DIA DA PRESA. DIA DO CAÇADOR

Are we the hunters?

Or are we the prey?

(Game of survival – Ruelle)


Wiltshire, 1989

Houve um tempo em que as árvores podiam ser ouvidas de longe. Os galhos enfurecidos debatiam-se contra a janela, e um farfalhar enérgico do mix de folhas iniciava o temido ruído que tanto se assemelhava ao zunido encrespado de unhas arranhando a janela – a folhagem mais jovem mantinha-se firme, e aquela que estava por um fio encontrava o solo. O som por elas emitido compunha uma macabra sinfonia. A noite estava mais escura que habitual e somente o brilho do teto criado pelas solitárias constelações fazia o seu coração pulsar em um compasso coerente, tranquilo e livre dos constantes sobressaltos causados pelo breu absoluto.

Sua mãe era a melhor pessoa de todo o universo. Por vezes, durante a ventania avassaladora, ele se pegava pensando no quão indigno era da afeição de Narcissa. Tal ideia lhe ocorria tão rapidamente que ele sequer tinha tempo de afastá-lá, era um daqueles pensamentos minúsculos que se alojavam secretamente dentro dele, como um vírus silencioso.

Nessa mesma época Draco podia ouvir sua mãe fungando pelos corredores. O outono trazia para ela incontáveis desconfortos, como a alergia resultante da sequidão climática, então ele nunca conseguia distinguir a coriza do choro — que também se tornara constante naquele último mês. Draco tinha certeza que quando ela passasse pela porta do seu quarto novamente, entraria e lhe daria um beijo no, que, por sua vez, fingiria estar dormindo só para não causar nenhum incômodo, ao menos não naquela semana.

O prelúdio do inverno era marcado por densas memórias negativas, pois as baixas temperaturas eram responsáveis por fazerem com que seu pai sentisse a impiedosa e sôfrega consequência de portar a mosmordre. Ninguém sabia o motivo, mas aquele-que-não-devia-ser-nomeado, mesmo depois de desaparecido – ou morto – ainda causava infindáveis malefícios aos aos seus seguidores, como se o chicote do mestre permanecesse em movimento, pronto para punir e ordenar aos servos de Voldemort continuassem o trabalho que ele não conseguira terminar.

Quando os sintomas atingiam o pico máximo, a ninguém era permitido sequer respirar nas imediações do quarto de Lucius Malfoy, apenas Narcissa tinha o direito de se comunicar com ele. Vez ou outra Draco encostava as orelhas na parede, a fim de tentar ouvir a voz do pai, mas quase nunca obtinha êxito, identificando apenas alguns resmungos modorrentos e irritadiços de Lucius, contra a fala suave, porém severa, da esposa.

– Não estou interessado em seus sermões, Cissa, além do mais sua sugestão não é das melhores, considerando o momento. – o homem ralhou em tom ameaçador, após uma torrente de espirros. – E já disse para não usar esse pólen de gérbera! Sinto que ficarei sem vias aéreas se continuar preparando sua poção misteriosa.

– Seu pai não destruiu o livro, tenho certeza. – Narcissa ignorou serenamente os protestos do marido, enquanto mexia vigorosamente o caldeirão de cobre reforçado. – Apesar de senil, não seria capaz de tamanha insensatez. – Narcissa era estratégica e fria em suas palavras. Meticulosamente observava o problema antes de atacá-lo, assim como estava fazendo com Lucius no tratamento de suas mazelas.

– Ele não destruiu, apenas repassou para algum velho amigo, o que é típico de Abraxas, entregar qualquer coisa que achasse valiosa para outra pessoa que não fosse o próprio filho. – Lucius, em sua fala, parecia mais entendiado do que frustrado pelas decisões do pai, falecido há alguns anos. — Não duvido nada que tenha entregue para Slughorn, aquele traidor. Ai! Mais cuidado com essa coisa! Minha pele está em chamas…

– Tenho certeza que ele mantém guardado naquele lugar. Ilha maldita. – a voz de Narcissa carregava um ódio que não era comum em suas conversas com Draco, por isso o garoto sentiu medo e afastou-se da porta.

Em ocasião diversa Lucius retrucaria, ou manteria algum tipo de discurso frenético sobre como descobriria a forma mais justa de adentrar no local, que fora deixado como herança para outra pessoa, mas ao invés disso, um longo silêncio, carregado de informações adultas demais para a mente infantil de um garoto de apenas 10 anos. No silêncio havia a culpa persistente de uma confissão feita por Lucius havia duas semanas. Tamanha havia sido a gravidade da informação que por ordem de Narcissa todos os trabalhadores do vilarejo estavam impedidos de cruzar as imediações da Mansão Malfoy.

Janice também estivera ausente, Draco não imaginava o porquê, já que ela completaria onze anos em breve e, consequentemente, colocaria as mãos na tão sonhada carta de Hogwarts – conforme havia repetido inúmeras e irritantes vezes no ouvido de Draco.

Vasculhara todas as ruas do vilarejo, mas a única coisa com a qual se deparava todos os dias era a porta da cabana de Janice fechada, como se ela nunca tivesse existido. E por muitos meses forçou-se a acreditar que ela jamais existira, que fora um delírio da criança solitária e superprotegida, o herdeiro dos Malfoy.

Azkaban, 2005

Ela novamente.

Se continuasse sonhando com Janice Draco ficaria louco. Embora os pesadelos fossem rotina nada agradável em suas noites, Malfoy temia ainda mais quando se referiam às pessoas de seu passado, cuja identidade ninguém, ou quase ninguém, conhecia. Os dementadores tinham acesso às memórias felizes, e extrairiam-nas até os últimos retalhos, de modo que as lembranças das quais Janice fizera parte seriam o banquete monárquico dos sugadores de alma. As lembranças de Janice eram sagradas, de maneira nenhuma ele permitiria que fossem profanadas.

Ele permaneceu acordado, esperando que o cansaço o recobrisse novamente. Pensou em Hermione Granger e na promessa de que encontraria registros sobre a ilha de seu avô. Anos atrás sua mãe mencionara a existência do local. Por anos Malfoy criara teoria mirabolante sobre a casa do avô, a região litorânea que quando garoto sempre detestara, e, no entanto, agora, parecia-lhe o último sopro de esperança.

Esperança era o ópio de todos os presos. Reprovável, mas assim como as inúmeras drogas ilícitas, prazerosa. Hermione dera a ele uma porção de esperança; traiçoeira e silenciosa, assim como a aluna "sabe-tudo", emergente nascida trouxa.

"Sangue ruim, Draco. S-A-N-G-U-E R-U-I-M!"

Draco mergulhou em sua própria zona nebulosa, encaixando Hermione em algum lugar coerente entre Hogwarts e Azkaban, afastando-a do campo de seu cérebro que guardava as coisas boas. Era um exercício diário empurrar para longe o sentimento de gratidão, microscópio e cheio de vontade própria.

"Negócios, não favores. Você não deve nada a ela. Nada."

Malfoy já estava em profundo estágio de sono quando ouviu os gaguejos e característico manquejar furioso do mais novo integrante da trupe dos aurores falidos. Ele parecia apressado, tentava correr, mas a tarefa tornava-se impossível quando erguia a perna direita.

Gangrena era o apelido do homem de trinta e poucos anos que balançava as grades da cela desde quando inverno iniciara. O homem fazia parte do "AER - Aurores em reintegração", conforme as diretrizes do projeto de Agosis Pertindum, e, por isso, lidava com os presos de menor potencial homicida - ao menos em tese. As mãos do homem eram enrugadas como a de um idoso, e o apelido se justificava quando era visto arrastando a perna direita pelos corredores sem elegância alguma.

A história que circulava entre os presos mais afeitos à fofoca, era de que o auror – cujo estágio de demência parecia avançado – havia sido atacado quando realizava a vigília do Gringotes, alguns dias após a prisão da maioria dos comensais. Klaus Lodger, comensal informal, ainda rondava pelo beco diagonal naqueles dias, saqueando lojas e raptando crianças a fim de doutriná-las e criar seu "exército pessoal" de infratores. Naquela noite de inverno, gangrena, enquanto acendia um cigarro, foi surpreendido por Lodger. Um pontapé no joelho, fê-lo perder o equilíbrio já que sua guarda estava suficientemente baixa, e o comensal era habilidoso, não encontrando dificuldade alguma em amarrar o auror pelo pé direito e deixá-lo suspenso no topo do Banco Bruxo. A morte do tecido iniciou-se lenta e dolorosa, na pele a coloração esvaiu-se pouco a pouco, e assim esgotou-se o fornecimento de sangue .

Gangrena.

O homem passou pela cela de Draco, agitando a varinha por entre as grades e, sem qualquer justificativa, lançou um feitiço explosivo na lata de sopa e na metade de um pão fresco que estavam dentro do cesto de vime, bastante familiar para Malfoy, que o chamava de "Cesta Paterna de Feggis". O saboroso alimento havia sido deixado aos pés de Draco logo pela manhã, quando Feggis realizara a costumeira vistoria de presos e afastava os dementadores, a fim de que os moribundos encarcerados pudessem ter uma refeição digna.

– Levante-se! L-evante-se– A ordem do homem manco, e bastante infeliz com o próprio ofício, era o que Draco não precisava, nem queria ouvir naquela manhã de domingo e por isso virou-se para o lado oposto, ignorando solenemente os berros do auror. – Seu monte de estrume, levante-se, ou sofrerá severas consequências! Eu não estou aqui para bancar sua babá.

– Velho maluco. – Draco resmungou entre os dentes, esperando que o visitante inoportuno se retirasse dali e o deixasse em paz – sentimento raro em um ambiente abarrotado de criaturas devoradoras de almas – mas ele se contentaria com a ausência de vozes humanas, e paranoicas, como era o caso de Gangrena.

I-Incendio! – Gangrena gritou, alucinado e irritado demais para se preocupar com a mira, ou com a pronúncia do feitiço, deixando que as chamas voassem e atingissem toda a extensão da cela.

O aroma de padaria e doces cobertos de açúcar, que teria despertado as melhores lembranças perdidas na memória de Draco, se dissipou em segundos e o forte odor de fumaça, rocha estilhaçada e de sangue, fê-lo lembrar do lugar onde estava. Sentiu o ombro arder e a ligação dos eventos "explosão e pele" o levaram à infeliz conclusão: a camiseta estava em chamas, bem como o seu braço. Gangrena, além de esmigalhar o café da manhã de Malfoy, havia incendiado a cela.

Não havia muito o que fazer, senão levantar-se e encarar a queda de temperatura que a ausência dos cobertores provocaria. Os primeiros flocos de neve alcançariam a região quando o mês de dezembro chegasse, então o frio já começava a ser sua maior preocupação. As celas eram sempre geladas, todavia, as primeiras noites do inverno conseguiam superar o frio natural do ambiente.

A marca começara a incomodar, não como quando Lorde Voldemort chamava os seus servos, mas havia nas fibras mais profundas de sua pele uma dor peculiar, que transitava entre o ardor e a pungente pressão. A mosmordre coçava pelo recente contato com as chamas, mas se Draco se atrevesse a encostar as unhas nela, sentiria a carne se desfazer em chamas, e depois a febre assumiria o controle de seu corpo acompanhada da famigerada sensação de ossos se partindo. A marca da morte.

Fouetté par le patron, os chicoteados pelo mestre, era como os usuários da marca negra eram chamados. Gerard Gallois, um comensal famoso por negociar alguns produtos ilegais e uma infinidade de poções dentro de Azkaban foi quem criou o apelido, também aplicável a ele mesmo. Voldemort não havia morrido para os seus antigos servos, pois deixara cravada neles a marca que os fazia lembrar do seu senhor.

Os presos nunca eram retirados de suas celas, por isso Draco espantou-ao ver todos se dirigindo para fora. Feggis não estava lá, talvez por isso Gangrena viera estrear suas habilidades de auror incendiário nos arredores do corredor dos presos não tão perigosos. Verdadeiro dia de sorte para Malfoy.

Se estivesse apostando algo — caso possuísse algo para apostar — jogaria todas as suas fichas na grande revolução dos dementadores que, cansados da subjugação ao sistema prisional bruxo, passaram a ditar suas próprias regras, e os presos seriam os primeiros a terem suas almas sugadas sem qualquer traço de piedade.

Seguiu em fila indiana pelo caminho indicado por ninguém menos que Agosis Pertindum, de quem apenas ouvira falar, mas que sabia ser alguém de marcante importância. O homem era tão ou mais cafona do que um cruzamento grotesco entre o pai de Luna Lovegood e a velha Longbottom, avó de Neville. Tinha um sorriso caloroso e o olhar sereno, como se nada pudesse assustá-lo, nem mesmo a presença de centenas de dementadores. Devia ser um bruxo muito forte, já que não possuía um dos colares estranhos com patronos enclausurados.

Foi o vozeirão de Thomas que chamou a atenção de todos, cessando o burburinho antes mesmo de chegarem ao fim dos degraus que davam acesso ao saguão principal, lugar onde Draco havia posto os pés apenas uma vez, há cerca de seis anos. Um feitiço tornou o som perfeitamente límpido, de modo que qualquer que estivesse nas torres ou nos fossos de Azkaban poderiam escutar a mensagem.

— Apenas doze funcionários concordaram com o projeto de Agosis Pertindum. E hoje ele está aqui, em Azkaban, fiscalizando de perto os resultados e pontos de melhoria a serem implantados. — Pertindum assentia a cada frase dita por Thomas. — Espero que não arrumem nenhuma encrenca, ou servirão de manjar para os dementadores. Não costumo tolerar gracinhas, favorecer presos ou salvar a vida de alguém.

Não demorou para que Agosis assumisse a palavra, temendo mais uma chuva de frases brutas e desumanas das quais Thomas estava sempre pronto a proferir. Com a elegância que destoava furiosamente de suas vestimentas – um sobretudo amarelo de cashmere e calça de brim azul com riscas de giz – caminhou até o suposto palanque e iniciou o seu discurso.

– Amigos e amigas! Não existe melhor momento do que este para falarmos sobre humanização. Por anos eu tentei implantar mudanças na comunidade bruxa que, após anos de segregação, tem sido vista com bons olhos por nossos atuais governantes. Semana passada o Ministro trouxa de nossa querida Inglaterra convidou-me para um chá, discutimos sobre os mais variados temas, mas sobretudo a respeito de nossos métodos de punição. – Pertindum sorria como se tivesse prestes a saborear uma deliciosa torta de javali, Draco pensou, remetendo ao seu próprio desejo naquele fatídico dia no Banco de Sangue. O pensamento o levou à Hermione Granger e a torta de abóbora recheada com carne de javali.

Ele gostara daquela versão de Granger, fria e negocial. Sabia que havia na fala dela muita encenação, mas algo o fez pensar na remota possibilidade de aquele ser o seu lado ruim, seu yin ou yang.

— Sempre achei que fosse perigoso o suficiente para ficar entre aqueles — a voz lhe era familiar, mas agora carregava uma tonelada de efeitos potencialmente perigosos dentro de Draco.

Hermione surgiu de lugar nenhum. Elaapontou para o local onde estavam os piores e mais cruéis criminosos. Dezesseis dementadores faziam guarda, sob o comando de Gangrena e Simas Finnegan.

O espírito está pronto, mas a carne é fraca. A avó de Janice às vezes repetia em voz baixa quando entregava a misteriosa mercadoria nas mãos de Lucius Malfoy. A neta sempre repetia, como se estivesse digerindo o teor da mensagem. Nunca antes o mantra da velha fizera tanto sentido.

A carne realmente é fraca, e ela estava usando uma saia apertada demais.

— E é por isso que não se deve confiar na justiça, não é mesmo, Granger? – Malfoy notou um meio sorriso compondo a expressão sagaz de Hermione, sabia que ela ainda estava jogando. Era uma mulher competitiva. – Eu sei que conseguiu alguma coisa para mim, você daria uma péssima jogadora de poker, não sabe esconder uma vírgula com esse sorrisinho.

— Talvez porque eu seja honesta, leal... — ela falou provavelmente surpresa por saber que ele conhecia o jogo de cartas dos trouxas. Ou por ele ter feito o comentário infeliz a respeito de uma característica dela — Poker, Malfoy?— Sim, ela estava chocada, e brincar com a incredulidade de Hermione era prazeroso.

— Ficaria surpresa se soubesse das coisas que sei e fiz. — Draco falou com humor. Ele aprendera a jogar poker e xadrez com Feggis, para passar o tempo. O fato de serem jogos cuja finalidade era divertir trouxas, serviam para o fim a que se propunham; não dava para exigir entretenimento bruxo de qualidade em um lugar onde os presos eram tolhidos de suas habilidades mágicas.

— E você ficará feliz quando Pertindum anunciar o motivo pelo qual se deslocou do Ministério da Magia até aqui. — Granger mantinha os olhos fixos no palanque enquanto falava. Ela tinha aquele brilho misterioso, e o sorriso agora era mais contido– Chegamos finalmente...

—... à fase dois do Projeto — Agosis Pertindum exclamou, completando a fala da medibruxa, mesmo sem sequer ouvir o que conversavam Draco e Hermione. O homem mal conseguia conter a empolgação.

A fase dois, como Pertindum informara, era o movimento ousado que segundo ele garantiria o apoio da comunidade trouxa e, consequentemente, integraria o mundo bruxo na "roda econômica" e nos avanços tecnológicos do novo milênio, no qual os bruxos e bruxas estavam em severo atraso.

Assim, o decreto fixado na gélida parede de pedra era tão claro quanto se poderia imaginar, embora Draco não conseguisse compreender por qual motivo alguém realizaria tal impropério, pois os trouxas pouco tinham a agregar na vida dos bruxos, menos ainda aos sangues puros.

Diante da notícia os presos, mesmo os mais silenciosos, esgotados pela contínua presença dos dementadores, pareciam agitados com as informações, implorando a autorização dos guardas para paredes riscadas a fim de procederem com a contagem dos anos.

De acordo com o ato normativo expedido às duas horas da tarde do dia anterior, todos os condenados submetidos à presença dos dementadores por mais de cinco anos deveriam apresentar-se na sala dos aurores indicados em lista anexa, sob os cuidados de Kayla O'Boyle e Leon Dixon. Ninguém sabia o porquê, mas na atmosfera pairava a desconfiança, e Draco conhecia bem tal sensação, principalmente quando se tratava da bela e misteriosa Kayla e seu nada amistoso colega.

— Ele não para de falar, e parece amar trouxas mais do que o próprio Dumbledore — Draco falou, mas percebeu que Hermione não estava mais lá, desaparecera em meio a multidão, deixando o rastro de baunilha e chá de camomila no ar.

Sem pensar muito ele entrou na fila, não lhe custaria mais do que algumas horas de vida, nada comparado aos seis anos de reclusão naquele lugar.

Who's in the shadows?

Who's ready to play?

Inglaterra, 1998 – 9:00 PM

Um barulho distante de sirene. Alguém estava gravemente ferido, talvez morrido em virtude da severidade dos ferimentos, ou pela ineficácia no atendimento médico. O mundo continuava seu curso, as pessoas se casavam, bebiam, conversavam, amavam-se e traíam umas às outras. A noite dava aos homens e mulheres permissão para deixar a solta os desejos primitivos. Essa foi uma das poucas frases estranhas, sombrias e dotadas de uma profundidade abissal que Rony soltou antes de se retirar da mesa, onde sua mãe e irmã jantavam os restolhos do café da manhã.

A bendita chuva tilintava no telhado da escola, mesmo sendo todo ele feito em material robusto, de telhas grossas e apertadas entre si. Bendita sim, pois a estação não era típica das chuvas, mas do calor intenso e pegajoso.

A capa de chuva, pesada e firme sobre o corpo, também cobria-lhe quase o rosto inteiro, de modo que não tivera de olhar para as pessoas – amigos e familiares – deitadas em macas mal construídas, ou ainda, contemplar os corpos enrolados por lençois encardidos, indicando que ali jazia mais um heroi de guerra, dentre os muitos empilhados do lado de fora, prestes a serem incinerados. Tal medida, apesar de desumana, era protetiva, pois não havia espaço para a disseminação de doenças e contaminações, quando a morte batia à porta sob o manto da irmandade. Bruxos assassinando uns aos outros, por motivos que pareciam mais banais a cada morte contabilizada.

Dumbledore o recebera em sua sala já não mais tão profusa e cheia de vida como antigamente, mas que ainda mantinha o mesmo layout. Um largo e circular espaço repleto de objetos fascinantes, dos quais saíam sons suaves e engraçados. Rony não pôde evitar uma pontada de nostalgia crescendo em seu coração à medida que observava os antigos diretores de Hogwarts cochichando entre si, levando e trazendo recados de um quadro para o outro.

Fawkes, contudo, não estava lá. Ele vira a majestosa ave apenas uma vez, na Câmara Secreta, salvando sua vida e a de seu melhor amigo. Tão somente uma lustrosa pena dourada fazendo às vezes de caneta, ao lado do tinteiro. Dumbledore estivera escrevendo para alguém com uma das penas da fênix.

— Sente-se, senhor Weasley, a conversa será longa. — a mão direita de Alvo Dumbledore parecia uma árvore velha, os dedos eram galhos putrefatos prestes a cair, e Rony imaginou se realmente não despencariam pelo chão a qualquer momento. Um líquido espesso podia ser visto beirando à borda da taça, e vez ou outra Dumbledore bebericava o conteúdo, torcendo os lábios discretamente.

— Eu nunca imaginei que a situação fosse tomar proporções tão devastadoras. — O homem parecia cansado quando apoiou uma das pernas sob a mesa, sentando-se parcialmente, e fechando os olhos. — Temos muito trabalho.

— Estou sabendo das proporções alcançadas e da quantidade de trabalho pela frente. O que me confunde, diretor, é a forma como a guerra está sendo conduzida. — Rony estava longe de sua namorada e de seu melhor amigo. Todos direcionados para missões distintas e secretas. — Acho que pela demora em me chamar, e pela intenção de me enviar para tão longe, conforme o pedido em seu bilhete, eu tenha sido sorteado para receber a pior fatia do bolo.

Dumbledore sorveu um generoso gole da bebida esquisita, massageou a mão enegrecida e sorriu, transformando o ambiente em pura tranquilidade, a despeito do caos instaurado no mundo exterior. "Dumbledore sabe o que está fazendo", Hermione havia dito na última noite que passaram juntos, sob a clareira da floresta negra, alheios às criaturas que viviam ali e dos inimigos que rodeavam as imediações de Hogwarts dia e noite.

— Já ouviu falar neles, eu suponho — Dumbledore colocara-se em pé, e diante da mesa, ao lado do tinteiro e embaixo das cartas que pretendia escrever revelou o boletim informativo responsável pelo alvoroço entre todos os bruxos que lutavam contra Voldemort e seu exército.

O boletim muito se assemelhava a um encarte publicitário do paraíso. As ideias contidas nele não punham em descrédito os ideais de Voldemort, mas pareciam querer a paz definitiva entre todos os bruxos. Diversas medidas abordadas no texto, muito bem redigido, agradavam a Rony, a principal delas era a distribuição de alimentos sem custo algum a todos que comparecessem no endereço informado.

— Sim, mas não havia lido por completo. — Rony girou o folheto entre os dedos e encarou Dumbledore com descrença. — Embora a ideia de comer alguma coisa que não seja sanduiche de atum me agrade, não preciso ser Hermione Granger para sentir o potencial perigo que existe em uma proposta assim.

— Tenho bons motivos para acreditar que não agem diretamente em conjunto com as forças das trevas, mas são pessoas potencialmente perigosas. — Dumbledore falou pensativo.

— Todos acreditávamos que o senhor havia morrido. — Rony finalmente falou. — Por onde andou? Organizamos um velório, o enterro, choramos sua morte, enquanto você esteve por aí o tempo todo. — às vezes sentia raiva de todas as decisões tomadas por Dumbledore. Ele agia sozinho sem sequer levar em consideração as pessoas envolvidas em seu "jogo de xadrez".

—Entendo sua perturbação, jovem Weasley, pois a vi estampada nos olhos de Potter e da Senhorita Granger quando Minerva os chamou para uma reunião e ao invés da atual diretora de Hogwarts, eu apareci.

— Sim... eles me contaram, então não é como se fosse uma novidade para mim agora.

O jovem estava incomodado, uma vez que confiara em Alvo Dumbledore durante toda a sua infância e adolescência. Tinha sólidos motivos para estranhar a separação do trio, mas não conseguia colocar a desconfiança acima da culpa que sentiria caso negasse a participação em um momento tão memorável.

Estragos estavam sendo feitos, e isso se revelava não apenas no escritório de Dumbledore — que agora estava mais frio e escuro — mas também na humanização de todos aqueles que um dia ele retratara como semi-deuses em sua mente infantil. As instituições bruxas estavam desmoronando, o Ministério havia caído e tudo ficara ainda mais difícil desde então. Como não perderia a fé na realidade da qual fazia parte?

Rony olhou para o chapéu seletor e por alguns segundos imaginou como seria sua vida viesse de uma família trouxa, com pais e irmãos trouxas, sem a espera pela carta de Hogwarts. Pensou em Hermione e no quão linda ela estava na noite em que se despediu dele com um beijo cálido, após fazerem amor sob a relva pálida e seca da floresta Negra. Pensou em Harry e no abraço apertado seguido por um leve soco fraterno no ombro.

"Nos vemos em breve". Foi o que ambos disseram, em momentos diferentes.

— Eu aceito. — o brilho obstinado nos olhos de Rony traduziam a sede do jovem em fazer algo, não pelo heroísmo, mas porque de alguma maneira ele se sentia parte daquilo. — Seja lá qual for a missão, eu aceito.

— O chapéu seletor nunca se engana, Ronald Weasley. Você é uma pessoa de muita coragem — Dumbledore falou enquanto se aproximava de Rony, tocando-lhe a base das costas — Esteja pronto para enfrentar aqueles que se autodenominam concierges, os que possuem a chave da Porta.

O Diretor de Hogwarts estendeu a mão sã para Rony que, hesitante, aceitou o cumprimento amistoso, logo sentindo os dedos formigarem e uma forte ardência no punho. Dumbledore havia colocado em sua palma algo que se assemelhava à tal "folha de papel", ou pergaminho trouxa — nome criado por ele para se referir ao bloco de notas que Hermione fazia questão de carregar em sua bolsa.

Rony desfez a bolinha de papel que Dumbledore fez brotar entre seus dedos, sentindo as dobras se desfazendo à medida que revelava o conteúdo da mensagem ali redigida. No pedaço fino e de textura quase macia — não fossem as rusgas provocadas por alguém que amassara o papel para depois entregar a ele — pôde ler um endereço e as características da pessoa que estaria a sua espera. Enfiou o bilhete dentro do bolso da mochila e saiu sem se despedir de Alvo Dumbledore.

Dublin - Irlanda, 1998 – 7:45 AM

Ronald Weasley não era um homem que acreditava cegamente em divindades, mas entre os longos e espessos pingos de chuva, contemplou, em o mais absoluto silêncio, a Catedral. Não sabia ao certo se deveria fazer o sinal da cruz sob o peito – na verdade sequer tinha ideia de como se fazia aquilo – então apenas pousou a palma da mão direita no peito e abaixou a cabeça. Era um local belo e, embora construído por mãos humanas, carregava um toque de Deidade. Tal sentimento cresceu quando pisou no interior da imensa igreja e vislumbrou uma mulher de cabelos brancos que rezava, em balbucias, algo que deveria ser o tão conhecido "Pai nosso". Tinha um sotaque carregado, e ao lado, uma jovem, estonteante mantinha os olhos fitos no chão, contando os ladrilhos.

O belo xale de seda azul a tornava ainda mais angelical, quase parte das sagradas pinturas na abóboda da Catedral de St Mary's Pro. A senhora corcunda e visivelmente cansada colocou as mãos no ombro da jovem que, respeitosamente, cobriu os longos cabelos loiros. Elas não faziam parte daquele local, mas a anciã, que Rony presumiu ser a avó, ou mãe, era quem mais se esforçava, por parecer desejar limpar-se de todos os pecados cometidos durante toda a vida e, ele suspeitava, dos próximos que cometeria pelo tempo que ainda lhe restava.

—É uma bela igreja, não é mesmo, senhorita? — Rony não sabia como iniciar uma conversa com a jovem e bela mulher. Segundo o bilhete que tinha nas mãos, fazia parte dos planos de Dumbledore encontrar alguém em Dublin, na Catedral de St. Mary Pro, ele não imaginava quem seria, ou o porquê do encontro, mas ela cumpria todos os requisitos, e vestia o xale azul.

—Estou aqui a pedido de Daphne Greengrass. — ela respondeu tão fria quanto a cor azul do tecido que recobria os seus ombros. Rony observou que a senhora ao lado dela agarrava-se ao genuflexório¹ do banco de nogueira com tamanha força que os nós dos dedos ficaram brancos.

— Possui algum parentesco com ela? — Rony perguntou com estranheza, não falava ou via Daphne havia meses. Associou a pele clara e os cabelos loiros rapidamente aos traços de Daphne, e como a bela mulher dissera que sua presença ali se dava por um pedido da antiga aluna da Sonserina, precisava se certificar.

— Antes de qualquer pergunta que você possa fazer, saiba que eu não deveria estar aqui, e se me dirigi até este lugar é porque sou idiota demais por amar Daphne como se fosse minha irmã. — ela parecia conversar consigo mesma, pois não olhava para Rony. — Se tem algum juízo, sairá da rota planejada por Dumbledore e ficará longe do caminho dos membros da Porta. O Lord das Trevas não passa de uma criança perto daquele que detém a chave mestra.

Atônito, Rony olhou para todos os lados, crente de que estava preso em uma armadilha. Certamente a mensagem de Dumbledore fora interceptada antes mesmo que ele a entregasse e logo alguém o agarraria por trás o imobilizando num só golpe. Ninguém surgiu. Sorriu exibindo todo o descrédito guardado dentro de si desde a partida de Harry, o primeiro a deixar o trio.

— Mas que merda é essa? — Rony falou em tom ameaçador. Não tinha ideia do que aquele encontro significava e o desconhecido era assustador, ainda mais quando se tratava de uma missão cujas diretrizes seriam dadas pelo antigo diretor de Hogwarts, que todos acreditavam estar morto.

— Daphne sabia que você resistiria, mas ela está em posição muito pior do que a sua, então apenas vá embora, ou terei que fazer o que deve ser feito.

— Sinto muito, senhorita "eu-nem-sei-o-seu-nome", mas tenho uma missão a cumprir, queira Daphne ou não. — Weasley vociferou — Ela já escolheu em qual lado ficará nessa guerra, e não é o meu.

Alguns fiéis olharam para trás e exprimiram seus murmúrios de indignação pela profanação do templo. Em passos duros Rony caminhou até a saída da igreja e esperando uma orientação divina olhou para o céu, tomando para si os pingos da chuva que escorriam pelas bochechas, nariz e olhos. Sentiu que a mulher o seguira até o lado de fora, mas sem chegar até a calçada.

— O'Boyle — ela falou em tom manso, mas audível o suficiente para que Rony entendesse que ela estava se apresentando — Kayla O'Boyle. Pense sobre o que eu disse, ainda há tempo.

Silenciosamente ela retornou para o templo. No corredor olhou para o altar, fitou a imagem do homem de aparência sofrida pregado no madeiro, fez o sinal da cruz e pediu perdão pelos pecados que cometeria, já que não pretendia colocar os pés em igreja alguma dali em diante. Assim como Pôncio Pilatos estava lavando suas mãos, que em breve se sujariam de sangue inocente.

There's no surrender

And there's no escape


— Dias de liberdade! — Agosis festejava, abraçando Anthony Feggis e cumprimentando efusivamente Kayla, que chegara na metade do discurso longo e entusiasmado de Pertindum — A humanização do sistema carcerário no mundo bruxo é o primeiro passo para nossa inserção na economia global. Sabiam que o porta-voz do Ministério da Justiça nos informou que as condições carcerárias da Grã-Bretanha são excelentes? Segundo o nobre Dimitri Caleghari a punição da Corte é a perda da liberdade, tão somente! Para ele os regimes rígidos não levam à reabilitação, tampouco à diminuição das reincidências.

— E o preço a ser pago pela inserção econômica é dar o sabor da liberdade aos presos? Um custo alto, não acha? — Dixon questionou enquanto devorava um sanduíche de rosbife e queijo, seu café da manhã.

— Apenas alguns, meu caro — Agosis respondeu em tom pacificador, sorrindo ao observar a fila que se formava diante da porta do escritório onde Kayla promovia a triagem e dava acesso às fichas com os dados de cada prisioneiro — tal como um presente pelo bom comportamento pregresso e vindouro.

— Em breve colocaremos chocolates embaixo dos travesseiros de cada um. Tenho certeza que Feggis já pratica essa gentileza com alguns detentos. — Leon Dixon fez questão de encarar Anthony Feggis quando fez o comentário ácido. — Não vai terminar de comer seu pão, Feggis?

— Draco é um bom garoto, Dixon, se é isso que está insinuando. Aliás, quando começar a enxergar os presos como seres humanos, talvez você se transformasse numa pessoa menos amarga.

Anthony escondeu no bolso do casaco a metade do pão que não comeria e procurou Draco na multidão, talvez pudesse entrega-lhe o lanche discretamente. Malfoy estivera mancando menos nas últimas semanas, mas quando o viu saindo de sua cela notou que ele tinha um ferimento enorme no ombro, talvez pedisse para Hermione cuidar dele, já que Dixon dera provas suficientes de seu desagrado para com Draco.

— Meus amigos, deixem de bobagem e tratem de encarar essa nova fase do projeto com otimismo. Além do mais, os presos devem provar que possuem estadia e meios de prover o próprio sustento durante o período de liberdade. — Pertindum que envolvera Dixon e Feggis em um meio abraço, encarou a ambos ainda sorrindo — Não acho que Malfoy teria alguém para acolhê-lo, mas isso foge de nossa competência. Certo, cavalheiros? —Dessa vez o olhar foi direcionado especificamente a Anthony, que não falou mais nada, apenas enterrou o sanduíche ainda mais fundo no bolso do casaco.

— Prisioneiros 106.789! — Kayla chamou enquanto dispensava a primeira leva de presos que haviam sido designados para a primeira triagem.

A maior parte deles não obteria seus dias de liberdade por não possuírem bens, familiares, ou meios de subsistência fora de Azkaban. A outra parcela estava afogada em crimes cuja gravidade tornava moralmente impossível a concessão do benefício.

Malfoy, ao ouvir seu número ser chamado, preparou-se para enfrentar a frieza e sagacidade de Kayla. Faria perguntas à pocionista, tentaria colocá-la contra a parede, afinal ela lhe havia feito uma promessa e não cumprira, diferente de Granger, que parecia bastante empenhada em fazer algo. Draco valorizava uma boa e limpa negociação, de modo que o não cumprimento de um acordo era motivo suficiente para a pior das punições.

Enquanto passava pelos presos que aguardavam serem chamados, ouviu vaias e cochichos. Estava roubando a vez deles, furando alguns metros de fila, pois à sua frente havia, pelo menos, duzentos homens e mulheres, aguardando uma chance.

Para a surpresa de Draco era Hermione quem o aguardava e não Kayla, em seus braços uma generosa pilha de pergaminhos. Contemplando-a de frente pôde perceber que ela tinha a aparência de alguém que não dormia decentemente há dias. Não obstante, o minimalismo de sua maquiagem e a pouca vaidade em seu vestuário apenas ressaltavam os detalhes mais imperceptíveis da beleza escondida por anos atrás de uma muralha de livros. Ela tinha um olhar sério e uma ruga fina entre as sobrancelhas, mas não parecia irritada, ou incomodada.

— Eu pedi para Kayla me ceder a oportunidade de realizar sua triagem, Malfoy. Precisava falar com você. — Hermione falou antes que ele perguntasse qualquer coisa.

— Devo agradecê-la por isso? — Havia dúvida e não ironia na voz dele.

— Não sei, espero que me responda quando terminarmos essa conversa. — Hermione respondeu antes de respirar profundamente. De repente não tinha ideia do motivo pelo qual fora até tão longe para pesquisar sobre questões que não lhes diziam respeito— Tenho duas notícias.

— Uma boa e outra ruim? Já ouvi essa antes, Granger, então qualquer uma serve.

— Ambas são, no mínimo, interessantes — "Por que infernos suas mãos estavam suando?" Hermione pensou aflita só de imaginar que a presença de Malfoy estivesse provocando tais controversas sensações fisiológicas. — Estive no setor portuário, de onde partem todos os navios bruxos da Inglaterra. Ela espalhou na mesa minúscula, cuja finalidade era unicamente decorativa, o calhamaço de pergaminhos que estivera segurando desde a entrada de Malfoy na sala.

— Achou algo que chamou sua atenção? — ele ainda parecia desconfiado, mas sabia que Hermione não era conhecida pelo uso de truques nefandos. Era justa, apesar de tudo e independentemente de sua conduta, se mostrava, no final das contas, uma excelente parceira de negócios.

— Na verdade sim, mas é você quem me dirá se o que tenho aqui é útil, ou não.

Hermione visitara o porto pelo menos mais duas vezes. Harry nem sempre estava lá, mas deixava o caminho livre para que ela vasculhasse o que julgasse necessário. Ela encontrara mais registros sobre uma pessoa do sexo feminino que viajara para uma ilha cujas entradas não puderam ser reportadas.

Janice é um nome familiar para você? — ela perguntou e aguardou a resposta de Malfoy que demorou exatamente um minuto para dizer algo. — Ela foi registrada no porto algumas vezes.

Janice... — ele repetiu. Os cílios loiros tornaram-se ainda mais transparentes, estavam levemente úmidos. Malfoy não fazia o tipo emotivo, mas por poucos segundos Hermione acreditou que ele pudesse desabar sobre a sua ficha médica aos prantos e soluços. Ele não faria isso — Acho que ela quer me encontrar...

— Você a conheceu?

— Talvez. — Draco sussurrou — Tem notícias dela? – Ao invés de uma resposta ele fez outra pergunta. Se estivesse alucinando, jamais saberia, mas Hermione Granger conseguiu ouvir traços de dor na voz de Malfoy. Quem era Janice, afinal?

— Apenas os registros dos quais lhe falei. Ela esteve lá em determinado período, o que me faz acreditar que esteja viva, ou pelo menos estava até setembro de 1997. – Hermione coçou a cabeça, sentiu o couro cabeludo arder. Suas unhas estavam grandes demais. – A última visita foi há oito anos. Confesso que planejo ir até lá, ou pelo menos até o porto mais próximo.

Hermione percebeu que afetara Malfoy de maneira completamente atípica. De onde ela estava poderia até mesmo afirmar que ele parecia humano, e não o boneco de cera cuspidor de insultos. Ali ele parecia real, fervilhando entre memórias perdidas e emoções conflitantes.

— Quanto a segunda notícia — ela se viu obrigada a dizer, pois o tempo estava acabando e Draco não parecia ter a intenção de se manifestar — se conseguir provar para o Ministério e o Conselho de Aurores que possui meios de prover o seu sustento, ou de que ao menos terá um lugar para ficar, talvez consiga alguns dias de liberdade, sair e, quem sabe, tentar resolver seus problemas.

—Acha mesmo que eu conseguiria algo do tipo? — ele inquiriu com incredulidade, ainda distante em sua fala. Soltou o ar pelo nariz e continuou — Dixon me odeia, O'Boyle me odeia, você me odeia. Eu poderia fazer uma lista de todas as pessoas que me odeiam neste lugar, ficaria assustada com o tamanho dela.

— Eu não te odeio, Malfoy. — Hermione não esperava que aquilo saísse de forma tão profunda e amistosa. — Pertindum me mantém atrelada a você, por achar que seu envolvimento com o incêndio do antigo banco de sangue possa servir como pista para encontrar os membros de um grupo criminoso que vem realizando pequenas ações pró-Voldemort. Eu me permito tal conexão por acreditar que você tenha em suas mãos ao menos um indício da morte de Rony. São trocas justas, eu suponho, já que somos adultos, não precisamos de máscaras. — ela deslizou os dedos pela raiz dos cabelos. — Estou disposta a auxiliá-lo, tornando possível a sua saída temporária e conto com Feggis nesse quesito, ele ficou feliz em ajudar.

— Claro que ficou — Malfoy sorriu, como quem adivinhara que Feggis faria alguma coisa para ajudá-lo — Acho que deve imaginar o quanto eu gostaria disso — ele emendou em voz baixa, aparentemente agradecendo a oferta.

Hermione levantou-se, atordoada. O período estipulado para a triagem estava acabando e sua mente não parecia dar conta da quantidade de pensamentos que vagavam transtornados. Malfoy, por sua vez, estava distante, embora em seus olhos houvesse um brilho obstinado. Ele estava limpo, cheirando levemente a sabonete, sinal de que Feggis vinha cuidando dele ainda.

— Claro. Então...É...— Hermione xingou a si mesma internamente. Não sabia porque queria prolongar o assunto, uma vez que já havia dito tudo o que planejara — Se precisar mais alguma coisa, procure por mim no… escritório.

— Eu irei — ele assentiu.

Sem provocações, ou insultos, ela imaginou se Malfoy estava em pleno uso de suas faculdades mentais.

— Também tenho medicação para queimadura. — Ela sugeriu, sentindo-se ainda mais idiota por querer que ele permanecesse ali.

— Agradeço. — Ele respondeu enquanto se levantava. Feggis estava batendo na porta informando que o tempo da triagem havia terminado.

— Está tudo bem, Malfoy? — Agradecimentos certamente não faziam parte do repertório de Draco Malfoy, e ele precisava ser o Malfoy de Hogwarts, pois só assim ela conseguiria manter a velha postura adotada nos tempos de escola.

Ele não respondeu, apenas acenou com a cabeça. Malfoy tinha emoções. Draco Malfoy era um ser humano, apesar de toda a grotesca casca familiar que ainda o cobria, e a tal Janice era parcialmente responsável pela descoberta que arrebatou a estabilidade e profissionalismo da medibruxa.

Hermione passou então por ele a fim de abrir a porta e finalmente dispensá-lo, certa de que havia terminado suas tarefas para o momento, enquanto caminhava não pôde deixar de sentir as notas olfativas de Draco Malfoy. Sabonete, terra úmida, café e fumaça. Foi o suficiente para que sua pele se arrepiasse por inteira. Flagrou-se pensando, por um átimo de segundo, como seria se ele tivesse perdido o controle no banheiro, quando a viu nua.

Voltou para sua mesa, atrasando a partida dele, e fingiu procurar alguma coisa entre os objetos empilhados nela. Deslizou os dedos pelos pergaminhos que havia deixado ali, fingindo prestar atenção nas informações inúteis contidas nas páginas amareladas. Malfoy ainda estava na sala e os presos começaram a reclamar do lado de fora.

Então ele se moveu, pelo que Hermione rezou para que não fosse em direção à porta, e assustou-se com o alívio que sentiu quando notou a presença dele cada vez mais próxima. Seus olhos percorriam os detalhes em alto relevo da pasta onde guardava toda a papelada que reunira sobre a Ilha de Abraxas quando sentiu as mãos de Malfoy tocando-lhe a nuca exposta, desfazendo o coque com delicadeza.

Então veio o corpo dele, o peitoral tocando sutilmente as suas costas. O nariz comprido e ligeiramente frio se encaixou atrás de sua orelha. Lábios e barba roçaram sua pele, e ela precisou se apoiar no braço da cadeira à sua frente para não perder o equilíbrio, pois a compostura não poderia ser garantida.

— Obrigado. —Ele falou tão baixo que Hermione sentiu cócegas nas orelhas.

A boca dele trilhou exatamente o mesmo caminho que os dedos, por sua nuca. Malfoy beijou a lateral de seu pescoço e escorregou a mão por seu ombro e seu braço, alcançando a base da cintura.

Ela não queria se virar e acabar dando de cara com a pessoa que fazia seu corpo responder de forma tão leviana, mas a verdade era que não existia nada de racional passando por sua mente naquele exato momento. Não havia passado ou futuro, Malfoy, Granger, Azkaban, Hogwarts ou Rony, apenas a respiração acelerada e a dor pulsante de seu desejo, e por isso ela girou os calcanhares, enfrentando o inimigo de frente.

"Confraternizando com o inimigo" foi o que veio à mente quando sentiu os lábios dele encontrando os seus, afastou a frase dita pelo homem de sua vida, pois estava diante do inimigo de sua existência e ambos não poderiam permanecer no mesmo lugar.

A despeito da natureza controversa o toque era indolor, macio, úmido e maleável. Beijá-lo era o ato pecaminoso que sua alma ainda teimava em resistir, embora o corpo já estivesse completamente entregue. A barba mediana, os dedos frios e rudes, ásperos e desesperados ao toque. Malfoy tinha a avidez de um homem condenado à escassez eterna do toque caloroso de uma mulher. Agia como alguém que não se alimentava há dias e acabara de encontrar um banquete real. O sabor do café que ele havia tomado em alguma parte do dia ainda restava em sua boca, deixando um rastro de amargor nos lábios de Hermione.

Entre o voluntário e o involuntário, suas mãos trilharam o caminho mais longo até os cabelos – já não tão curtos – dele, percorrendo a espinha dorsal, sentindo cada ondulação óssea. Sentir dor era parte do processo, os lábios inchados e os olhos em chamas, os dentes se chocando vez ou outra. Fisicamente, talvez nem fosse tão doloroso em sua completude, mas representava sua desgraça moral, e isso era um milhão de vezes pior.

Quanto calor poderia ser armazenado ali, nos braços de Draco Malfoy, que em sua imaginação tinham a obrigação de serem frios como mármore? Na estranha imensidão do toque que jamais poderia ter acontecido, ela permitiu-se o deslize, o erro, pois jamais imaginara que o ato condenável poderia ser tão prazeroso.

Hermione não conseguiu evitar o gemido brotando do fundo da garganta quando ele mordeu seu lábio inferior e afundou uma das mãos em seu couro cabeludo, deslizando os dedos por entre os cabelos que agora pendiam sobre os ombros. Ela escorregou as mãos pelo peito dele, descendo até o quadril e puxando o cós frouxo da calça, trazendo o corpo de Malfoy para mais perto. E ali surgia mais uma evidência da natureza humana de Draco Malfoy. Ele pulsava. O coração em descompasso e o calor irradiando por todos os lugares de seu corpo cada vez que enterrava a língua contra a sua, eram elementos suficientes de que havia muita vida nele. Ele encaixou uma das pernas entre as dela, e a fez sentir as reações de seu corpo, segurando o rosto miúdo com ambas as mãos sem parar de beijá-la,

Os presos começaram a gritar do lado de fora, e Feggis bateu na porta pela quinta vez, o que não foi suficiente para que parassem o que estavam fazendo. Hermione se desfazia com o beijo dele. As pernas bambas poderiam despencar a qualquer momento se ela não adotasse uma postura firme, mas o que ela queria mesmo era continuar, para talvez arrancar as roupas dele, arranhá-lo e permitir-se sentir tudo o que ele parecia disposto a oferecer. Tudo que ela conseguia fazer, no entanto, era sentir a língua morna deslizando por seu pescoço e clavícula.

Draco sussurrou um palavrão quando Feggis deu fortes socos na porta chamando por ambos. Hermione com dificuldade se soltou dos braços dele. Malfoy não se moveu um milímetro sequer, mas parou de beijá-la por um instante. Respirando fundo várias vezes ela o afastou lentamente antes de retornar ao estado de normalidade, se é que em algum momento alcançaria tal resultado.

— Estamos quase acabando, Anthony. — ela disse, e quando ouviu a própria voz ecoando dentro da sala minúscula foi transportada novamente à realidade. Hermione abaixou o rosto recostando a testa contra a bochecha dele, e continuou tentando controlar sua respiração que mesmo depois de alguns segundos ainda não voltara ao normal.

— Acho... É melhor... Você... — Ela gaguejou. Nada de útil sairia de sua boca enquanto não se afastasse por completo dele.

Malfoy assentiu com a cabeça e deu nela um último beijo, na altura da fronte, aspirando longamente o perfume de sua pele. Ele se afastou alguns centímetros e Hermione finalmente reuniu coragem para olhar o seu rosto. A pele de Draco estava corada, seus lábios inchados e marcados pela fricção do beijo, a expressão era desconcertada e profunda, ela não conseguiu decifrar o que se passava pela mente dele.

— Até mais — Draco disse, a voz um pouco embromada, fingindo que nada mudara, e falhando com louvor.

— Ér - É... Até — e ela passou a mão pelo próprio corpo, ainda em chamas, sentido as pernas, braços, nuca e lábios formigarem, como se cada trecho tocado por ele estivesse em curto circuito. Conforme ele se afastava, ela sentia a cálida brisa do inverno, embora o sistema de calefação estivesse funcionando perfeitamente, era como se o corpo dele fosse uma fonte mais confiável de calor. Malfoy caminhou para trás em direção à porta, em nenhum momento deixando de olhá-la nos olhos.

Hermione ensaiou algumas palavras, mas ele já não estava mais lá quando ela finalmente conseguiu processar o ocorrido e soltar um palavrão em voz baixa, plenamente ciente de que o seu corpo estava lhe contando verdades que nem mesmo uma das mentes mais brilhantes de Hogwarts era capaz ocultar.

This is a wild game of survival

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