Remus sempre teve muito inveja das pessoas que sabem com toda a certeza o que querem fazer da vida. Pensando bem, inveja talvez não seja exatamente a melhor palavra. Se tivesse que colocar esse sentimento em palavras, ele provavelmente o descreveria como um tipo de admiração, misturada com uma pitada de surpresa. E talvez um pouquinho, só um pouquinho, de inveja mesmo.
A verdade é que Remus nem sempre quis ser um livreiro.
Desde que se entendia por gente, ele sabia que era esse seu destino, e encarava o fato com a serenidade e a certeza de quem sabe que tem um trabalho a cumprir. Enquanto os colegas se fantasiavam de astronautas, bombeiros ou médicos, Remus não via sentido em fantasias. Ele era um livreiro, mais por circunstâncias do que por desejo, mas inevitavelmente um livreiro.
Mas uma coisa era certa: Remus amava livros e isso aliviava, e muito, o fardo de ser quem é. Enquanto o pai tentava ensinar o básico sobre contas, makerting e fluxo de caixa, Remus se perdia entre pensamentos e estantes, entre romances e mistérios e entre as caixas empoeiradas do estoque.
Na escola, o pequeno garoto loiro era praticamente invisível.
Enquanto os colegas aproveitavam as horas livres para jogar bola, correr ou inventar brincadeiras, Remus podia ser encontrado no canto da sala, agarrado em seus livros. As outras crianças não entendiam como Remus podia continuar na sala quando o sol brilhava lá fora, mas ele não se importava. Essa era a parte boa do seu destino: a chance de ser deixado em paz com seus livros.
E foi assim por algum tempo, até aquele dia, quando Remus tinha mais ou menos seus dez anos.
- O que você tá fazendo?
Remus não conhecia aquela voz. Ele levantou a cabeça, mas tampouco reconheceu a fonte.
- Lendo.
- Huuum... Você não vai sair pra brincar lá fora?
Remus franziu a testa. A voz vinha de um outro garoto que devia ter mais ou menos a sua idade. Remus não tinha prestado muita atenção, mas achava que era o mesmo garoto que a professora tinha apresentado como um aluno novo mais cedo.
- Eu prefiro ficar aqui, mas você pode ir se quiser.
- O que você tá lendo? – respondeu o garoto, ignorando completamente a dica, o que só deixou Remus mais irritado ainda.
- É um livro de fábulas.
- Poxa... – o menino se aproximou mais, sentando-se ao lado de Remus e olhando as páginas do livro aberto – Tem muitas palavras nesse livro.
- Fábulas são assim mesmo. – Resignado, o pequeno Remus começava a descobrir que se livrar do colega seria mais difícil do que ele imaginara– Tem um montão de palavras. E bichos falantes. E sempre tem uma lição de moral no final.
- Você sabe mesmo um montão sobre livros.
- Minha família tem uma livraria. – Todo mundo na escola sabia disso, mas, aparentemente, o garoto novo ainda não tinha recebido o memorando. – Então eu também preciso saber tudo sobre livros.
- Por quê?
- Porque eu tenho que cuidar da livraria quando eu crescer.
- Por quê?
- Porque se eu não cuidar, ninguém vai cuidar. – Na cabeça de Remus esse pensamento parecia tão lógico que ter que explicá-lo era quase uma ofensa. – E aí a livraria vai acabar.
- Huuuuuuuum... – O garoto levantou e caminho pela sala, como se estivesse tentando absorver as palavras que o loiro acabara de dizer. – Mas se não foi você que começou, por que que é você quem tem que continuar?
Remus não tinha uma resposta para aquela pergunta. Como explicar para alguém que é completamente livre que, para você, a vida já veio toda escrita, como um livro de regras a ser seguido?
Por que é o meu legado? Por que é a história da família? Essas eram razões que Remus já havia ouvido inúmeras vezes, mas que, na prática, ele não entendia muito bem. A única coisa que ele entendia é que ele precisava se esforçar, e prestar atenção nos pais, porque uma hora eles não estariam mais ali e ele precisaria tocar a livraria sozinho.
- Eu sou o James, por sinal.
- Reeeeeeeeemus!
Remus não precisava se virar para reconhecer a origem da voz. Em menos de um minuto, o adolescente loiro tinha pendurado em seu pescoço uma versão deprimida do seu melhor amigo.
- Deixa eu adivinhar... As flores não funcionaram?
- Não...
A versão adolescente de James Potter tinha os mesmos olhos castanhos e cabelos bagunçados, mas com algumas espinhas a mais e um jeito desajeitado característico da idade. Agora sentado no balcão da livraria, James folheava, sem interesse, os livros que Remus acabara de retirar do estoque.
- Por que ela não me dá uma chance? - James fechou um dos livros, batendo com a capa dura na testa – Será que o problema sou eu? Será que eu não faço o tipo dela?
Delicadamente, Remus tirou o livro das mãos do amigo, torcendo para que o golpe não tivesse danificado a capa. Para a sua sorte, uma breve inspeção revelou que estava tudo em ordem.
- Sem autoagressão com os livros! – Remus falou ríspido, mas sem conseguir esconder uma risadinha no final. – Já considerou que, talvez, assim, só talveeeez, a sua insistência seja um problema?
- Nah, não deve ser isso. Que garota não gostaria de ter James Potter correndo atrás dela? – James se deitou no balcão, olhando para o teto de madeira da livraria.
- Claro... Não deve ser isso... – Remus murmurou em um tom cínico.
- Lilly gosta de livros... – James continuava olhando para o teto, conversando mais com si mesmo do que com Remus. – E se eu convidar ela para um encontro aqui na livraria?
- Se ela recusou todos os seus outros encontros, por que você acha que ela vai aceitar esse? – Remus cutucou James para que tirasse as pernas do balcão de atendimento. – E, além do mais, a escola é aqui perto, você não acha que se ela quisesse ela só viria para a livraria sem você?
- Tem razão... E se disfarçarmos de outra coisa? De repente um trabalho de escola... Já sei, um encontro duplo. Eu e você, Lilly e aquela amiga dela.
Remus gelou. Não conseguia pensar em nada mais aterrorizante do que ir em um encontro duplo com James e Lilly. Não é que Remus tivesse medo de garotas ou coisa do tipo. A verdade é que ele nunca sentiu necessidade de se envolver com outras pessoas. Para ele, bastava os romances dos seus livros empoeirados.
- Passo. Você vai ter que resolver essa sem mim.
- Ah, qual é, Remmy. – James se sentou novamente no balcão, parecendo desesperado. – Não é como se você pudesse evitar as pessoas pra sempre. Uma hora você vai ter que sair desse seu casulo e conhecer alguém também.
- Ou, não. – Remus riu, apontando para o livro de capa dura que acabava de re-estocar na prateleira – Podemos ser só eu e o Sir Arthur Conan Doyle, re-estocando livros por toda a eternidade.
- Sei... E é isso que você realmente quer?
O que importava o que ele queria? Era o que era certo.
Ele sabia que uma hora teria que parar e arrumar uma esposa, afinal, ele precisaria de mais Lupins se quisesse garantir a continuidade da livraria.
Mas, no fundo, no fundo, Remus sabia que não conseguiria passar esse fardo para frente. A ideia de criar uma criança que crescesse como ele, que não tivesse o direito de sonhar com um futuro diferente, o aterrorizava.
Com o tempo, ele aprendeu a gostar de ser um livreiro, mesmo que tivesse a plena noção de que, como gestor, deixava muito a desejar. Remus amava os livros, os clientes e a sensação indescritível de encontrar a história perfeita para cada pessoa.
Mas e se o seu filho ou filho fosse diferente? Se ele não gostasse tanto assim de livros? E se quisesse ser professor, médico ou astronauta? Será que Remus seria capaz de descarregar todo o peso da tradição familiar nas costas de outra pessoa?
Remus era empático demais para forçar os sonhos e as expectativas alheias em alguém que amasse, mesmo que essa pessoa nem existisse ainda. E ele sabia disso.
Naquela noite, sozinho em seu quarto, Remus fez um pacto consigo mesmo. Um pacto de que jamais passaria o livro de regras da vida que recebera para frente. Que, enquanto ele respirasse, ele defenderia o direito das pessoas de sonharem e definirem o próprio destino. Um pacto que valeria para qualquer pessoa, menos para ele mesmo.
Embora os médicos tenham dito que Remus teve uma recuperação excelente, ou "quase milagrosa", como a enfermeira da noite gostava de repetir, ainda levaria algumas semanas depois da sua alta para que ele recuperasse toda a sua capacidade pulmonar.
Nesse meio tempo, o garoto loiro ainda lutava para fazer algumas tarefas simples, como caminhar ou subir as escadas e, por isso, ambos acharam que o melhor a fazer seria dar um tempo. Não havia mais livraria, mas não haviam mais inimigos também. Quaisquer decisões importantes poderiam esperar até que Remus estivesse melhor para encará-las.
Assim, a rotina na velha casa dos Lupins voltou ao normal. De manhã, Sirius acordava primeiro, preparava o café da manhã e ajudava Remus a descer. De tarde, eles ficavam de bobeira na sala, lendo, conversando ou, simplesmente, aproveitando a companhia um do outro.
Uma tarde, Remus se pegou pensando se, na verdade, o paraíso não seria um lugar muito parecido com esse. Apenas uma sala, uma lareira, muitos livros e Sirius. Naquela casa, que sempre foi tão vazia, de repente não faltava nada.
Conforme os dias foram passando o folego de Remus foi retornando. Um dia, ele desceu sozinho para o café. No outro, tomou banho sem a ajuda de Sirius. No terceiro, subiu as escadas sem parar para respirar.
Cada pequena conquista aliviava o estresse de ambos mas aumentava a certeza de que, atrás da nova porta de madeira, existia uma realidade que precisavam encarar. E ela não iria embora sozinha.
Quatorze dias depois da alta, o elefante atrás da porta tinha crescido demais. Era hora de começar a encarar a realidade e ambos sabiam disso.
- Remus...
- Eu sei. – Remus suspirou. Sentado na poltrona, ele podia ver a porta claramente. – Sabe... Quando eu era pequeno, eu queria ser como as outras crianças e ter a liberdade para ser o que eu quisesse.
Era impossível esconder a surpresa no rosto de Sirius. Nunca tinha passado pela cabeça do moreno que Remus já tivesse sonhado em ser qualquer outra coisa que não um livreiro.
- Não é que eu não goste da minha vida, não me leve a mal. Eu adoro o meu trabalho. Mesmo. – Remus agora encarava o namorado, com uma expressão pensativa. – Mas é que eu nunca tive a liberdade de querer ser alguma outra coisa. Eu sempre fui o que me mandaram ser. E isso não é muito justo, né?
Quase institivamente, Sirius saiu do sofá onde estava e se encaixou ao lado de Remus. Os dois ficaram apertados no pequeno espaço da poltrona, os braços de Sirius envolvendo o namorado. Na sala silenciosa, a batida dos dois corações soava como uma sinfonia nas paredes.
- Me desculpa pelo que eu falei. – A voz de Remus não era mais do que um murmúrio. – Eu não quis dizer aquilo.
- Você não falou nada que fosse mentira, lobinho.
- Não... Mas eu fiz parecer que o problema era você, e isso não é justo. – Remus afundou o nariz no pescoço do namorado, deixando-se inebriar pelo cheiro dele. – Eu já tinha decidido que não teriam mais fotos na caixa muito antes de te conhecer. Acho que é por isso que eu não quis colocar a minha... Porque se eu colocasse, todo mundo ia saber que a culpa é minha.
- O que você quer dizer?
- Eu jamais seria capaz de ter um filho e colocar todo esse peso nele, Sirius. – O loiro pressionou ainda mais o nariz, como se quisesse abafar o som das suas palavras. – Você consegue imaginar o que é crescer escutando que só existe um caminho na sua vida. E que todo o peso dos seus antepassados é seu agora?
- É por isso que você decidiu que ia passar o resto da sua vida sozinho com os fantasmas nessa casa?
- Era um bom plano. Mas aí eu acabei sendo adotado por um cachorro preto gigante. - Remus começou a rir. Uma risada abafada, pressionada no peito de Sirius. – E quando eu tentei me livrar e voltar para o caminho, eu descobri que era impossível viver sem ele.
- Era um péssimo plano, lobinho. – Sirius abraçou o namorado ainda mais forte. – Mas era um plano bem Remus mesmo.
Os dois ficaram alguns minutos assim, apenas apreciando o calor um do outro. Se haviam aprendido alguma coisa nos últimos meses é que eram incrivelmente sortudos por estarem juntos.
- E agora? – Sirius ajeitou a franja do namorado, tirando um fio que insistia em cair sobre os seus olhos. – Agora que você pode ser o que quiser, o que você quer ser?
- Eu não sei... Acho que eu não tive os anos para pensar que todo mundo tem. Acho que eu só sei ser um livreiro mesmo. – Remus suspirou e fechou os olhos. – Eu gostaria de ter visto o clube do maroto funcionando... A livraria cheia de clientes... As crianças aproveitando os livros... Você como Paddy brincando com elas...
- É isso que você quer, Remus?
- Eu não sei... A gente não tem o dinheiro pra reformar tudo de novo e, mesmo que tivesse...
- É o que você quer? – Sirius segurou o queixo de Remus com os dedos, obrigando o loiro a olhar para ele. – Porque se for o que você quer, eu vou fazer acontecer.
Remus não respondeu. Apenas aproximou o rosto de Sirius, colando seus lábios nos do namorado. Era toda a resposta que o moreno precisava.
N/A: 10 anos. Muita coisa aconteceu em 10 anos. Eu me formei, me casei, me mudei... E tomei um susto quando chegou notificação de que alguém tinha favoritado essa história, 10 anos depois.
Tem 10 anos que eu não escrevo uma fanfic, mas, como eu odeio histórias inacabadas, achei que ela precisava de um final. Esse não é o final, claro, mas é um começo. Quem sabe, dessa vez, eu não consigo terminá-la?
Acho que, para manter a tradição, é de bom tom responder os comentários, né?
Mesmo que eu ache que a maioria das pessoas não acesse mais esse site, rs. Será que vocês também vão receber uma notificação do passado, como eu recebi?
Fermoni: fico feliz que tenha gostado. Confesso que eu tive que reler a fic toda para poder continuar (10 anos, né) e fiquei chocada também. Como eu consegui ser tão malvada com os dois?
Reeamorim: será que você vai receber e-mail dessa vez? Espero que sim, eu pelo menos adoro rever uma historia. Desculpa pela demora!
A Snape: quem sabe, né? Não sei se vamos chegar tão fundo nessa fic, maaaaaaaaaaaas...
Sora Black: antes tarde do que nunca, né? Não sério, desculpa.
buggy time: o nick é pelo palhaço do one piece? Adorei! Demorou um pouco mais do que você esperava (provavelmente) mas eu vou tentar terminar a história, eu juro.
