Olá pessoal

Para aqueles que ficaram surpresos com o up grade que o Shun teve em "Siempre", neste spin-off vou contar pra vocês como tudo aconteceu.

Embora "Quando nos tocamos" seja parte da "Saga de uma nova vida" que atualmente compõe aproximadamente 51 histórias, ela pode ser lida separadamente.

Esta história começou a ser escrita em 2008 e entrou em hiatos em maio de 2010, infelizmente por decorrência da própria vida - primeiro troca de trabalho, depois faculdade, mudança pra uma nova cidade, novo trabalho, volta pra casa, novo velho trabalho, enfim... os anos foram se passando e eu por mais desesperada que estivesse para voltar a escrever, não tinha mais aqueles momentos só meu, de sentar e me permitir transferir toda história que está rodando na minha cabeça para o papel.

Os dois anos de pandemia foram bem difíceis, acredito que pra todo mundo, mas esses últimos dois tem sido particularmente difíceis por aqui, então, decidi que independe de qualquer coisa iria me esforçar para dar o fim que as histórias merecem, começando por esta.

Atualmente os 12 capítulos que foram publicados sofreram algumas modificações, ganhando cenas adicionais e inéditas.

No mais, gostaria de agradecer a todos que tem me acompanhado e principalmente que não desistiram de mim durante todos esses anos.

Um forte abraço e boa leitura.

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QUANDO NOS TOCAMOS

By Dama 9

(Início: 09 de março de 2008)

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Capítulo 1 - Natureza Humana.

.I.

O sol na Terra erguia-se imponente no céu quando cruzara os mundos, chegando naquele pequeno templo escondido dentro de Elêusis, para olhos mortais aquele lugar não passava de um amontado de pedras e colunas quebradas, ecos de um passado glorioso. Eram poucos aqueles que sabiam que ao cruzar a barreira que separava as dimensões, encontrar-se-iam em meio a um templo repleto de flores, vegetação e natureza - onde até o ar tinha um gosto diferente.

Seguiu a passos calmos pelos corredores, notando as plantas no topo das colunas, o verde se espalhava por ali com tanta naturalidade, que era fácil esquecer que estava na Terra.

Conforme avançava, risos infantis chegaram até si, respirou mais calmo ao reconhecer de imediato à voz do filho, mesmo que essas visitas estivessem se tornando cada vez mais frequentes, ainda tinha dificuldade em lidar com a separação e o medo de que algo pudesse acontecer quando ele estivesse longe de seus olhos. Jamais se perdoaria se alguma coisa acontecesse a ele; a divindade pensou enquanto seguia pelos corredores largos até o terraço onde eles estavam.

-PAPAI; o garotinho de arrepiados cabelos negros gritou correndo até ele, abraçando-lhe as pernas.

-Vim buscá-lo, espero que já esteja pronto para ir? - Hades falou afagando carinhosamente a cabeça do pequeno.

Atreu assentiu, enquanto o olhar calmo da deusa da colheita recaia sobre ambos. Era estranho pensar no quanto as coisas haviam mudado nos últimos anos, principalmente que, até quatro anos trás, usufruir daquele momento seria praticamente impossível.

Jamais sonharia que um dia estaria assim, com seu irmão e neto, juntos - sem todo o peso de rancor e orgulho que lhe atrelara ao passado, fazendo com que perdesse tanto. Naquela época, acreditava que jamais perdoaria Hades por ter roubado sua filha e a obrigado a viver naquele mundo que acreditava resumir-se apenas a dor e tristeza, não quisera aceitar que Cora podia muito bem fazer as próprias escolhas. Quisera protegê-la, colocando-a em uma redoma de vidro, mas no fim, ela lhe causara a maior dor.

-Como você está, Hades? –Deméter perguntou calmamente, enquanto puxava para o colo um grande novelo de lã de dentro da cesta de vime a seus pés.

Voltou-se para a irmã, observando-a atentamente, ainda era estranho olhar pra ela depois de tantos séculos e encontrar em Deméter uma versão mais velha de Cora, os olhos verdes nebulosos como jades pareciam deter todo conhecimento do universo, os longos cabelos negros estavam trançados e presos no alto de sua cabeça embora houvessem alguns fios prateados desprendendo-se do penteado, a túnica bege e diáfana com detalhes dourados cobria-lhe o corpo como uma segunda pele, conferindo-lhe um ar refrescante e sereno, tão diferente da visão com a qual se acostumara nos últimos séculos.

Aos pés dela, a cesta de vime estava repleta de novelos e poderia jurar que no fundo existiam cachecóis e gorros já tricotados. Ao que parecia, aquele era seu novo passatempo.

-Bem e você? – ele perguntou pegando Atreu no colo.

-...; a divindade assentiu em concordância, com um sorriso leve ao ver o pequeno aconchegando-se no colo do pai. –Porque não espera um pouco, pedi que trouxessem um lanche para Atreu, você poderia nos acompanhar? - ela sugeriu.

-Bem...;

-Por favor, vamos esperar um pouquinho...; o menino pediu com os olhos brilhando.

-Acho que eu já lhe disse sobre a sorte que você tem de ter herdado os olhos da sua mãe, não? –Hades perguntou vendo o filho acenar freneticamente com um largo sorrido.

Seguiu até a cadeira ao lado de Deméter e sentou-se, colocando o pequeno acomodado sobre suas pernas.

-Sem dúvida ele sabe a sorte que tem; a senhora brincou. –Só tenho pena das garotas daqui a alguns anos, ele irá arrasar corações;

-Garotas? Eca! –o menino resmungou, embora as bochechas tenham adquirido um leve ar rosado.

-O que foi? –Deméter perguntou vendo o neto em seguida ficar emburrado.

-Ele está naquela fase de detestar garotas; Hades explicou com cautela, vendo o filho estreitar os olhos em sua direção igual a forma que sua mãe fazia.

Sorriu ao se lembrar da surra que o menino levara de Cecil, a pequena filha de Hypnos, que se enfezara com o filho por ficar lhe puxando as trancinhas douradas e não pensara duas vezes em lhe dar uns bons safanões que nem o pobre Dorian foi capaz de segurá-la. Atreu era uma criança bastante tranquila e comportada em comparação aos gêmeos, mas tinha uma grande fixação por Cecil, embora pudesse justificar isso devido a personalidade forte da garotinha.

Ainda se perguntava como geminianos conseguiam ter tanta energia, principalmente quando eram mulheres, porque já ouvira falara sobre o gênio bivalente de Harmonia - a filha de Ártemis. Se bem que, nesse caso o nome provavelmente tinha certo peso, além é claro do signo.

Entretanto, ultimamente Atreu estava ficando inquieto, a companhia de Cecil e Dorian parecia não ser mais suficiente para ele gastar toda energia que tinha acumulado, por isso, as visitas a Deméter estavam se tornando cada vez mais frequentes e não eram mais raros os momentos que encontrava o pequeno rodeando Thanatos, tentando subornar a divindade para levá-lo até o Santuário de Athena, para passear.

Não que Thanatos fosse fazer algo tão insano como obedecer ao pequeno sem lhe avisar, mas estava começando a ponderar a idéia de deixar. Afinal, por mais que detestasse admitir, aquele era um dos locais mais seguros sobre a face da Terra para uma criança como Atreu, mas primeiro precisava conversar com Cora antes de tomar qualquer providência sobre o assunto.

-Logo essa fase passa; Deméter comentou vendo o ar pensativo dele. –Mas e você, esta meio disperso, algum problema? –ela perguntou casualmente.

-Não, problema algum; Hades desconversou desviando o olhar para o pequeno em seu colo.

-Atreu, porque não vai ver se o lanche está pronto, enquanto seu pai e eu conversamos? - a divindade sugeriu.

Viu a criança concordar com um aceno, antes de saltar do colo do pai e desaparecer das vistas deles em um dos corredores do templo.

-Então? –ela perguntou, voltando-se para o genro sem esconder a curiosidade. Embora estivesse acostumada com a figura silenciosa e taciturna do Imperador, seu sexto sentido lhe dizia que havia algo mais o sobrecarregando.

-Andei pensando, Atreu tem vontade de conhecer o Santuário de Athena e bem...;

-Você não sabe se deixa, ou não? –Deméter adiantou-se pensando ser esse o problema.

-Em partes...; Hades falou em meio a um suspiro, não era só isso. Aliás, não era algo tão simples assim.

-Então? - a divindade indagou, olhando-o calmamente, dando-lhe tempo para decidir falar ou não.

Por mais que não tivesse o direito de pressioná-lo a falar, não depois de tantos séculos em desacordo, aos poucos estava aprendendo a controlar a impaciência e deixar as coisas seguirem seu próprio curso. Sabia que se ele se sentisse à vontade, iria compartilhar o que tanto pesava em seus pensamentos. Apenas precisava de tempo e espaço.

-São só algumas dúvidas inúteis; Hades respondeu, recostando-se na cadeira, acomodando melhor o corpo.

-Não tão inúteis se estão lhe tirando a paz; ela completou calmamente. –Não vou lhe pressionar, mas as vezes é bom botar para fora de uma vez tudo que está te aborrecendo, coloca as coisas em perspectiva;

-Não diria bem isso, só que...; ele ponderou, passando a mão nervosamente pelos cabelos longos. –Passei pelo Japão antes de vir até aqui;

-Por quê? –Deméter perguntou surpresa, deixando o novelo que tinha em mãos de lado e dando total atenção a ele agora.

-Você se lembra de quando deixamos a prisão de Chronos e Zeus o matou, selando seus poderes na Ceifadora do Tempo? – Hades comentou, referindo-se a uma das relíquias mais perigosas já criadas pelos deuses.

-As Moiras começaram a tecer novamente; Deméter respondeu em tom sombrio. Depois daquele dia, foi como se o tempo voltasse a correr novamente e as divindades do destino estavam tecendo os fios, como se aquela guerra houvesse sido o marco zero da história deles.

-As Moiras fizeram uma profecia, que Zeus governaria os céus, mas como Chronos, seria destronado por alguém de sua linhagem... Durante séculos, Hera manteve um olhar atento principalmente sobre sua prole mortal, mas a verdade é que havia uma criança que estava destinada a nascer com o poder de controlar os raios e herdar o Olimpo, consequentemente destronando Zeus; ele explicou.

-Mas...;

-Não era Apolo; Hades a cortou, referindo-se à preferência que Zeus tinha por seu 'filho dourado'. -Mesmo as Moiras não conseguiram manter isso em segredo por muito tempo e logo Zeus descobriu que a criança que nascesse da união de Athena com um mortal, ascenderia para reinar sobre o Olimpo; ele explicou, vendo a irmã assentir em concordância, lembrando-se de ter ouvido sobre aquilo antes. -Por isso, quando Poseidon e Apolo tentaram destruir a Terra e Athena formou um exército capaz de derrubá-los, Zeus interveio, prometendo detê-los e nomeá-la como guardiã em troca de algo;

-E o preço cobrado foi ela nunca ter sua própria descendência eu suponho; Deméter completou, vendo-o assentir.

-Sim e as promessas feitas por nós, não podem ser quebradas; ele completou em tom sombrio.

Embora ultimamente muitas coisas houvessem mudado, começando pela promessa relacionada a eles, séculos atrás as coisas eram bem diferentes.

-Isso não impediu que outros atacassem e tentassem destruir a Terra; Deméter comentou com ar indignado.

-Promessas, são promessas... Mesmo quando você não lê as letras miúdas no rodapé do contrato; Hades completou dando de ombros.

A verdade era que Zeus não queria impedir que Poseidon e Apolo brigassem entre si, tampouco que Athena intervisse lutando contra eles, ele apenas queria uma oportunidade de prendê-la e garantir que ninguém ameaçasse seu trono e isso não o tornava nem um pouco diferente do próprio Chronos.

-Então isso tem a ver com a atual reencarnação de Athena; Deméter comentou, vendo-o assentir.

-Entre uma série de coisas, vamos apenas dizer que Zeus foi levado a acreditar que seria uma boa ideia libertar Athena daquela promessa ridícula e você sabe, quando certos pactos são rompidos nós precisamos averiguar; Hades explicou tentando soar casual e despreocupado.

-Depois de tantos séculos, já não era sem tempo; a divindade concordou ao mesmo tempo em que ficava intrigada com o que ele falara por último – Levado a acreditar? Por quem? - ela perguntou curiosa.

-Um dos cavaleiros dela o obrigou a fazer isso; ele respondeu um tanto quanto contrariado diante do rumo que o assunto tomou.

-Que cavaleiro? –Deméter insistiu embora tivesse uma suspeita.

-Andrômeda... Shun de Andrômeda; Hades falou quase num sussurro.

-Ah! Agora eu entendi; ela falou casualmente. –E isso te aborrece por quê? – a divindade perguntou depois de alguns minutos de silêncio, pensando na melhor forma de abordar aquilo sem aborrecê-lo ainda mais do que ele já estava.

-Não é isso, eu só... Não sei explicar, só não esperava por isso talvez; ele respondeu.

-Hades. Hades; Deméter murmurou, balançando a cabeça levemente para os lados, ao entender por que ele parecia tão angustiado. -Eu sei o que você está escondendo. Talvez falar em voz alta ajude a desentalar esse nó atravessado na sua garganta; ela insistiu.

-Não há nó nenhum, Deméter. Não seja dramática; ele exasperou, começando a se irritar.

-Você está com ciúmes; ela falou taxativa, decidindo pôr um fim naquilo.

-Eu? Com ciúmes de um mortal, isso é ridículo; o Deus dos Mortos ralhou indignado, mas viu um sorriso nada inocente surgir nos lábios da irmã e foi assim que se deu conta de que sua pequena explosão havia revelado mais do que gostaria de deixar transparecer.

-Não de um mortal qualquer Hades; ela respondeu olhando-o de maneira enigmática. -Longe de mim adicionar mais sal a sua ferida, mas não há como apagar o que ele representou na vida de Cora e visse versa, tampouco como ela marcou a dele; a divindade falou em tom sereno, tentando apaziguá-lo. -É normal sentir ciúme, embora você acredite que esse é um sentimento puramente mortal, temos Hera e Hefestos como exemplos de que, os nossos também o sentem;

-Isso é ridículo; ele exasperou, levantando-se da cadeira, inquieto demais para ficar parado.

-Não, não é... Os sentimentos não ficam mais guardados em uma caixinha, para que você tire de dentro somente os que você quer ou os bons; Deméter falou com um fino sorriso nos lábios. -Se e quando você sente, desde o momento que abriu os olhos pela primeira vez nessa existência, você tem o pacote completo. Diria até que isso apenas te torna mais humano, mas... Antes que você queria me enviar para o Tártaro por isso, já lhe digo... Faz parte do pacote, apenas aprenda a lidar com isso;

-Você não está ajudando; Hades resmungou aborrecido.

–De qualquer forma não há motivos para ciúmes neste caso, você sabe que não importa o que aconteça, Cora sempre irá escolher você. Então, acredito que a verdadeira questão do que realmente está tirando sua paz é bem mais profunda e complexa; a divindade completou em tom assertivo.

-Por um momento eu duvidei; ele respondeu num sussurro, deixando-se cair na cadeira novamente, enquanto os orbes verdes perdiam-se em algum lugar no templo. –Por um momento eu perdi a fé;

-Vocês passaram por muitos momentos conturbados e confesso que tive minha parcela de culpa nisso; a divindade falou em tom de lamento.

-De qualquer forma, eu não tinha esse direito; ele falou serrando os punhos.

-O que minha filha pensa sobre isso? –Deméter perguntou.

-Que já passou, que eu não deveria me preocupar, mas...;

-Cora está certa; a senhora o cortou. –Todos os casais têm seus momentos conturbados – altos e baixos - mesmo quando acham que tudo é perfeito. Eu sei que às vezes existem coisas no passado que pesam naquilo que somos hoje, mas não tem como viver tanto quanto nós vivemos Hades e nunca ter cometido um erro sequer; ela comentou gesticulando nervosamente. – Mas você não pode deixar que isso continue ditando o caminho que você tem a seguir;

Respirou fundo passando a mão pelos cabelos, embora desejasse que fosse dessa forma, não era tão fácil esquecer que, por muito pouco não perdera a companheira, não apenas pelo confronto que tivera com Harmonia antes das guerras começarem, mas a quase cinco anos atrás, poderia tê-la perdido para sempre.

-Cora te ama Hades, nada nem ninguém vai mudar isso; Deméter falou em tom suave, chamando-lhe a atenção. –O que aconteceu entre eles faz parte do passado;

Nunca mais queria voltar a sentir aquela sensação de impotência que tivera quando as portas do templo em Heinstein se abriram. Quando a luz ofuscante arrefeceu, não foram os olhos verdes de Cora que os seus encontraram e sim, um par tão sombrio e gelado quanto os seus e sentiu como se seu coração fosse parar quando a viu abraçá-lo tão forte, como se sua vida dependesse disso.

Naquele momento soube que seu destino, sua alma e seu coração estavam nas mãos de um mortal e que a decisão dele mudaria o curso de sua existência para sempre.

-Talvez o que mais te incomode nisso tudo é o fato de você não conseguir odiá-lo; Deméter comentou em tom pensativo.

-O que? –ele perguntou surpreso.

-Pensando bem, isso realmente faz sentido; a divindade continuou, como se houvesse se perdido em seus próprios pensamentos. – Ele é impertinente e ousado, e é irritante o fato dele não nos temer, mas... Eu sei que 'eu' não consigo odiá-lo e compreendo por que isso é ainda mais frustrante para você;

-Deméter; Hades murmurou dando um pesado suspiro.

-A existência dele é ínfima perto da nossa e do tempo que existimos, mas ele já teve que lidar com tantas perdas em tão pouca idade, tantos amigos perecendo por lutarem pelo mesmo ideal; Deméter comentou fitando-o com um olhar triste. -Ele poderia ter feito uma escolha diferente e nenhum de nós teria a quem culpar, a não ser nós mesmos; ela completou.

-E por que não fez? –Hades perguntou num fraco sussurro.

-Acho que está na hora de você descobrir sozinho, eu não tenho as respostas. Por que não pergunta a ele você mesmo? –Deméter sugeriu.

-Uhn? –ele murmurou confuso.

-Eu sei que, esse assunto referente a Athena trouxe de volta a lembrança do que aconteceu no nosso passado, mas acredito que, em vez de se martirizar achando que pode classificar e colocar todos os mortais dentro de um único compartimento denominado 'natureza humana', você precisa ir direto ao ponto. Pergunte a ele, por que ele tomou aquela decisão? E por que isso importa tanto ainda?

-VOVÓ. PAI; Atreu gritou correndo até eles, seguido por uma ninfa que trazia nas mãos uma bandeja com os lanches.

-Talvez você tenha razão; ele murmurou depois de alguns segundos de reflexão. –Pode cuidar de Atreu para mim por mais algumas horas?

Deméter assentiu compreensiva. Saber a verdade poderia ser doloroso, mas não saber, era bem pior.

Levantou-se, vendo o olhar curioso do filho sobre si, afagou-lhe os cabelos antes de abaixar-se na altura de seus olhos, pousando um beijo em sua testa.

-Vou precisar resolver uma coisa e logo estou de volta, enquanto isso, você pode ficar mais um pouco com sua avó? –ele perguntou.

-O senhor volta logo? – a criança indagou já concordando com o pedido, enquanto abraçava fortemente o pai.

-Volto; Hades falou, guiando o menino até a avó.

-Boa sorte; Deméter respondeu enquanto acomodava Atreu na mesa, para que ele tomasse o lanche.

-Papai vai voltar logo, não é vovó? – a criança indagou, assim que viu o pai desaparecer do templo.

-Talvez ele demore um pouquinho querido, mas assim que ele resolver o que precisa, vira te buscar; a divindade falou com um sorriso terno. -Até lá, você poderá brincar o quanto quiser; ela completou, vendo o menino assentir, contente. – Só espero que seu pai finalmente possa se libertar dessas preocupações; ela sussurrou mais para si do que efetivamente para Atreu.

Poderia passar horas dissertando para o irmão tudo que vira ao longo dos séculos sobre a natureza humana, de Aristóteles a Darwin, cada um tinha algo a dizer sobre isso, não apenas eles, mas muitos outros desde que o mundo surgiu a partir de microscópicos grãos de poeira estelar e uma grande explosão.

-Vovó? – o pequeno chamou, assim que terminou o lanche.

-O que foi querido? – a divindade indagou mantendo um olhar atento sobre a criança.

-O que é natureza humana? – ele perguntou curioso, já ouvira antes a expressão no meio de alguma conversa entre os pais e novamente agora, o que acabou por lhe chamar a atenção.

-Ahn! Como te explicar isso? – Deméter murmurou, pensativa. – Seu pai já lhe contou como nosso universo se originou e como nascemos, não é? – ela indagou, vendo-o assentir. -Certo! Então, quando os primeiros humanos começaram a caminhar pela Terra, com eles nasceu o que chamavam de 'natureza humana'. Por natureza sempre podemos entender como algo que vem da própria terra, como as sementes que germinam e crescem depois de serem regadas e banhadas pelo sol; ela explicou, indicando a variedade gigantesca de plantas ao redor deles.

-Mas existem muitos tipos? - ele apontou confuso.

-Sim, por isso ela se chama natureza, por ser tão vasta e diferente; Deméter falou com um sorriso diante do olhar confuso do neto. -Os humanos, quando você pensa bem sobre isso, também são como as plantas - são germinados para brotarem, ou melhor, nascerem - crescem ao serem alimentados e regados, principalmente pelo conhecimento e esse impulso é tão arraigado em seu dna como a própria necessidade de respirar, comer ou dormir; ela explicou, vendo-o assentir.

-Por exemplo vovó, quando eu tenho fome, minha barriga faz barulho e se eu brinco muito com Cecil e Dorian, mamãe me coloca na cama para dormir depois, não é assim? – a criança indagou, inocentemente.

-Sim querido, são coisas que você faz, porque são reflexos naturais, igual a respirar. Seu corpo simplesmente sabe como trabalhar para que você continue vivo; ela explicou calmamente.

Talvez Hades quisesse lhe esganar por ter uma conversa tão complexa como aquela com o pequeno, mas se ele estava realmente considerando deixar que Atreu fosse para a Terra, era melhor que o menino aprendesse aos poucos que nem tudo era dor e sofrimento, como ela mesma pensara um dia sobre o submundo.

Aliás, Darwin diria que a natureza humana era o resultado das adaptações as pressões do meio ambiente e da constituição hereditária dos seres que sobreviviam as intemperes da vida. Por exemplo, aquele que hoje é um cavaleiro que luta por seus ideais, protegendo aqueles que estão a sua volta, amanhã será o mestre que passará esse mesmo conhecimento adiante.

Embora essa visão fosse um pouco dura e tivesse algumas lacunas, gostava muito de acreditar que Aristóteles também tinha algo bastante peculiar a dizer sobre isso, principalmente porque ele fora um dos primeiros a acreditar que a natureza humana estava diretamente ligada a alma.

Sim, a mesma que abrigava tanto as paixões, como o caráter - que coexistiam em essência num único individuo, os chamados polos opostos. Do caráter e da ética vem a necessidade de viver em grupo, enquanto as paixões evocam o estado primitivo, mas por enquanto, isso seria demais para uma criança tão pequena aprender; ela concluiu em pensamentos.

-Querido, algo que aprendi ao longo da minha existência é que você pode tentar encaixar tudo o que sabemos sobre 'natureza humana' dentro de uma caixa, mas o 'ser humano' esse é muito mais complexo;

-Por que vovó? – ele perguntou confuso.

-Porque os humanos são os únicos que tem a capacidade de se superar e cometer pequenos milagres; Deméter explicou com um sorriso sereno. -Quando você acha que sabe tudo sobre eles, somente porque os estudou durante cinco ou seis mil anos, nasce alguém com a capacidade de contrariar tudo que você achava que sabia;

-Não entendo; Atreu murmurou, enquanto a avó o acomodava na cadeira que seu pai ocupara anteriormente e pegava um livro de dentro de sua cesta.

-Vou te contar uma história que poderá te ajudar a entender; a divindade completou, afagando seus cabelos arrepiados, antes de apoiar o livro sobre o colo abrindo-o. Talvez Hades estivesse de volta antes da história acabar; ela pensou.

Continua...

Nota:

Cecil e Dorian são irmãos gêmeos, filhos de Hypnos. (surgiram pela primeira vez em 'Crônicas de Amor e Confusão XI – Xeque Mate').

Harmonia e Heitor são irmãos gêmeos, filhos de Artêmis e Tohma. (surgiram pela primeira vez em 'A Virgem de Gelo').

Atreu filho de Hades e Cora. (personagem citado pela primeira vez em Luthier).