Capítulo 15 - Maniqueísta
Onde há fumaça, há fogo, ou um feitiço "bombarda" mal executado. Naquele dia a fumaça escura e densa indicava um incêndio do qual ele certamente ele se orgulharia pelo resto da vida. Pelo menos era o que pensava Draco Malfoy, aos dezoito anos, no meio de sua breve carreira como comensal.
As chamas subiam lentamente até atingir os primeiros galhos das árvores maiores. Era o terceiro acampamento destruído e o trabalho estava apenas começando.
— Corra garoto! Atinja todo e qualquer objeto que se movimentar. — Rabastan Lestrange berrava a plenos pulmões enquanto passava por entre as árvores em alta velocidade, com a varinha em punho, desferindo todas as maldições imperdoáveis sem sequer mover os lábios. Ele seguia uma ordem e parecia se divertir. Imperio, e a vítima faria tudo o que fosse ordenado. Lestrange gostava de colocá-los de joelhos, quando acordavam do transe, eram alvejados pela rajada vermelha e dolorosa. Cruciatus, e se contorceriam em profunda agonia. Quando se cansava, finalizava o trabalho. Avada Kedavra, e os olhos tornavam-se estáticos, a vida se esvaia do corpo inerte e desfalecido.
A máscara tornava sua voz abafada e assustadoramente grave. Draco sempre gostara mais de Rabastan do que Rodolpho, justamente pelo fato de que o primeiro não era casado com sua tia, o que fazia dele uma pessoa muito mais estável e confiável, na medida do possível, é claro. Ao fim de cada missão ambos se jogavam sobre a vegetação quase morta, observando de longe o fogo completar sua jornada e consumir tudo o que encontrasse pela frente.
— Observe — o homem apontou para o céu após longos minutos do mais absoluto silêncio. Sua voz já estava normal, pois havia retirado a máscara. Draco olhou para o céu e seguiu o traçado já conhecido e a localizou. — Ursa maior! — Lestrange falou em voz baixa, com tamanha reverência que Malfoy imaginou se ele começaria a rezar, porque se começasse, o garoto faria questão de estuporá-lo, independentemente das consequências de suas ações.
— Os gregos contam que Calisto era a companheira preferida de Artémis, deusa da caça e que, assim como ela, tinha feito voto de castidade. — Rabastan continuou, ignorando a careta de Malfoy — Zeus, incontrolável e asqueroso como sempre, utilizando como desculpa uma suposta paixão avassaladora, violentou a jovem Calisto, pelo que Àrtemis se enfureceu e a expulsou do território das Ninfas. Hera, mulher ciumenta, e provavelmente alheia ao fato de que seu marido era um safado megalomaníaco sem escrúpulos, perseguiu Calisto, transformando-a numa ursa e tirando-lhe a voz, para que ninguém a socorresse, inclusive, Zeus.
— E Calisto morreu em algum momento da história, porque isso é uma tragédia grega. — Draco resmungou. As histórias de Rabastan geralmente não tinham qualquer lição de moral, então alguém morreria no final, ou ele simplesmente ficaria calado, até que Malfoy se cansasse de esperar alguma frase de efeito e deixasse o silêncio invadir a conversa.
— Calisto se viu obrigada a perambular pelas florestas, grávida, transfigurada em ursa — o homem continuou. — O filho que ela gerara foi criado por Licaonte, seu pai, e anos mais tarde, enquanto caminhava entre as árvores, Calisto o viu, e desesperadamente desejou poder abraçá-lo. Arkas, não sabendo que ela era a sua mãe, levantou a lança para matar o animal que o atacava. Zeus, observando de longe, desviou o golpe, transformou Arkas em um urso menor e levou ambos para o meio do céu, transformando-os em constelações, Ursa Maior e Ursa Menor.
Draco esticou as pernas, dobradas há algum tempo, e deixou o corpo relaxar sobre o solo nada confortável. Estava cansado e sonolento, perdendo o controle tantas vezes que as duas doses diárias de poção calmante não estavam fazendo efeito algum. Rabastan continuava contemplando as estrelas no céu. Parecia refletir em algo importante.
— Sabe, Draco — Malfoy teve a atenção capturada pela menção de seu nome, Rabastan usualmente se referia a ele como o "pequeno Malfoy", "o garoto", ou, "o mini comensal" — sempre invejei o seu nome, não apenas o seu, mas o de todos os Black. Sua mãe me disse que jamais teria outro filho, pois dizia que onde existem irmãos, existe discórdia.
— Fico feliz que ela tenha pensado dessa maneira. — Draco afirmou sem pestanejar. — Nós provavelmente atearíamos fogo um no outro.
Rabastan sorriu, os dentes a mostra. Draco conhecia aquela expressão, o homem estava se divertindo com cada minuto da conversa, embora Malfoy não entendesse muito bem o motivo.
— Seu pai sempre gostou de brincar com fogo, e com sangues-ruins, principalmente aquelas que tivessem a beleza de uma ninfa. — Lestrange provocou — Pergunte para ele o que aconteceu com Samantha, a Ursa Maior.
Malfoy fraziu o cenho, deveras ofendido com a constatação de Rabastan. Sentiu o sangue subir pelas bochechas, cerrou o punho e franziu o cenho. Por fim a história que contara tinha algum objetivo, mas logo percebeu que não obteria êxito em extrair algo de útil a partir das indiretas.
— Cuidado com o que fala, Lestrange. — Malfoy falou em tom ameaçador — Meu pai o mataria se ouvisse essa insinuação.
Rabastan riu tão alto que Malfoy sentiu-se na obrigação de tapar-lhe a boca. O silêncio da floresta certamente traria alguns curiosos para a região, ou pior, grupos grandes de aurores. Draco não era idiota, números ainda possuíam alto nível de confiabilidade e através de um cálculo básico sabia que, nas condições em que se encontravam, cansados, feridos e famintos, seriam presa fácil para qualquer um que aparatasse nos arredores.
— Shhh... Quer que todos os aurores do país nos encontrem. — Draco sussurrou. — Aiii!
Rabastan abocanhara os dedos da mão de Malfoy e continuou rindo, dessa vez, portanto, do olhar enfurecido do garoto que alisava o local onde estavam cravadas as marcas de dentes. O homem tirou um saco de tecido do bolso e puxou alguns itens de dentro dele: uma carta e um punhal cravejado de rubis.
— Sei que gosta dessa cor, seu grifinóriozinho de merda!
Draco não evitou o sorriso, nem o chute nos pés de Rabastan. Vermelho era sua cor favorita e o punhal ainda estava afiado, não poderia ter em mãos algo melhor, considerando que em breve se tornaria um assassino condecorado. Embora preferisse a varinha e o modus operandi tradicional, estar duplamente protegido não lhe parecia má ideia.
— Feliz aniversário. É uma relíquia de família, creio eu. Seu pai pediu que eu entregasse antes.
Mentira. Lucius não faria aquilo, pois sua principal característica era agir friamente. Em sua concepção, as emoções nublavam todo tipo de ação racional, portanto, não comprometeria a missão daquela maneira. Malfoy tinha certeza de que Rabastan escrevera aquela carta e, por alguns minutos, ele desejou ser filho de um Lestrange.
—Obrigado, Rab. Você está bem adiantado... Dizem que dá azar comemorar antes — foi a única coisa que conseguiu dizer, sentindo-se um idiota logo em seguida. A constatação tola o fizera se sentir infantil demais.
— Uma ova! Já estamos atolados em má sorte. O importante aqui, garoto, é o seguinte: ou você é o assassino, ou você é o assassinado. Matar alguém sem varinha é o batismo de todo comensal, não há como escapar depois que a marca crava sua pele. A morte te perseguirá pelo resto da vida. — Rabastan fez o símbolo da cruz sobre a cabeça e ombros de Malfoy e, pela primeira vez, sorriu genuinamente.
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Era sempre um desafio perambular pelos corredores vazios do St. Mungus quando a noite caia, o horário de visita cessava e todos dormiam solitariamente, ou com seus respectivos acompanhantes, se a condição financeira lhes permitisse tal luxo. Os dois únicos sons que se propagavam pelo vazio interminável eram o tic-tac do relógio de parede e, a cada dois segundos, o bip dos monitores multiparâmetros, informando a frequência cardíaca, o traçado de eletrocardiograma e a saturação de Oxigênio.
Na sala de espera havia o jornal que monopolizava as informações no mundo bruxo "O Profeta Diário". A notícia que estampava a primeira página falava sobre o clamor popular pela execução de alguns presos. Hermione preocupava-se com tal senso de vingança coletiva. A democracia era importante, isso era indiscutível, mas a voz do povo nem sempre representava a voz de Deus, ao menos não pelo que Hermione ouvira do conceito de Divindade nas aulas de catecismo, fortemente relacionado à justiça, mas também ao amor incondicional.
Bruxos de todas as camadas da sociedade portavam-se como animais diante do espírito de vingança e Hermione temia que a ideia de extermínio se propagasse com força se o desejo de todos fosse atendido.
A notícia da liberação de alguns presos fora o estopim dos protestos que vinham sendo planejados desde que o Gringottes apresentara dados bancários falsos e aplicara taxas abusivas sobre a movimentação e saque dos depósitos. A única instituição autorizada pelo Ministério da Magia a movimentar o dinheiro de milhares de bruxos lidava com a crise de maneira injusta, prejudicando a circulação dos ativos financeiros e emprestando toneladas de galeões todos os meses mediante juros exorbitantes.
Na coluna semanal de Mariam Deijavick, economista de renome no mundo bruxo, a previsão era de que as datas comemorativas aqueceriam o mercado, mas, diante de tamanha insegurança no cenário político e econômico, soltar criminosos reduziria drasticamente o número de pessoas nas ruas, e o comércio seria o maior prejudicado.
Hermione sempre detestara a visão simplista de Deijavick, cujo trabalho consistia em falar o que o povo queria ouvir. A opinião das massas a seu favor, como todos sabiam, lhe conferiria grandes vantagens nas próximas eleições ministeriais, cargo que ela almejava desde o dia em que aprendera a falar. Os boatos eram que Mariam dormia abraçada com uma toga, ensaiando o discurso da vitória e acordava penteando os longos fios avermelhados como se estivesse pronta para o próximo debate.
A ala de obstetrícia era o lugar menos movimentado àquela hora, exceto pela presença de uma mulher de meia idade em um dos quartos silenciosos, bebericando o líquido amarelo esverdeado que Hermione julgou ser chá. A enfermeira que se dirigia à a paciente com ternura espantou-se ao notar a presença da medibruxa, provavelmente não esperava encontrar alguém naquele horário.
— Boa noite — a mulher lançou um olhar confuso para Hermione — O que faz aqui tão tarde, senhora?
A resposta foi tão rápida quanto ensaiada:
— Preciso fazer uma visita ao laboratório para entregar algumas amostras de um paciente ao Dr. Ryan Barnes — Hermione mentiu. Mostrou a credencial e sorriu suavemente para a enfermeira. A bruxa vestida com macacão azul checou a credencial e, muito simpática, retirou um molho de chaves do bolso e entregou a maior delas para Hermione.
— Obrigada... Hum... Sierra. — Hermione olhou discretamente para o crachá da enfermeira. Sierra não tinha mais do que dezoito anos, aquele devia ser seu primeiro emprego. Certamente não colocaria em cheque a credibilidade da famosa medibruxa que tinha o nome estampado em quase todas as colunas de revista.
— A senhora gostaria de deixá-los comigo? O Dr. Barnes está um pouco ocupado — ela sugeriu como se titubeasse na decisão de entregar a chave. Seu sorriso era expansivo demais e Hermione não estava de bom humor.
— Eu prefiro entregar em mãos, se não se importa. — Hermione falou com firmeza.
— Tudo bem. Acho que a senhora sabe onde fica a sala dele, certo?
—Sim, eu sei. Obrigada — Guardou a credencial na bolsa, sentindo um gosto amargo dançando por sua língua. O amargor estava lá há meses, desde quando suas papilas gustativas saborearam os lábios de Malfoy. Ela sabia que o gosto não tinha nada de fisiológico, portanto, não sairia tão fácil, não importava quantas vezes ela escovasse os dentes.
Hermione seguiu pelo caminho já conhecido. O responsável pela seção, Dr. Ryan Barnes— oficialmente medibruxo legista — ficara mundialmente conhecido após a façanha de reverter danos permanentes causados pela maldição cruciatus. Fora transferido do Yellow Pitstone para o St. Mungus assim que a guerra terminara. Aos vinte e nove anos era considerado um dos médicos mais conceituados do mundo bruxo, detentor do cargo de chefia dos laboratórios e da Ala de Danos Permanentes.
Quando bateu na porta indicada pela placa com seu nome – lustrosa e prateada, as letras gravadas em baixo relevo – esperou que ele fosse demorar para atender, tendo em vista que não esperava visitas àquela hora da noite. Todavia, ela se enganou, e Barnes abriu a porta rapidamente, sorrindo, como se, de fato, estivesse esperando por ela.
Barnes era um homem alto e distinto, adorava charutos e por isso seus dentes tinham algumas discretas manchas amareladas. Por baixo do jaleco branco ele trajava uma fina camisa de algodão egípcio e calças costuradas sob medida. Era uma pessoa de aparência nobre, porte elegante e boas maneiras. Hermione saíra com ele algumas vezes, mas nunca ultrapassou a barreira dos beijos e carícias convidativas, pois Ryan Barnes, em sua subconsciente opinião, era uma tentativa mal feita de preencher o vazio deixado por Rony, e acalmar a luxúria que, vez ou outra, lhe batia à porta.
— Ora, veja só! Se não é a realeza grifinória, heroína de guerra, filantropa, anjo sem asas do mundo bruxo. Que bons ventos a trazem ao submundo deste hospital? — Barnes adorava perder tempo com piadas e provocações que o faziam parecer um garoto de quinze anos. Ela não estava interessada em rodeios ou jogos, portanto, respirou fundo, colocando uma mecha fina do cabelo para trás da orelha e decidiu ser tão direta quanto fosse possível.
— Ryan... — O homem arregalou os olhos. Algo no tom de voz de Hermione capturou sua total atenção— Preciso de um favor.
— Espero que não esteja interessada no que estou pensando que esteja interessada. — Barnes sorriu com malícia, detestava quando ela usava o tom sério e urgente — Não acho que este seja o lugar mais apropriado, Hermione. Eles certamente nos ouvirão.
Ryan Barnes apontou para a imensa fileira de estruturas metálicas reveladas por um feitiço proferido em grego, pelo que ela pôde identificar. Inúmeras gavetas com placas identificadoras tornaram-se visíveis e Hermione soube de quem ele estava falando. Os mortos. A temperatura caiu severamente e Barnes iluminou os vãos existentes entre os chamados "armários de autópsia".
— Gostaria de poder participar da brincadeira, mas deixarei para outra oportunidade. Você é o único que pode me ajudar a tratar um paciente — ela desviou o olhar por medo de denunciar suas reais intenções. O fato era que Hermione não conseguia mais pensar em Malfoy apenas como um paciente.
O medibruxo ficou mais sério, desencostando-se da porta. Caminhou até ela, dando a volta na mesa, parando ao lado do arquivo em que guardava relatórios e documentos de seus pacientes.
— Em que posso ajudá-la? — ele perguntou relutante e completou a frase logo em seguida — se é que posso ajudá-la.
— Preciso dos relatórios completos da autópsia de quatro pessoas, e que me autorize a analisar duas amostras de sangue em seu laboratório.
Hermione caminhou até o lado oposto da mesa e sentiu os olhos dele presos em sua nuca. Quando se virou, encontrou-os com os dela. Barnes franzira o cenho. Ambos sabiam que aquilo era o ápice da ilegalidade.
— Muffiato — Hermione, cautelosa, proferiu o feitiço e chegou mais perto de Ryan segura de que não seriam ouvidos — Entenda como uma forma de protesto pelo Ministério nunca ter apoiado a sua iniciativa.
O medibruxo protocolara o pedido de inclusão do laboratório como uma das especialidades do St. Mungus, mas recebera uma negativa parcamente justificada. Embora o Banco de Sangue ainda estivesse funcionando, ninguém dava a devida importância ao local e não eram raras as vezes que a casa sofria intervenções de medibruxos, ou membros do quadro diretor do hospital, os quais discordavam dos métodos e acreditavam que o sangue poderia trazer de volta doenças há muito erradicadas.
Barnes cerrou os olhos, parecendo avaliar se Hermione o estava manipulando. Ela sabia que estava, e forçou a consciência a acreditar que suas motivações eram nobres, fazer justiça.
Quando descobrisse o que era de fato justo.
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Je suis bonne foi
1997
A música era suave e ritmada. O rádio de pilhas era o conforto das noites incertas e ela gostava de ouvir a voz de Charles Trenet com alguns chiados, calma e profunda. Trabalhar sem a influencia da cafeína tinha seus benefícios, ela admitia. Podia aproveitar ao máximo a experiência sonora, enquanto organizava calmamente o próprio bloco de notas.
Rony, assim como Harry, estava trabalhando temporariamente como auxiliar do esquadrão de aurores. A guerra trouxera a urgência, pois as mortes não davam trégua e os desaparecimentos cresciam exponencialmente todos os dias. Não havia tempo para aulas complementares de Defesa Contra as Artes das Trevas, apenas o empirismo do campo de guerra.
O salário era ridiculamente baixo, o Gringottes – monopolista entre as escassas instituições bancárias do mundo bruxo – havia cortado os juros pela metade, e todos temiam uma recessão sem precedentes. Hermione tinha certeza de que enquanto dividissem as despesas entre quatro pessoas, conseguiriam ao menos suprir as necessidades básicas, mas tal otimismo não durou muito, pois guerra também revelara o lado oportunista dos comerciantes, de modo que a comida era vendida pelo triplo do preço usual. Muitas vezes sequer tinham alimento suficiente para que preparassem o jantar.
Rony, contudo, não se deixava abalar. O sorriso exibido pela face salpicada de sardas e manchas de sol era luminoso, carregado de uma esperança que Hermione sequer se lembrava de ter experimentado algum dia em sua vida. O ponto mais brilhante na densa escuridão na qual o mundo estava envolto.
Naquela noite, Hermione deixara as malas arrumadas, pois ela, Rony e Harry partiriam rumo ao refúgio dos Weasleys, "A Toca". Gina não os acompanharia. Havia conquistado com muito custo um emprego medíocre e temporário como secretária de Blaise Zabini, o que a colocava fora da zona de perigo devido a neutralidade de seu novo empregador em relação à guerra, mas, em contrapartida, a submetia aos frequentes assédios do chefe.
—Não precisa trabalhar lá — Hermione escutou a voz de Harry na cozinha enquanto dobrava algumas camisetas de Rony e as colocava na mala. Estavam na casa de Sirius há dois meses, mas todos sabiam que já não era mais seguro ficar ali. Ele voltaria em breve, para que pudessem aproveitar alguns dias na companhia um do outro antes de encontrarem Dumbledore e as missões lhes fossem delegadas.
—Sim, eu preciso trabalhar, Harry, assim como todos aqui. Lá ou em qualquer outro lugar, porque não posso escolher. Não temos previsão de melhora e todos os dias são anunciados mais desaparecimentos, mortes, ou ficamos sabendo de novos adeptos à marca negra. Sabia que Colin Creevey foi morto semana passada? — a voz de Gina estava embargada, e Harry pareceu refletir. Desprovido de argumentos ele diminuiu ainda mais o tom de voz, e Hermione já não conseguia ouvir sobre o que eles estavam falando.
Absorta nos próprios pensamentos, Hermione sentiu o corpo todo formigar quando as mãos fortes e quentes de Rony enlaçaram sua cintura por debaixo da camiseta do pijama.
— Achei que fosse chegar mais tarde — Hermione sussurrou. Respirou fundo na tentativa de liberar todo o peso invisível colocado em seus ombros por Rony e Harry. A responsabilidade e o medo do dia seguinte eram os piores companheiros da jornada heroica, mas nada romântica, que estavam trilhando. Os livros deveriam ser carregados por ela, as poções, os curativos, os feitiços na ponta da língua. Absolutamente tudo, e tal carga afetava toda a maneira como lidava com a guerra.
— O Gringottes está sitiado, então fomos todos levados para o centro de Londres hoje. Dezesseis pessoas foram mortas e eu matei uns três comensais, Mione, mas acho que meu feitiço atingiu mais algumas pessoas...Eu..só não quis olhar. — Rony fechou os olhos, não conseguiu completar a frase. Os cílios alaranjados estavam úmidos e Hermione girou o corpo, abandonando a atividade de organização da mala.
—Se eles pudessem, não hesitariam Ron. — Hermione falou, deslizando as mãos pelo rosto do namorado, atentando-se a cada detalhe da expressão cansada e vazia. Tentaria consolá-lo de alguma forma, embora soubesse que aquela era uma tarefa que beirava o impossível. Sentia uma dor de cabeça surgindo e irradiando-se pelas têmporas, certamente era fome. — Eles te matariam se tivessem a chance.
— Lilá foi morta hoje, na minha frente ...um punhal no pescoço. — ele parecia transtornado — Nós deveríamos lutar apenas com nossas varinhas! Quando foi que isso se tornou uma chacina? É o fim do mundo...
A humanidade sempre se preocupara com o fim do mundo, como seria se o lugar que costumavam chamar de lar desaparecesse e todos morressem repentinamente. Hermione sentia que o mundo acabava todos os dias, desde sempre, lenta e gradualmente – assim como os seres humanos que residiam nele – as guerras apenas aceleravam o processo.
— Eu tentei. Juro que corri o mais rápido que pude para salvá-la, mas não consegui. — Rony tinha os olhos marejados, o ódio inundava a íris azulada. — Não esperava menos de Malfoy. Ele nunca foi boa coisa...
Hermione engoliu em seco. Todos sabiam que Draco Malfoy havia se tornado um comensal, mas o ato de tirar a vida de alguém que um dia fizera parte de seu convívio parecia, ao menos para ela, inconcebível. Matar era inaceitável, e saber que ele o fizera tão cruelmente tornava o ato ainda mais reprovável.
Duas batidas na porta entreaberta anunciaram a presença de Harry. Os olhos estavam vermelhos e ele, por mais que tentasse transparecer o contrário, tinha o semblante fortemente abatido. Não podia se expor na guerra, pois era parte importante para o grand finale. Se Potter morresse, estaria tudo acabado, portanto, ficaria escondido, trocando o fiel do segredo de sua localização a cada duas semanas. Sua missão era, basicamente, ser uma peça que se movia periodicamente sem de fato realizar feitos importantes.
— Dumbledore está muito doente. — Harry falou num fio de voz, quase sem forças para elaborar algo menos chocante, dadas as circunstâncias. A notícia recebida dizia que o Diretor de Hogwarts se encontrava em estado semi vegetativo. — Uma Horcrux o envenenou enquanto ele tentava destruí-la...Mas ainda estamos no páreo e venceremos essa.
Ele soou tão mecânico e artificial que Hermione quase riu, não fosse a situação complicada e o fato de que ninguém ali estava tentando ser engraçado.
— Ele está doente, não morto. — Rony tentou reforçar o otimismo do amigo, fazia mais o tipo dele do que o de Harry. — O plano continua, embora tenhamos que nos empenhar ao máximo, nada mudou. Certo, Mione?
— Certo! — ela disse com firmeza, mas não pôde evitar o questionamento que permanecia insistente em sua cabeça — Quem te deu essa notícia, Harry? E desde quando sabe disso?
Ele parecia confuso, até mesmo incrédulo, como se, de certa forma ponderasse a credibilidade da história, ou a fonte.
— Zabini contou para Gina— Ele disse entre dentes — quando ofereceu um emprego a ela.
— E você a proibiu, obviamente — Rony emendou, como se fosse evidente que Harry impediria a namorada
Harry sentou-se no chão e esperou que os amigos o acompanhassem, como se aquela fosse a última reunião do trio de ouro, eles o fizeram. O momento era solene, carregado dos mais diversos significados, eles poderiam não retornar, ou a guerra acabar bem para o lado de Voldemort. Tudo, absolutamente tudo, poderia acontecer no intervalo entre a partida de cada um deles para a missão designada por Dumbledore e o último suspiro de Harry Potter, ou do Lorde das Trevas.
— Não, Ron, eu jamais proibiria. Gina é, e sempre será, uma mulher livre. Nós já discutimos isso, e está tudo bem. — ele suspirou, demonstrando que a aceitação fora dolorosa — Blaise não tomou partido na guerra, mas conhece pessoas que certamente guardam informações importantes. Sou o único aqui cujo plano elaborado por Dumbledore não é secreto, então já é ruim o suficiente ter as mesmas funções que uma porta e aguardar ser usado como, não quero que ela se sinta da mesma maneira, afinal, esse é o meu fardo.
O quarto foi preenchido pelo silêncio e Gina surgiu na porta carregando uma bandeja com pedaços de algo que poderia ser um bolo de maça e canela, se não fosse a supressão de alguns ingredientes, como a canela e os ovos. Aquela havia sido mais uma das tentativas de transformar as maçãs desidratadas que Sirius deixara escondidas no sótão em algo tragável.
— Estou sem fome, Giny... Obrigado— Rony falou torcendo o nariz — Meu corpo precisa de algo além de maçãs. Espero encontrar algum lago na região para onde vou, assim conseguirei pelo menos algumas sardinhas.
— Sardinha é um peixe de água salgada, Ron — Gina respondeu em tom zombeteiro – e até onde sei, bolo de maçã combina com chá, que é tudo o que temos no momento. Aliás, é tudo o que teremos enquanto a guerra continuar.
Rony revirou os olhos, levantou-se subitamente e começou a enfiar as roupas de qualquer jeito na mala. Parecia furioso, frustrado e cansado. Harry foi até o amigo e o segurou pelos ombros, não foi preciso dizer nada, naqueles dias as palavras eram de pouquíssima utilidade, perigosas até. Ambos trocaram olhares e Harry teria abraçado o amigo com força se soubesse que era o último dia que o veria.
— Prometo que quando isso acabar eu pagarei quantas rodadas você quiser de hidromel. — Harry sorriu e Rony devolveu o gesto. — Nós vamos sair dessa, Ronald Weasley. Você vai se casar com Hermione e eu certamente me casarei com sua irmã e todos teremos uma vida longa e feliz. Sempre foi assim, os bons devem vencer no final, como nas histórias. Afinal, apesar de questionarmos como o final poderia ser feliz quando tantas coisas ruins têm acontecido, mas o que eu te digo é o seguinte, as pessoas nessas histórias tiveram muitas chances de voltar atrás, só que não o fizeram [2].
O grupo trocou olhares de cumplicidade, esperançosos de que no final a teoria dos contos estivesse certa e os "bons", de fato, deveriam vencer no final.
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Je suis mal foi*
Quando os comensais destruíram todos os grandes monumentos e declararam guerra aberta àqueles que se opusessem ao novo regime, bruxos e trouxas se desesperaram, buscando nas igrejas algum tipo de consolo, ou mesmo refúgio, diante da perseguição ferrenha dos servos de Lord Voldemort. Todas as religiões pregavam algo que se adequava às necessidades dos novos fiéis, as reuniões sempre terminavam com mensagens de conforto e incentivo à permanecerem firmes e esperançosos quanto aos dias vindouros.
O Lorde sabia que não adiantaria postergar ainda mais o envio de seus comensais para uma fase de caçada intensa. Nascidos trouxas e mestiços estavam se dispersando, criando esconderijos e abrigos, de modo que localizá-los tornava-se mais difícil a cada dia. Rabastan Lestrange liderava o grupo de buscas, pois era o mais capacitado para a tarefa, segundo Voldemort. Era necessário, além das habilidades de sobrevivência nos mais variados ambientes, que houvesse certo preparo físico, psicológico e habilidades mágicas excepcionais.
— Vou te dizer uma coisa, garoto: Estamos todos fodidos! — Rabastan soltou a frase naquele dia cinza, do alto da colina, observando a cortina de fumaça que consumia os inimigos de Voldemort. Ele estava segurando um cigarro entre o dedo médio e o indicador da mão direita. Malfoy sempre se questionara o porquê de fazer uso da droga trouxa, mas nunca verbalizou as próprias indagações, afinal, todos têm suas próprias motivações, de outra maneira não seria — Quando essa guerra terminar nós teremos perdido metade dos homens leais à causa. O Lorde já notou que o fim da guerra se aproxima, portanto, esteja preparado para um bom álibi. Você matou pessoas importantes para o outro lado.
Eles se preparavam para ir à Londres o mais rápido possível. As notícias eram de que os bairros centrais em breve receberiam uma visita especial dos aurores. Seria um banho de sangue, pois o plano de Voldemort era deixar a marca histórica de dez mil mortos em um dia. As ruas estavam apodrecendo, ninguém conseguia transitar entre os moribundos que imploravam por alimento. Malfoy os matava, pois acreditava que daquela maneira lhes aliviaria o sofrimento.
Desde a mais tenra idade a maioria dos indivíduos é doutrinada a fazer uma escolha. A religião, os professores, os pais e o Ministério da Magia – em se tratando dos bruxos – apontam apenas dois caminhos, de modo que, quando chegada a hora, é possível optar entre ser bom ou mau. Draco acreditava no homem como um ser que não perdera suas características primitivas, portanto, nada extirparia do ser humano a reação de atacar quando ameaçado. Dessa maneira, pouco importava a distinção entre bons e maus, pois com uma varinha apontada em sua direção isso não fazia diferença alguma. Matar, muitas vezes, significava – ao menos para ele – sobreviver.
Tal qual Harry Potter e o casal de lacaios que o seguia fugiram e entocaram-se na primeira oportunidade, quando os fiéis "nascidos trouxas" se debulharam em lamúrias, líderes religiosos fecharam as portas de suas igrejas, escondendo-se como ratos, aguardando o fim da guerra e protegendo os artefatos preciosos. Ninguém cumpriu o papel que lhes fora incumbido e a bondade parecia ser a última coisa que os preocupava.
Voldemort negociara a entrada dos comensais na Catedral de Westminster. Alguns baús de ouro e um bocado de joias preciosas deram conta do recado, pois, aparentemente, os "homens bons" haviam colocado um preço na vida de cada ser humano.
Durante a ronda da madrugada, o silêncio. A captura do oxigênio do homem que não sabia nadar, mas mesmo assim resolve dar o pulo suicida em um mar revolto. Malfoy nunca lutara com tantos aurores e saber que encontraria conhecidos tornava tudo muito pior.
Fato era que ali, no meio da desabalada carreira para evitar ou causar mais mortes, ninguém poderia ser considerado inocente, afinal de contas, cedo ou tarde seriam obrigados a matar. Draco tinha plena consciência de que, para além do feitiço imperdoável, tirar a vida de alguém te destruiria por dentro, por tempo indeterminado, o que poderia muito bem significar o resto de sua existência.
Ele divagava a respeito quando entrou no olho do furacão, mais conhecido como Catedral de Westminster e esperou. Teve tempo de sobra para ponderar os riscos da missão, mas ainda assim, permaneceu em silêncio no confessionário. Ninguém ousaria ir até lá, ele imaginou, todos tinham tantos pecados que o ato de se confessar se mostrava inútil.
Ele, contudo, estava enganado.
No meio do burburinho, dos disparos violentos e mortes cruéis, uma figura conhecida apoiou os lábios na madeira lustrosa disposta em treliças cuidadosamente trançadas do confessionário. Um cheiro forte de suor, leite azedo e sangue se espalhou pelo pequeno cubículo. Draco teve que prender a respiração, não queria ser descoberto. Não pretendia matar pessoas naquele dia.
— Sei que está aí — a voz feminina sussurrou, e o cheiro insuportável tornou-se ainda pior. — e se não sair eu vou enfiar essa varinha em lugares que você nunca imaginou serem anatomicamente possíveis.
Lilá Brown! A cabeça de Malfoy deu um estalo. De fato a voz lhe era familiar, mas tivera apenas duas ou três aulas com a garota. Ela fazia perguntas imbecis e tinha uma péssima mira com feitiços, ou pelo menos era essa a imagem que ele criara para ela, por ser uma grifinória indigna de sua atenção, nos tempos em que tal característica realmente tivera alguma relevância em sua vida.
Enquanto vários fiéis entravam na catedral, ansiosos pelo alimento e abrigo prometidos, eram mortos, sem sequer saberem o que os havia atingido. Os gritos finais das vítimas adentravam nas profundezas de sua alma. Malfoy temia pelo dia em que aquelas mortes seriam colocadas em sua conta. Embora suas mãos não estivessem diretamente sujas, ele havia contribuído para o acontecimento do massacre.
Rabastan estava no meio do fogo cruzado quando atingiu a garota apoiada no confessionário. Lilá não esperava o golpe certeiro nos joelhos, e caiu aos gritos no chão. Esse era o tempo que Lestrange precisava para resgatar Malfoy, se não fosse Ronald Weasley surgindo do meio da multidão, encarando o responsável pelos disparos com os olhos vermelhos e cheios de cólera.
Draco apertou a varinha entre os dedos e deixou que as faíscas vermelhas, azuis e brancas saltassem na direção de seus oponentes. Rabastan fora relapso o suficiente ao ponto de arriscar tudo para mantê-lo fora de perigo, agora deveria retribuir o favor e tirá-los dali o mais rápido possível.
Ronald Weasley correu como um raio, amparando Lilá em seus braços, a garota estava banhada em suor e mancando, mas ainda encontrava forças para disparar feitiços contra ambos. Malfoy sabia que, assim como Rabastan lhe dissera, apenas duas escolhas lhe haviam sido dadas: "matar ou morrer". Sair vivo significaria, portanto, a consagração do título de assassino ao garoto que parecia optar entre a estaca e o punhal todos os dias desde a mais tenra idade.
O sino da igreja tocou doze vezes. Malfoy sentiu a boca arder e os ouvidos latejarem, já havia sido desarmado por Lilá, não alcançaria a chave de portal para o protocolo de evacuação, conforme o combinado. Por isso, decidiu que economizaria suas energias escondendo-se atrás dos bancos e colunas, tentando proteger uma das únicas pessoas que ainda valiam alguma coisa naquela guerra.
Já estavam próximo da pia batismal quando sentiu Rabastan o empurrando para longe e correndo para recuperar a varinha que ficara perto do confessionário. Foi seu último movimento, pois a maldição imperdoável brilhou esverdeada e, pelas mãos de Weasley, Rabastan Lestrange encontrou a morte.
Malfoy não teve tempo de raciocinar, ou planejar o próximo ataque. Viu-se na mira de Weasley – assassino do último homem decente que ele conhecera – e não lhe restou mais nada além de utilizar Lilá Brown como escudo humano. Ela havia se aproximado da pia batismal, momento oportuno, quiçá irônico, para que o punhal fizesse o trabalho sujo. A varinha havia sido recuperada por um preço muito alto, portanto, o pagamento se daria da maneira mais cruel que seu coração podia conceber para o momento. Ser o assassino não o preocupava mais, então o líquido espesso e vermelho escuro em suas mãos, os engasgos de Lilá Brown afogando-se lentamente com o próprio sangue, selaram o destino de Draco; foi o batismo de que tanto Rabastan falara.
Naquela noite, Malfoy matou dezenas de pessoas, feitiços, golpes com o punhal, torções de pescoço. Em sua conta mais de mil haviam sido mortos através de suas mãos e a dívida ficava cada vez maior até que ele parou de contar. Matara inocentes, culpados, heróis, vilões, bons e maus. Seu objetivo era transformar-se no que todos o julgavam: um assassino, o ser humano corrompido e irrecuperável. Sentiu o sangue arder em cada Avada Kedavra, consumando o ódio que morava em seu íntimo.
Doze mil e seiscentas pessoas haviam morrido naquele dia, mas apenas a morte de Lilá Brown foi condecorada e respeitosamente lembrada pelo Ministério da Magia, muito mais pelo fato de ela ser filha de um dos conselheiros ministeriais do que por suas contribuições para a guerra. Quanto a Malfoy, não havia álibi ou justificativas, ele a matara, e o faria de novo se necessário. Se soubesse que a guerra acabaria naquele dia, que Harry Potter surgiria de algum buraco e mataria Lord Voldemort, teria partido mais cedo ao invés de esperar em sua mansão, nos braços de Daphne e na companhia de Lucius e Narcissa para a comemoração de aniversário que nunca aconteceria.
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St. Mungus – Departamento de análises post mortem (Janeiro, 2005)
"Verificamos que se trata de um cadáver de adulto de meia idade; do sexo masculino; caucasiano; de biótipo normolíneo e compleição física mediana; medindo 183 centímetros de altura; cabelos lisos; pálpebras abertas. A amostra de tecido foi recolhida com permissão de membro da família, comprovada por similitude genética e sanguínea".
ps: Remeter ao departamento dos aurores com urgência!
As informações pulsavam diante dos olhos castanhos e cansados. Já passava das oito da manhã e Hermione aguardava na antessala do escritório de Agosis Pertindum para uma reunião emergencial. As amostras colhidas e enviadas por Barnes mais cedo, e as informações entregues por Astoria, podiam colocá-lo tanto na posição de vítima como na de culpado. Mas, por ora, aquilo era suficiente para resolver pelo menos metade dos problemas, se conseguisse convencer a si mesma de que estava barganhando, e não o defendendo.
Barnes compartilhara informações preciosas, e ilegais, que ajudariam Hermione a continuar o fechamento do ciclo de investigações pessoais, onde colocara muito de seu empenho e esmero profissional, não apenas por sentir-se cada vez mais perto de desvendar a verdadeira causa da morte de Rony, mas pela satisfação de poder revelar algo sobre Malfoy e seu passado turvo. Algo na ideia de conhecer melhor o inimigo a motivava em sua empreitada, a ponto de questionar a si mesma se não estaria ultrapassando os limites éticos em prol da curiosidade e interesse completamente eivado pela mesquinha sede de desnudá-lo da maneira mais baixa possível. Ela era humana, portanto, não negaria que travava grande batalha para entender qual lado estava vencendo naquele dia.
Hermione desenrolou o elástico de cabelo que havia colocado no punho para quando precisasse prender as fartas e indisciplinadas madeixas. Fez um coque baixo e bastante apertado, detestava ter os cabelos atrapalhando a leitura. Não beberia todo o chá que havia colocado na xícara, mas continuaria segurando para não perder o costume.
A leitura era técnica, mas Hermione soube que estava diante de uma informação valiosa quando verificou a assinatura da pessoa que liberara a amostra de tecido epitelial de Lucius Malfoy logo quando ele havia morrido.
Janice, apenas. A compatibilidade sanguínea foi crucial para a liberação. Hermione tinha em mãos, finalmente, um relato da garota que, pela simples menção do nome, causara a reação atipica e inesperada em Draco Malfoy.
—Como se alguém estivesse pronto a me oferecer a informação exatamente neste momento. — Hermione falou para si mesma, bebericou o chá, mas logo o abandonou, pois estava frio e aguado.
Cinco bicadas na janela desviaram o foco de sua análise. Ela dirigiu-se até o parapeito e ergueu o vidro para que entrassem três corujas apressadas.A primeira era Diggy, sua coruja. Hermione a enviara para confirmar presença na reunião agendada por Agosis Pertindum. A segunda e a terceira eram diferentes, tinham penas bicolores em tons de preto e cinza, olhos azuis e um brasão pendurado no peito. Ela já havia se deparado com aquele símbolo, e vê-lo novamente não a deixou feliz.
—Vocês não parecem felizes voando presas as essas correntes — Hermione tentou a comunicação com as aves, mal conseguindo disfarçar o nervosismo em sua voz. Ambas as corujas estavam unidas pelo cordão reluzente, o símbolo de Ankh, pendurado na ponta não possuía brilho algum. — Por acaso possuem alguma mensagem?
A coruja de penas mais escuras abaixou a cabeça e com o bico abriu o pingente em forma de cruz ansata. Um bilhete, escrito em folha pautada, puramente trouxa, caiu nas mãos de Hermione.
"Quando uma porta se abre, três se fecham. O plano já foi arquitetado e você faz parte dele agora"
PS: Liberte as corujas e, mais importante: Liberte o Dragão e os seus segredos se revelarão.
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—Bom tê-la aqui — Pertindum saudou Hermione com um sorriso no instante em que ela colocou os pés no escritório. O local parecia tudo, exceto Azkaban. Era fresco e iluminado, no ar pairava o aroma de gerânios frescos, recém-colhidos. — Quase não tivemos a oportunidade de nos encontrar pelos corredores, ou conversar sobre seus resultados no projeto.
—Oh, sim! Espero que esteja satisfeito com nossos progressos. — Hermione sentia-se estranhamente acolhida quando diante de Pertindum. Como se em volta dele viesse acompanhada uma atmosfera leve e calorosa.
—De fato estou. Você é uma pessoa extremamente versátil e disposta a encarar novos desafios. Para mim, confesso, foi uma surpresa quando aceitou a responsabilidade de fiscalizar as melhorias cedidas à Malfoy. Anthony fez o pedido e eu custei a aceitar, você sabe, o passado de Draco Malfoy depõe contra ele de forma incontestável. — Hermione sentiu um calafrio repentino. Agosis continuou, e ela teve que apoiar os braços na cadeira, pois a impressão que tinha era de que o chão sumiria debaixo de seus pés — Uma pena ter que encerrar nossas atividades quando estávamos prestes a mudar a imagem de Azkaban e até mesmo expulsar os dementadores daqui.
—Desculpe... Encerrar? — Hermione o encarou, genuinamente confusa, e sorriu polidamente na vã tentativa de mascarar a indignação descarada que seu rosto teimava em expressar. Não havia prestado atenção em nada além das palavras "Encerrar" e "Projeto"— Tivemos excelentes resultados com a recuperação de alguns presos. Estão respondendo positivamente aos benefícios concedidos, então me intriga essa decisão pelo fim das atividades.
Pertindum levantou-se e caminhou até o aparador que parecia ter saído diretamente da era vitoriana. Hermione aguardava uma resposta e não a xícara de chá que o homem lhe oferecera, mas bebeu mesmo assim, sua garganta estava seca a ponto de doer.
— Deve imaginar que não tive participação nisso — o homem esperou uma reação afirmativa de Hermione e ela não o decepcionou. O aroma de gerânios começara a incomodá-la, mas ainda era melhor que o cheiro de mofo e podridão das celas. — Se tiver alguma sugestão, continuo aberto a elas e não pretendo desistir do que demorei anos para aperfeiçoar.
Hermione apertou a bolsa contra o peito, instintivamente, como se buscasse conforto no próprio abraço. A janela da sala de Pertindum estava aberta e a brisa marinha era gelada, então os arrepios constantes lhe pareciam naturais, embora, em seu íntimo, uma voz gritasse para que ela fosse embora e afogasse no mar de Azkaban os pensamentos que vinham surgindo em sua mente.
— Acredito que Draco Malfoy tenha chances de se recuperar. — Quase gritou. A voz dentro de si ordenava que ela corresse e deixasse todo e qualquer resquício de Malfoy o mais distante possível de sua vida, mas ela resistiu e continuou. — Mesmo com o clamor popular, notei que ele não sofreu danos permanentes a ponto de se tornar incapacitado de sair. O histórico médico e psiquiátrico de quando ele deu entrada à Azkaban apontam normalidade e durante o projeto, bem, nada constatei que pudesse comprometer a liberação dele para resolver assuntos pendentes.
— Quero que faça um relatório final — Agosis estava de costas para ela, apanhando alguns livros na grande estante que decorava sua sala. — algo como um compilado de informações que comprovem o que está dizendo. Após deliberação, pensarei na possibilidade de fazer o que está pedindo... Todavia, sabe que o projeto nunca teve essa finalidade, certo?
— Sim, se verificarem meus relatórios, também observará que 30% dos que sofreram danos considerados permanentes estão de volta a ativa. Lena Switzer foi uma das aurores que mais demonstrou evoluções.
— Eu sei… Uma pena eu não ser tão influente como todos pensam — Pertindum retirou um livro da estante e entregou à Hemione. As páginas estavam em branco e ele demonstrou discreta cautela, como se estivesse prestes a dizer algo tão importante quanto perigoso. — Por isso, cuidarei da liberação de alguns presos, dando o último tempero à revolução contra o nosso sistema. Não sei quanto a você, mas sei que existem formas mais humanas de tratarmos nossos semelhantes.
Hermione sorriu, sentindo um alívio estranho e o estômago borbulhar de nervosismo. Sabia que suas ações estavam pautadas no puro desejo de se livrar da presença de Malfoy e, finalmente, receber sua parte no trato, as informações sobre todos os pontos não investigados na morte de Rony, que naquele momento, provavelmente estava se revolvendo no túmulo, por saber que Hermione era péssima quando o assunto era auto sabotagem.
— Anthony disse que Malfoy precisa estar fora para que possamos avaliar a periculosidade. É o que sugere?
—Sim…— Ela definitivamente não sabia o que estava fazendo e, naquele momento, o subconsciente de Hermione Granger gritava para que ela retornasse ao confortável status quo, em sua adorável residência. Todavia, Draco Malfoy havia despertado dentro dela algo perigosamente insaciável e desconhecido. Não seria ela a bruxa mais inteligente de sua geração se não se permitisse investigar tais sensações.
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"O massacre de Westminster completará seis anos. Atendendo ao clamor popular, o Ministério da Magia, em homenagem às vítimas daquele trágico dia, com base em critério imparcial, selecionará alguns dos condenados pelos crimes cometidos na Catedral de Westminster para majoração de pena".
Como de costume, Feggis deixara o jornal em cima da pia. A manchete era relativamente clara, mas ainda assim tentava suplantar as reais intenções do Ministério da Magia: resolver a questão da lotação excessiva das prisões matando alguns dos infelizes que ocupavam espaço demais em suas celas de dois metros quadrados. O povo clamava pelo corte de gastos com o sistema prisional desde o primeiro ano do pós-guerra, Draco se lembrava da primeira vez que a ração oferecida três vezes ao dia fora reduzida à pequena quantia proporcionada como única refeição diária.
Depois a água, e então os cuidados médicos, a limpeza das celas e a iluminação. Um a um, os resquícios de dignidade e humanidade foram desaparecendo. Dezenove presos morreram de inanição, outros dez morreram de pneumonia. Malfoy temia pela morte, mas alimentava o desejo de vingança contra os membros de uma cúpula que o jogara naquela latrina sem o devido julgamento, imputando-lhe dezenas de crimes que ele não havia cometido e deixando-o à mercê da discricionariedade e arbitrariedade do sistema judiciário bruxo, famoso por sua parcialidade para com Harry Potter.
Um memorial foi construído na região e, em nome das vítimas, foi declarado feriado nacional no mundo bruxo. Os trouxas, no entanto, seguiam suas vidas, quase sem se importar com o acontecimento, como se estivessem anestesiados. Naquela noite doze mil e setecentas pessoas foram mortas, incluindo Rabastan, que tinha planos de ir embora para algum país aonde a guerra não chegara. Ninguém sabia, de fato, se tal lugar existia, mas ele tinha plena consciência de que não iria para Azkaban. Draco sentia-se feliz quando pensava que ele não pusera os pés no inferno que era aquela prisão.
Assim como quando clamaram pela volta dos dementadores poucos meses depois da vitória, os homens e mulheres de boa índole estavam clamando pela morte de seus semelhantes através de sorteio. – porque sim, a majoração da pena significaria morte de pelo menos metade dos presos. Então, com o jornal nas mãos e um gosto de vômito e ferrugem em seus lábios, Draco concluiu que jamais saberia avaliar se realmente havia matado pessoas de boa índole, ou seres humanos que em momentos como aqueles tentariam enfiar a varinha no pescoço de quem eles julgavam merecedores. Amassou o jornal com força e jogou a bola de papel em um canto, evitando pensar que poderia ser o preso selecionado para a majoração, que significava o beijo do dementador, ele bem sabia. Preferia morrer de fome ou frio a ter que sentir a vida sendo extraída pouco a pouco por qualquer um daqueles seres das trevas.
Anthony Feggis surgiu como uma sombra, enquanto Draco encontrava-se distraído com a manchete. Nos braços do homem uma bandeja coberta pelo já conhecido papel pardo. Malfoy não comemorava o próprio aniversário desde o dia em que fora preso, mas Feggis, sempre que possível, preparava um bolo. A massa era simples, pão de ló com creme de limão, ou chocolate – tudo dependia do espírito culinário que se apoderava de Anthony no ano em questão, e, sobretudo, das condições financeiras do homem que parecia não ter outro hobby além de tratar Malfoy com o mínimo de dignidade.
—Feliz aniversário, garoto. — Feggis sorriu, entregando o pedaço de bolo já cortado e um pergaminho roxo. — Não olhe para mim com essa cara enjoada, apenas prove o bolo e abra o envelope.
— Meu aniversário será daqui dois dias. — Malfoy falou com a boca cheia de bolo, esparramando alguns farelos enquanto enfiava mais um grande pedaço na boca. — dá azar comemorar antes.
—Como se você se importasse com azar ou sorte...— Feggis se permitiu um genuíno sorriso. Malfoy, aos seus olhos, parecia um garoto esfomeado que chegara em casa após uma partida de quadribol— Abra logo!
Draco segurou o que parecia um memorando e rasgou o envelope, também roxo, com aristocrática delicadeza, gesto contrastante à maneira que ele devorara o bolo. Quando leu, franziu o cenho e cerrou os olhos duas ou três vezes. Feggis quase riu, mas manteve a postura séria e observadora.
— Como assim?
— Ora, isso é uma liberação para sair de Azkaban por 24 horas. Hermione terminou o seu relatório e Pertindum deve ter ficado satisfeito com os resultados. — MAlfoy arregalou os olhos enquanto Feggis contava o ocorrido — Você pode arrumar suas coisas e, bem, ficar na minha casa… Eu me ofereci para ser seu guardião.
— Por que ela mesma não veio? — Draco questionou, insultando a si mesmo em pensamento ao notar traços de surpresa e frustração em sua voz.
—Ela chegará em alguns minutos. Você poderá agradecer pessoalmente.
A liberação aconteceria justamente no dia em que o massacre de Westminster seria lembrado. Aquele feriado que para Malfoy de nada serviria, já que ele matara pessoas importantes, fora o dia selecionado para os dias de liberdade vigiada. Hermione assinara sua liberação e fizera um relatório atestando a baixa — ou nula — periculosidade dele.
— Agosis me disse que talvez esse seja o início de um programa curto de ressocialização. Antes, porém, precisará provar que pode conviver com as pessoas, normalmente, especialmente trouxas
Draco torceu o nariz, mas deu de ombros logo em seguida. Ainda segurava um pedaço de bolo que logo colocaria na boca, mas olhar para Feggis o impediu de concluir a ação. Respirou fundo e soltou todo o ar com força pelo nariz.
— Tome — ele empurrou o que restara do bolo para Feggis. O homem olhou com curiosidade para Malfoy. — Faça de conta que é o primeiro pedaço de bolo.
— Mas não é — Feggis respondeu jocosamente — eu diria que é a sobra…
— E meu aniversário não é hoje. — Draco piscou e deu um tapinha desajeitado no ombro de Anthony.
—Isso é um obrigado?
—Pode-se dizer que sim. — Malfoy deu um meio sorriso, imaginando que mesmo se Rabastan estivesse vivo ele ainda daria o primeiro pedaço para Anthony.
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Medo de ser morto já fora a maior das preocupações dele, mas com o passar do tempo e pelo ofício executado, Draco Malfoy aprendera a dominar as próprias emoções.
O ambiente era escuro e ele teve certeza de que ela o levaria até o local onde agora, em seu intimo, ele se questionava se realmente valeria a pena implorar pela própria vida. Draco a acompanhou por três lances de escada até o cômodo vazio no subsolo onde luzes bruxuleantes derramavam um brilho constante e estéril. Sob essa luz medonha, Hermione estava meio passo à frente. Ele a ouvia respirar. Seria fácil matá-la naquele momento, se o desejo de terminar o que haviam começado meses atrás não estivesse vencendo a guerra em seu interior, latente e tão recente que parecia queimar cada parte de seu corpo, moralmente o consumindo. Ela fizera um relatório positivo a seu respeito, poderia negar com veemência até gastar todo o vocabulário típico de uma "sabe-tudo" petulante, aquilo certamente significava alguma coisa. Isso o excitava.
Malfoy sentiu o cheiro se espalhar por suas narinas. O inconfundível e familiar cheiro da morte. Um rato em avançado estado de decomposição era o recado de boas vindas no espaço apertado e fechado, o fedor era insuportável. Os olhos de Draco lacrimejaram e seu estômago parecia querer despejar tudo o que havia comido pela manhã.
Ambos atravessaram o espaço vazio e fétido e alcançaram o outro lado. Com um empurrão ela abriu uma porta pesada, cravejada de lanças afiadas, e antes que concluísse a ação Draco tocou-lhe o braço. Ela estava fria, e tremeu quando sentiu o contato físico inesperado. Hermione tinha os olhos fixos no chão, e ele não questionou, apenas ergueu o queixo da figura estática que evitava encará-lo. Algo dentro de Malfoy queimava e ele imaginou que fosse o estômago, onde as emoções pareciam morar desde quando descobrira as úlceras, ou onde as úlceras decidiram morar em razão das inúmeras flutuações de sentimentos ao longo de sua vida.
Não havia placa de identificação, então aquele lugar poderia muito bem ser um matadouro. Uma longa mesa com poções enfileiradas em sua superfície e a pequena caixa de metal com instrumentos estranhos no centro poderiam sugerir que fariam nele uma lobotomia. Sendo assim, melhor que fizesse tudo o que tinha vontade, como beijá-la, ou dizer coisas absurdas como "Eu tenho um desvio na coluna que fez com que meus pais encomendassem mesas especiais na escola".
Malfoy sempre esperara pela morte, pois sabia que ela chegaria para ele mais cedo, portanto, em suas horas finais de nada adiantaria negar que a desejava, se é que algum dia a desculpa esfarrapada dera certo.
Como se estivessem programadas as luzes enfraqueceram e apenas uma lamparina se manteve realmente acesa, mas era um ponto solitário e tremeluzente na extremidade esquerda, próxima ao amontoado de amuletos que guardariam o patrono de seu portador.
– Não vou te matar se olhar nos meus olhos – ele sussurrou, ignorando o fato de que há poucos minutos os velhos hábitos de comensal o fizeram calcular as condições favoráveis para matá-la. Incongruente, mas, ele perdoaria a si mesmo quando balizasse as intenções nada puritanas que tinha com ela em um cômodo fechado.
Ela nada disse, apenas fitou o rosto cansado de Malfoy. Ele havia adquirido algumas linhas de expressão no espaço entre as sobrancelhas - já não tão claras como antigamente. Embora não tivesse sequer alcançado a casa dos trinta, Azkaban fizera o trabalho de envelhecê-lo alguns anos, de modo que Draco Malfoy carregava o peso de um pacote de más escolhas e péssimas condições humanas em cada fina ruga que se formava ao redor dos olhos.
– Sei que não vai me matar em nenhuma hipótese– ela falou tomada por uma confiança infantil que gostaria de não sentir. Ele poderia sim matá-la e ninguém saberia. Ela o levara até ali, onde ninguém costumava entrar, para resolver um assunto que dizia respeito a ele, tão somente. Sentiu a proximidade de Draco e as mãos displicentemente alisando o braço descoberto.
– E o que a faz pensar isso?
–Digamos que confio no ser humano, na famosa "boa-fé", no arrependimento. – Ele notou um sorriso zombeteiro. Hermione também perdera as esperanças na humanidade e na divisão estanque dos indivíduos. Era perceptível como ela havia se tornado uma pessoa completamente diferente
– Sabe que não me arrependo do que fiz, então isso faz de mim um homem mau. – Draco provocou.
– Não se arrepende mesmo? – Temperatura era mesmo uma coisa estranha, Malfoy refletiu, estava começando a esquentar no quarto, mas não podia evitar a série de calafrios que percorria o corpo em partes que preferencialmente deveriam ficar sob máxima discrição.
– Não. – ele enfatizou– E eu poderia contrariar suas crenças matando-a e logo em seguida cometeria suicídio. O que acha? – Ele chegava mais perto a cada segundo.
– Alguns escritores e poetas trouxas encarariam isso como romântico. Eu enxergo como doentio. Em ambos os casos, você não faria isso, porque está jogando comigo – Ela estava certa.
Draco puxou uma mecha do coque de Hermione. O cabelo preso rente à nuca estava cheiroso, bem preso e elegante, mas ele tinha prazer em desfazer os cachos entre os dedos e sentir os fios deslizarem lentamente. Silenciosamente ele entregava a mensagem de poder e contrariedade, demonstrando ser capaz de também desordenar a única coisa que ela ainda conseguia manter no lugar.
Com a mão livre ele enlaçou a cintura de Hermione e abaixou a cabeça até alcançar o pescoço dela. Respirou fundo sob a pele e subiu até na curva do maxilar.
— Eu gosto dessa parte do jogo, quando você me beneficia sob algum pretexto idiota, que provavelmente é uma desculpa para que eu faça isso. — Malfoy sussurrou através da pele de Hermione e deslizou a língua pelo local. Ela gemeu baixinho.
—A única morte que você disse não se arrepender foi a de Lilá Brown. — ela não estava perguntando, mas afirmando entre um suspiro e outro, já que Malfoy insistia em fazê-la fraquejar. — As demais não são mencionadas em seu relatório, mas a psiquiatra que atendia aos primeiros casos disse que você estava perturbado.
—Talvez— ele teria dado de ombros se não estivesse ocupado deslizando os dedos para o zíper da calça de Hermione. Ela poderia protestar, deveria, na verdade, se estivesse em seu juízo perfeito. Notando a aceitação, ele continuou, escorregando a mão para dentro, deslizando os dedos, sentindo a parte de cima da calcinha úmida. Sorriu vitorioso.
— Entenda isso como um raro gesto de agradecimento pela liberação que conseguiu para mim. Quando o natal e o ano novo passaram eu realmente perdi a fé nesse benefício prometido por Pertindum…
— Sua liberação é mérito de Feggis. Eu apenas fiz o relatório atestando que você não representa periculosidade ao corpo social.— das mentiras que ela contara ao longo de sua vida, aquela era a mais vergonhosa — Eu o trouxe aqui porque sei que este é o único lugar onde não seremos ouvidos e... — Hermione mal conseguia articular uma frase, seu corpo estava sob o completo domínio de Malfoy e a ideia de pará-lo havia abandonado sua mente no momento em que ele resolvera deslizar os dedos ao redor de sua intimidade.
Ele já estava buscando o rosto de Hermione, pronto para sentir novamente o gosto da boca que não parava de falar para, quem sabe, desestabilizá-lo. Roçou sua testa na dela sinalizando a intenção de beijá-la e entreabriu os lábios para capturar o máximo de oxigênio que conseguisse antes de devorá-la com todo o desejo acumulado desde a última vez que havia experimentado um pouco de Hermione Granger. Não deixando de tocá-la sob o tecido da peça íntima de algodão ele iniciou o beijo de forma desesperada. Queria terminar o que havia começado meses atrás.
— Qualquer coisa que faça você dormir melhor à noite — ele com os lábios ainda pressionados sobre os dela. — Mas isso não afasta a pergunta mais importante. Por que razão me trouxe até aqui, Granger?
Hermione conseguiu afastá-lo, sem saber ao certo de onde extraíra tamanha resistência. Colocou a palma da mão no peito de Malfoy e imprimiu o mínimo de força possível, afinal, não era tão forte assim e grande parte de seu corpo desejava não ter que trocar sequer meia dúzia de palavras com Malfoy, apenas deixar-se levar pelas carícias que tinham o poder de colocá-la fora de seu estado normal.
— Precisamos conversar a respeito da minha parte no trato. – Ela falou entre um sussurro mal articulado, quase falhando na tentativa de controlar a respiração. Draco se afastou e ela notou que seus olhos ficaram nublados. Como se um prenuncio de chuva encobrissem a íris acinzentada.
— Conseguiu algo mais? — ele voltara ao estado normal, o antigo Draco Malfoy, interessado em apenas extrair o máximo dela e depois tratá-la como lixo. Hermione lutou contra a sensação ruim que pesou em seu coração. Sentiu-se frágil e infantil.
—Quem era Janice? Alguma prima? — ela questionou com rispidez.
—Não... Meu pai era filho único e Belatrix, minha única tia, não teve filhos, como você deve imaginar. Nossa família sempre foi pequena. — ele parou por um instante, parecendo ponderar se realmente deveria contar à Hermione uma parte tão privada de seu passado. — Janice era uma amiga de infância que foi embora. Era filha de empregados, mas era bruxa, claro, jamais contrataríamos trouxas — ele logo acrescentou quando observou a incredulidade nos olhos de Hermione assim que ouviu a palavra "empregados".
Ela sorriu, e Malfoy sentiu um arrepio no baixo ventre. Era um sorriso imperfeito, Hermione não havia arrumado os dentes, apenas cresceu e tornou-se proporcional, com algumas falhas que a tornavam estranhamente atraente.
—Talvez fique surpreso, mas foi ela quem autorizou a colheita de amostras.
—Ela está viva? — foi a única pergunta que ele conseguiu articular.
—Pelo menos estava há quatro meses. O que você não entendeu, Malfoy, é que apenas familiares podem autorizar liberação de corpos e autopsias. — Hermione o fitou com sincera curiosidade. Não havia ruído algum no ambiente apenas o pulsar em seu ouvido.
"Seu pai sempre gostou de brincar com fogo, e com sangues-ruins, principalmente aquelas que tivessem a beleza de uma ninfa. Pergunte para ele o que aconteceu com Samantha, a Ursa Maior."
Malfoy ouviu a voz de Rabastan reverberando em suas memórias, como se estivesse ali, caçoando de Lucius Malfoy e uma suposta infidelidade.
—É provável que você tenha... Uma irmã...? — ela esperou que ele acompanhasse o raciocínio, mas Draco parecia anestesiado. Hermione tentou mais uma vez. — Às vezes acontece...Trata-se de uma descoberta chocante, de fato.
A história fez sentido quando Hermione verbalizou o que ele não havia processado completamente. Draco sentiu como se no chão imundo daquele lugar surgisse uma fenda, e ele era engolido gradativamente juntamente com toda a falsa realidade construída ao redor de sua vida. Hermione tocou o antebraço de Malfoy. Havia nas feições dele todos os tipos de sentimentos, uma mistura de raiva, culpa, desolação e frustração.
—Janice — ele repetiu baixinho.
Ela já estava incomodada com o estado absorto de Malfoy. Pelos dois minutos seguintes não havia outro som, a não ser as ondas furiosas do mar chocando-s contra a parede de pedra que erguia a prisão. Eles estavam no subsolo, portanto, nenhum dos dois realmente sabia quanto tempo havia se passado desde o momento em que puseram os pés na sala escondida de Azkaban.
—Eu... — Malfoy começou. Havia encostado o corpo contra a parede e fitava Hermione com cuidado — Preciso assimilar a informação, então se puder vir aqui amanhã, ou na próxima semana, eu te digo tudo o que sei sobre...
Se fosse sincero consigo mesmo, admitiria que estava arquitetando uma manobra para mantê-la por perto, mas jamais aceitaria tal fato, por mais verdadeiro que fosse.
—O projeto será encerrado, ela interrompeu. Não voltarei amanhã, nem na próxima semana. — Ele arregalou os olhos e então soltou um risinho debochado. Seu tom de voz a fez voltar no tempo, quando ele a insultava pelo prazer de destruí-la por dentro.
— Eu quase acreditei nas boas intenções do Ministério da Magia, mas, veja só, ainda bem que parei no "quase".
—Temos que voltar — Hermione sussurrou. Ela sabia que não teria informações sobre Rony, ou Daphne, ou qualquer verdade oculta que ela buscava revelar. De nada adiantaria permanecer no mesmo ambiente que Malfoy, pois estaria reforçando sua fragilidade em relação a ele e, o que era pior, correria o risco de sucumbir ao toque daquele que, em regra, deveria ser punido por todas as maldades cometidas.
—Weasley mudou de lado. — ele soltou a frase quando ela já havia alcançado o primeiro degrau. Ele estava magoado, como se ela tivesse culpa pelo fim do projeto, por isso pretendia cravar o punhal bem fundo, remexer na ferida que mais doía. — Eu costumo cumprir o que prometo, Hermione, e essa é a informação. Daphne estava com ele, aliás, sempre esteve colada nele e, por alguma razão que eu desconheço, ambos se envolveram com pessoas perigosas. Acredite, seu noivo fez coisas ruins.
Hermione não sabia o que havia capturado sua atenção com mais força, o som do próprio nome nos lábios de Malfoy, ou a afirmação de que Rony era um traidor – fato esse que se recusava a acreditar, visto que se encontrava diante do maior manipulador que ela conhecia: Draco Malfoy.
— Você está mentindo. — Hermione sentiu o aviso de seu corpo. Os olhos se encheram de lágrimas e a pressão no peito começou a sufocá-la, não havia meios de conter a explosão de emoções que ameaçam avançar como um tsunami.
— Eu recebia muitas ameaças quando Daphne fez uma de suas viagens suspeitas para a França. Tenho fortes razões para acreditar que meus pais foram assassinados por membros dessa tal organização secreta... Acredito que seja um grupo de mafiosos que te fazem um favor e você precisa pagar quando a hora chegar, nos termos deles.— Malfoy deu de ombros, tentando transparecer displicência.
— Você está mentindo! — Hermione soou furiosa. As lágrimas ameaçavam cair, mas ela as conteve com maestria, desceu os degraus e voltou-se para Malfoy com o dedo em riste no peitoral dele, quase o empurrando. — Eu nunca deveria ter confiado em alguém como você. Como se atreve a falar sobre Rony dessa maneira? Você… Você não tem vergonha? Não consegue demonstrar o mínimo de gratidão pelo que fiz?
Draco segurou o punho da mulher encolerizada tentando não machucá-la, mas imprimindo força suficiente para contê-la. Aproximou-se o bastante para que ela ficasse na altura de seu tórax e quando sentiu os músculos de Hermione relaxando abaixou a cabeça, colando sua testa na dela, sentindo o cheiro de creme dental e loção hidratante.
— Eu não pedi sua ajuda, você a ofereceu — ele sussurrou e ela resistiu, tentou se desvencilhar do toque de Malfoy, não queria ficar ali para continuar ouvindo as verdades que vinha evitando há meses. — Eu não sou um troféu de caridade, nem pretendo me tornar seu rato de laboratório.
As respirações se partiam no ar e Hermione sentiu os braços de Malfoy envolvendo-a por completo. Permitiu o toque e sentiu-se imunda, embora não tivesse forças para resistir, pois descobrira-se usada e, a despeito de sua arrogância, que a fizera acreditar em sua capacidade de agir com frieza e barganhar com Draco, não estava pronta para ser descartada após o completo aproveitamento de suas boas intenções.
Ele a beijou, sem voracidade, mas com urgência, experimentando outra espécie de desejo que ele não sabia, mas precisava urgentemente ser suprido. Sentiu um gosto salgado na boca, Hermione estava chorando. Ele não soube discernir ao certo se deveria dizer algo, mas teve a decência de interromper o beijo e fitá-la apreensivo. Dentro de Malfoy a crescente irritação por saber o motivo do choro: Weasley. Profanara a memória do santo namorado enterrado e decomposto, aquilo era inconcebível para ela, mas, sobretudo, humilhante para ele que sempre tivera tudo o que desejava.
— Weasley era um cretino, e você deveria saber que depois de mortas as pessoas não se tornam santas.— ele resolveu falar, deixando escapar um sorriso velhaco, e ao sentir o empurrão brusco de Hermione soube que fizera muito mal.
—Incarcerous. — ela gritou com a varinha apontada para ele e cordas grossas o prenderam pelas mãos. Os olhos castanhos continham nojo, ódio e ressentimento. — Feggis virá buscá-lo. Sinceramente, espero que ele demore, pois você merece ficar sozinho com sua maldade e mesquinhez.
Draco acompanhou, inerte, Hermione subindo as escadas, pisando duro e transformando o salto dos sapatos em um irritante compasso firme e enfurecido. O mundo ainda estava se dividindo entre bons e maus, e Malfoy teve certeza de que mantinha a posição de sempre no ranking de maldade criado por Hermione Granger.
Ele caminhou até a cadeira que restava solitária no cômodo vazio, frio e escuro, tendo a certeza de que ficaria longas horas ali. Sentindo-se um completo imbecil, sentou-se e colocou a cabeça entre os braços amarrados, assimilando o sentimento novo que se apoderava dele, pois aquela era a primeira vez que Draco Malfoy se preocupava com a própria reputação sob a ótica de Hermione Granger.
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Notas Finais
[1] Yellow Pitstone: Hospital que criei em Dez Encantamentos :D
*Maniqueísta: Como vocês devem ter reparado (principalmente quem acompanha todas as minhas fanfics) eu gosto muito de filosofia. Não sou filósofa, sou advogada, portanto minhas definições são rasas, embora eu me esforce para trazer um conteúdo completo.
Bem, o maniqueísmo, em resumo, é uma filosofia religiosa dualística apresentada por Maniqueu, que era um filósofo cristão. No pensamento de Maniqueu o mundo é dividido de forma estanque entre "Deus e Diabo" que são ,respectivamente, a representação do bem e do mal. É claro que esse resumo não define o maniqueísmo, mas relata muito bem o que quis tratar nesse capítulo que, a princípio, seria intitulado de "Ursa Maior".
*Je sui mal foi/ bone foi: Tradução literal de "Sou Má fé", e "Sou boa fé". Uma brincadeira com meu francês bem pobrezinho que retrata justamente o objetivo do capítulo. Obviamente ficou bem esquisita a tradução, mas foi proposital, quis causar o impacto com o nome do Draconildo.
