Parecia só mais um dia chegando ao fim enquanto Remus voltava do mercado para casa pelo caminho que fazia todas as semanas. Apesar do frio que fazia, a neve tinha parado de cair, criando a possibilidade perfeita para Remus fazer suas compras semanais. Já havia cruzado a última esquina quando escutou os gritos que dão inicio a essa história.

- Fora daqui, passa!

Anos depois ele ainda se perguntava o que teria acontecido se simplesmente tivesse ignorado aquela cena e seguido em frente como sempre fazia. Em vez disso, olhou para a origem da voz, bem a tempo de ver um grande cachorro negro correr porta afora, seguido de perto por uma gorda senhora que parecia furiosa.

- Se você roubar comida da minha loja de novo eu juro que te mato!

A senhora era uma figura conhecida da rua onde Remus morava. Possuía uma padaria e a habilidade de gritar muito alto e ficar vermelha como um pimentão assustadoramente rápido. O cachorro não, ele era uma novidade. Grande e preto, tinha olhos cinzas muito vivos e uma pata machucada que lambia sem parar. O seu pelo estava embaraçado e sujo, mas nem por isso parecia menos majestoso. Não era o tipo que as pessoas acolheriam, não... Era mais um solitário. Como Remus.

- Você machucou a pata? – Perguntou, se aproximando lentamente para não assusta-lo. O cachorro parou imediatamente, observando Remus.– Não se preocupe, eu não vou te fazer mal.

Parou a uma distância segura, não queria que o cão se assustasse e saísse correndo. Precisava chegar mais perto para examinar a pata machucada. Andou mais alguns passos com muito cuidado e se abaixou, ficando na mesma altura que o canino. Era impossível não notar aqueles grandes olhos cinzas como holofotes na escuridão, observando cada movimento que Remus fazia e se enchendo de curiosidade. Era quase como se o grande cachorro fosse capaz de entender o significado de sua palavras e Remus se sentia um tanto louco por continuar falando.

- Posso?... – Estendeu a mão, tentando alcançar a pata machucada. O cachorro encolheu instintivamente a perna, rosnando em resposta. – Acho que isso é um não.

Mais de perto, Remus podia ver todas as cicatrizes que cobriam o animal. Com certeza não era a primeira vez que alguém tentava machuca-lo.

- Você roubou comida daquela loja? Deve estar com fome...

Remus vasculhou a sacola de compras que trazia do mercado. Com certeza o cão não ia se interessar pelos biscoitos ou frutas, mas talvez Remus tivesse algo interessante. Talvez ele pudesse achar algo como... Salsichas.

- Você quer? – Remus tirou um belo e suculento pacote de salsichas recém-saídas do açougue de dentro da sacola, o suficiente para atrair a atenção do canino que salivava. O cão olhou para a salsicha e então para Remus e de volta para a comida. Por fim, virou o rosto, com todo o orgulho que um cachorro de rua pode ter. – Ahn? Não? Ok...

Como pode um cachorro ter um senso de orgulho tão grande a ponto de recusar salsichas? Esse era realmente um exemplar único. Se levantando, Remus apontou para uma casa grande, a alguns metros dali.

- Olha, a minha casa é aquela ali. Eu vou entrar e deixar a porta aberta. Se você mudar de idéia tem um pacote de salsichas lá te esperando. E talvez possamos dar uma olhada nessa pata...

Sem olhar duas vezes, Remus deu as costas ao cachorro, fazendo questão de deixar o pacote bem à vista e torcendo para a tentação ser maior. Hora de ver quanto dura esse orgulho.

Deixou a porta estrategicamente entreaberta e se sentou em uma cadeira para esperar. Não demorou muito para que um focinho aparecesse no canto da porta, seguido por um par de olhos e duas orelhas pontudas. Ninguém resistia a salsichas frescas!

- Que bom que veio. – Disse, deixando o pacote de salsichas no chão e fechando a porta. – Agora, que tal olharmos essa pata?

Remus se aproximou, estendendo a mão para a pata que o cachorro encolhia, se surpreendendo pela falta de reação do canino. A falta de rosnados parecia um bom sinal em comparação a cinco minutos atrás. Atento, o cachorro se limitava a observar e gemer enquanto o outro examinava tudo com uma agilidade impressionante.

- Parece que não quebrou nenhum osso... – Disse, pressionando de leve a parte inchada, fazendo o cão soltar um ganido agudo. – Desculpe. Isso está mau... Acho que não vai conseguir andar direito por um tempo e só vai melhorar se você ficar quieto.

O cachorro não pareceu muito feliz com a notícia, e Remus achou que estava realmente enlouquecendo por compreender isso. Levantou-se e andou até a pia, enchendo uma vasilha de água fresca. Era loucura trazer um cachorro de rua para dentro de casa, mas não podia simplesmente jogá-lo de volta na rua, tinha coração demais para isso.

- Você pode ficar aqui essa noite... Eu tenho comida e água e tem um tapete se quiser dormir. Não é muito, mas é quente e acho que melhor do que o que você está acostumado. – Disse, apontando para um grande tapete perto da porta. – Amanhã podemos cuidar direito dessa pata.

Pela primeira vez desde que se encontraram, o grande cachorro abaixou as orelhas em agradecimento e Remus sentiu seu coração amolecer. Lilly o mataria se soubesse disso e James faria alguma piada sobre ele sempre trazer animais feridos para dentro de casa, mas nada disso importava, aquelas orelhas faziam tudo valer a pena.


Nesse ponto da história, é preciso saber algumas coisas sobre Remus. Seu nome completo é Remus J. Lupin e ele é o feliz proprietário de uma livraria nos subúrbios londrinos. Bom, é verdade que ele seria um proprietário mais feliz se tivesse clientes de vez em quando. Além de seu amigo de infância, James, e sua esposa, Lilly, que costumam visitar com frequência, Remus é o único habitante de uma aconchegante casa nos fundos da livraria, herdada depois da morte dos seus pais.

Um outro fato que vocês podem achar particularmente interessante é que, quando Remus acordou na manhã seguinte e preparou o seu café da manhã, com duas torradas e chá, o grande cachorro já havia desaparecido, deixando uma porta da cozinha trancada e jogando a chave por baixo da porta. Segurança acima de tudo.

Como um cachorro manco foi capaz de destrancar a porta da cozinha, sair, trancar a porta novamente e jogar a chave por baixo da porta foi uma pergunta que assombrou toda a manhã de Remus, enquanto arrumava os livros nas prateleiras da loja vazia. Talvez o cachorro tivesse um dono que fosse especialista em destrancar portas. Talvez fosse o cachorro de uma intrincada rede de ladrões. Talvez ele só tivesse pulado para fora de um dos muitos livros na sessão de fantasia.

Enquanto pensava em ladrões quebradores de fechaduras e cachorros ninjas, Remus não percebeu quando o sininho da porta avisou que um raro cliente havia entrado na livraria.

- Com licença?

Remus se virou no susto, somente para se deparar com um grande par de olhos cinzas observando divertido. Preso aos olhos havia não um grande cachorro, como Remus esperava a principio, mas um homem alto e moreno, de cabelos lisos na altura da cintura e uma tipoia presa no pescoço apoiando um dos braços. Vestia um casaco longo e cachecol grosso, todo pintado da neve que caia fraca lá fora.

- Você é o dono dessa livraria?

Por um momento, Remus ficou completamente sem reação, seus olhos indo do braço machucado para os olhos cinzas do cliente. Quando recuperou a habilidade de falar, Remus teve que suprimir a vontade de perguntar coisas como "De onde você tirou esses olhos?" ou "Onde você machucou essa pata?" já que, por experiência própria, agir como um louco não costuma ser muito bom para os negócios. Ao invés disso, simplesmente balançou a cabeça afirmativamente e colocou o livro que estava segurando de volta na prateleira.

- Sou Sirius Black! – Disse o homem, estendendo a mão saudável com um sorriso.

- Remus Lupin. – Respondeu Remus, limpando a mão desajeitadamente no avental empoeirado e apertando a estendida.

- Remus... – Sirius abaixou os olhos, saboreando o gosto das palavras. Como que voltando de um transe, o moreno retornou a si, com o mesmo sorriso anterior. – Eu estava passando e resolvi entrar. Que loja aconchegante que você tem aqui.

- Obrigado, era dos meus pais.

- E eles fizeram um ótimo trabalho.

Enquanto examinava as lombadas dos livros, Sirius percorria as prateleiras com uma velocidade impressionante enquanto Remus tentava juntar as peças do que estava acontecendo com o mundo. Para um simples vendedor de livros, essa havia sido sem dúvida as 24 horas mais interessantes da sua vida.

- Sim, eles eram muito apegados a essa livraria.

- Eram? – Os olhos cinzas se voltaram para Remus e então se abaixaram ao notar a tristeza no outro par de olhos. – Ah, sinto muito...

- Tudo bem, já tem um tempo. - Sentindo que o moreno o olhava, Remus afastou o pensamento e voltou a olhar as prateleiras. – Então, Sirius, que tipo de livro procura?

- Ahn, eu não sei ao certo... Na verdade achei que você podia me dar uma sugestão...

- Veio ao lugar certo... – Remus observava as prateleiras habilmente, com a pericia de quem cresceu entre os livros. – Que tal Oscar Wilde e a história de um rapaz que nunca envelhece? – "Belo como você", Remus teve que se segurar para não acrescentar.

- Ah, eu não sei, esperava algo mais... Diferente.

- Humn... – Remus se virou de costas, mudando completamente de estante e voltando ao seu mundo de livros. Depois de alguns minutos resmungando coisas inaudíveis para si mesmo, puxou um pequeno livro verde esmeralda. – Que tal Isaac Asimov e as suas histórias sobre um futuro que nunca aconteceu?

- Interessante, mas eu prefiro histórias mais Sombrias. Sou um apaixonado por suspense clássico.

Remus mudou novamente de prateleira, revirando livros antigos e espalhando novamente toda a poeira que tinha passado a manhã limpando. Sabia que tinha deixado o exemplar perfeito em algum lugar, era só procurar, tinha que estar por ali...

- Achei! – Remus puxou um grande e pesado livro preto que parecia antigo e esquecido. – Edgar Allan Poe! Dentes arrancados, vielas escuras, gatos pretos e assassinatos. Garantia de arrepios ou o seu dinheiro de volta.

Sirius pegou o livro, folheando as páginas e parando para ler uma palavra ou outra em cada.

- Parece promissor. Quanto eu te devo?

- Vinte e um... – Consultando a etiqueta na parte de trás do livro, Remus adicionou. – e trinta.

Sirius acenou com a cabeça, apoiando o livro embaixo do braço enfaixado e enfiando a mão nos inúmeros bolsos do casaco longo que usava até encontrar duas notas de vinte, que entregou prontamente para Remus.

- Fique com o troco!

- Obrigado! – Remus agradeceu educadamente enquanto Sirius caminhava em direção à porta. – E volte sempre!

- Não se preocupe. – Disse o moreno, com uma piscada que fez o pobre Remus corar da cabeça ao pés. – Eu vou...

Enquanto tentava encaixar seus pensamentos de volta no lugar, Remus assistiu enquanto Sirius virava a esquina, sumindo de vista e deixando aquele ar de mistério. O que ele quis dizer? Provavelmente ele era só um leitor que tinha gostado do clima da livraria. Mas aqueles olhos cinzas de cachorro...

Cachorro! Remus tinha esquecido completamente do maior mistério que aparecera em sua pacata vida, e agora mais essa... Quais as chances de conhecer um cachorro preto com a pata machucada e um moreno de braço machucado em menos de 24h? Muito poucas, principalmente se você for Remus Lupin.

Com a cabeça cheia de mistérios, Remus voltou à arrumação dos livros até que as luzes do crepúsculo anunciaram que era hora de fechar a livraria e voltar a sua casa como fazia todas as noites. Levantou, terminou de ajeitar os últimos livros, guardou cuidadosamente o avental de volta atrás do balcão e se encaminhou para trancar a porta. Parecia que nada de anormal ia acontecer novamente no mundo até que ele percebeu os grandes olhos cinzas observando do outro lado da rua. Caninos, dessa vez.


N/A: Essa é uma história que eu quero escrever já faz um tempo e, como faz mais tempo ainda que eu não escrevo uma fic de harry potter, achei que era uma boa hora para tentar. Sugestões, reclamações e, principalmente, reviews são muuuito bem vindos e me motivam a escrever o próximo capítulo. =)