comprar qualquer um, se decidisse vestir a sua melhor expressão facial. Passaria tranquilamente por um jovem anêmico, carente de algumas doses de melanina.

Ele não olhara para a porta quando ela entrou, mas sobressaltou-se no momento que a voz dela preencheu o silêncio do quarto.

— Eu não deveria agir tão bem com você, Malfoy, simplesmente não deveria. — Hermione começou, puxando alguns fios de cabelo da nuca. — Mas eu sou uma pessoa que assume as próprias responsabilidades e não me deixo vencer tão fácil… Então, quer você queira ou não, vou fazer o meu trabalho. Peço que não tente me impedir, pois todos sairemos ganhando se assim acontecer.

— Agora, eu vou verificar a sua temperatura e prescrever três doses de poções revigorantes, que tratarei de providenciar quando chegarmos em Azkaban.

Hermione aproximou-se da cama. Draco a observava de cima a baixo, procurando a primeira oportunidade para gritar por socorro, e inventar alguma coisa que a afastasse dali. Estava apavorado pela proximidade.

Ela desatou o cateter e a bolsa de sangue foi descartada numa bandeja prateada. Suas mãos miúdas puxaram a agulha, e ele não sentiu nada, apenas um leve ardor. A pressão dos dedos de Hermione que correram por suas costelas era gentil, e ele admitiria que era agradável, se não fossem as mãos dela.

— Você tem um inchaço moderado na região das costelas, mas não apresentou dor enquanto eu pressionava, então acredito que seja um descontrole em suas células mágicas. É provável que o que lhe aconteceu tenha sido fruto de um envenenamento, mas não nas doses letais…— Hermione afastou-se da cama e massageou as têmporas. Um gesto que ela sempre repetia inconscientemente quando estava intrigada com algo.— Alguém queria te trazer até aqui, Malfoy.

— Não consigo imaginar porque alguém desejaria me envenenar. E trazer-me até aqui também não faz sentido. Olhe só para a minha casa, Granger? O que este lugar se transformou…

—No momento é a única coisa que consegui deduzir sem exames completos. Não posso te dar mais nenhuma informação, porque ainda não as tenho. — ela falou, por fim, dirigindo-se para a porta novamente. — Ah… E coma alguma coisa. Você está péssimo.

Hermione jogou um pacote no colo de Draco. O papel pardo envolvia algo com um cheiro muito agradável, quase nostálgico. Ele esticou a mão e apanhou o pacote, abrindo-o e revelando a maior surpresa do dia. Torta de abóbora recheada com carne de javali.

x—

Então me mostre onde minha armadura termina

Me mostre onde minha pele começa

Continua...


N/A

Tcharãaans xD

Eu vou agradecer a Mi *-* que prescreveu vitaminas para o Draco e Hermione atendeu. HAHAHA

As suas reações nos comentários, mona, me acabam! Eu reli ele hoje e to aqui rindo feito uma idiota. Sou louca, né?!

Espero que esse capítulo te renda mais material para teorias, você sabe que ADOROO todas elas,

Obs: Avisa pra Marcelina que nesse aqui tem uma NC mais ou menos (aquela carinha, hehehe)