QUANDO NOS TOCAMOS

BY DAMA 9

Nota: Os personagens de Saint Seya não me pertencem, pertencem a Masami Kuramada e a Toei Animation.

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Capítulo 17: Fruto Proibido.

.I.

Os gemidos de agonia ecoaram a sua volta, os lamentos levados pelo vento serviam como aviso para não avançar mais, porém não tinha escolha. Fora mandado até ali e mesmo ele, precisava seguir as regras. A embarcação deslizava pelo rio de prata lodosa com uma lentidão perturbadora.

Engoliu em seco, tentando manter-se no centro do barco e não olhar para os lados, enquanto seu companheiro de viagem tinha a face levemente esverdeada.

Estavam cometendo um erro, isso era óbvio, mas quando seu pai decidia bancar o onipotente senhor do universo e lhe dava uma ordem - não podia recusar, ainda mais quando a Terra fora banhada pelo caos muito recentemente.

-Chegaremos ao outro lado em breve; o barqueiro comentou, enquanto movia o remo sobre as águas.

Sempre pensou que o rio Aqueronte fosse menor, mas desde que entraram naquele barco, sentia como se houvesse perdido horas de sua vida ali dentro e o tempo corresse mais lento do que o habitual.

-Eu poderia simplesmente ter nos transportado para o castelo e evitado essa perda de tempo; Apolo reclamou apoiando-se no beiral do barco, tentando controlar seus enjoos.

-Mesmo deuses do Olimpo seriam mortos se tentassem invadir; Caronte respondeu calmamente, lançando um olhar de esguelha a divindade de cabelos vermelhos. – São poucos os que tem permissão para seguirem diretamente ao castelo e vocês não estão na lista; ele completou sem sentir nem um pingo de remorso por alfinetá-los dessa forma.

-Oras! Como ousa?

-Cale-se Apolo; Hermes falou, dando-lhe uma cotovelada no estomago.

Se Caronte resolvesse jogá-los no Aqueronte, eles seriam arrastados pelas águas turbulentas até o Estige, onde suas almas ficariam presas até sua imortalidade se deteriorar por completo.

-Falta pouco agora; Hermes continuou torcendo as mãos sobre o colo.

Mal a guerra contra os titãs terminara, a Terra entrara em um novo colapso, as plantações estavam queimadas, os rios começaram a secar. Nada mais estava brotando sobre o solo desde que Deméter perdera sua preciosa filha e deixara que sua dor e desalento recaíssem sobre o mundo.

Muitos foram enviados à procura de Cora, até que o Onipotente convocasse os dois, o mensageiro mais veloz e o portador da luz mais intensa que tudo vê. Se alguém sabia para onde ela fora levada, seriam eles e Zeus estava certo ao concluir isso. Como castigo, o pai dos deuses os mandou ao submundo para trazer Cora de volta, Hades não tinha nenhum direito de roubá-la da mãe - ele dissera.

Com um baque seco, o barco bateu nas margens opostas do Aqueronte, o barqueiro saltou da embarcação deixando que as botas afundassem parcialmente no barro, antes de segurar na beira do barco e puxá-lo mais um pouco, de forma que a corrente do rio não os arrastasse de volta, dessa vez sem um guia.

-Podem descer agora; o espectro falou fazendo um breve floreio antes de dar passagem aos dois.

-Não vamos demorar, por favor, nos espere; Hermes pediu, antes de lançar a ele um dracma de prata e se afastar.

-Aqueles que aqui entrarem, devem perder todas as esperanças; Apolo falou, lendo a mensagem sobre o portal do inferno. A partir daquele ponto, se Hades assim o desejasse, poderia obrigá-los a cruzar todo o inferno antes de chegaram ao castelo. Não havia como saber onde iriam parar.

-Andem logo, o Imperador espera por vocês; Aqueronte falou acenando para eles, como se já soubesse qual era o maior temor de Hermes.

Com um resmungo contrariado, Apolo e ele atravessaram o portal e para a surpresa de ambos, viram-se de frente para uma larga escadaria e ao final dela, a entrada para o castelo.

-Hades poderia simplesmente facilitar e entregar Cora de uma vez. Perderíamos menos tempo assim; Apolo reclamou.

Alguns anos atrás Deméter lhe procurara, oferecendo uma parceria particularmente tentadora, formando uma aliança que fortaleceria seu poder diante dos outros deuses do Olimpo. Desde que Athena e Posseidon disputaram a posse sobre a Terra e a divindade dos mares perdera, novas alianças foram feitas.

Um dia quando Zeus deixasse o Olimpo, ele seria a melhor escolha para governar os céus e aliados da primeira geração como Deméter, iriam garantir que Hera não tentasse usurpar esse controle para Ares, ou para sua irmã desequilibrada. Então pareceu uma boa ideia tomar Cora por companheira, juntos teriam poder suficiente para subjugar qualquer um que tentasse lhes derrubar e ela também, seria alguém fácil de lidar, sempre dócil e tranquila. Deméter garantira que ela fosse sempre protegida do mundo.

Mas seus planos ameaçavam ir pelo ralo agora que Hades a levará, Imperador do Submundo ou não, ele não tinha esse direito.

Com um barulho alto, as portas do castelo se abriram, dando-lhes passagem para um grande hall de mármore, repleto de colunas e cristais negros. O frio intensificou-se ainda mais conforme avançavam.

-Saudações, Imperador; Hermes falou ao avistar a divindade graciosamente sentada em seu trono lapidado em adamas.

-O que querem aqui? – Hades indagou em tom frio pouco receptivo a falsos gracejos.

Os olhos gelados passaram por Hermes com desinteresse, indo rapidamente deter-se em Apolo com visível desprezo.

-Majest-...;

-Você sabe muito bem por que estamos aqui, Hades; Apolo cortou Hermes, antes que este pudesse falar.

-Vocês perderam seu tempo; o Imperador respondeu com pouco caso.

-Cale-se, Apolo; Hermes rosnou entre dentes, colocando-se na frente do irmão. Zeus lhe mandara ali para resolver as coisas de forma pacífica, porque nem mesmo o Onipresente queria que o mundo sofresse caso Hades e Deméter viessem a se enfrentar, o mundo já estava mergulhado em caos e fome desde que a divindade agrícola se isolara em Elêusis, recusando-se a dar sua benção as colheitas, enquanto sua filha não fosse recuperada. -Meu senhor, viemos em paz;

-Fale por você; Apolo resmungou.

-Você tem passado tempo demais entre mortais, Apolo. Está perdendo o respeito por seus superiores e esquecendo seu lugar; Hades respondeu, voltando seus olhos para a divindade.

Antes que qualquer um deles pudesse falar, um pulso forte de energia jogou Apolo sobre o chão, como se uma força invisível houvesse o erguido e arremessado com violência, o baque sobre o mármore reverberou sobre as colunas. Com um olhar assombrado, Hermes afastou-se um pouco do irmão, temendo que ele fosse o próximo.

-Aqui não é o Olimpo, pirralho insolente; o Imperador falou pausadamente. -Você não passa de uma criatura insignificante pra mim. O que te leva a crer que pode entrar no meu castelo e exigir alguma coisa?

-Majestade, por favor; Hermes tentou interceder e acalmar as coisas, mas já era tarde demais.

-Cora não te pertence; Apolo rosnou, tentando se erguer.

-Verdade; a divindade respondeu com um fino sorriso começando a despontar do canto de seus lábios. -Nem a você, tampouco;

-Zeus mandou que-...;

-Deméter me prometeu, você não pode interferir; Apolo cortou Hermes novamente, enquanto erguia-se do chão com as vestes empoeiradas.

Sentiu os lábios dormentes e ao tocá-los, as pontas ficaram manchadas do sangue quente que vertida de um corte. Os olhos azuis afiados como lâminas voltaram-se para o Imperador. De sua mão um globo de luz surgiu, concentrando-se na palma e crescendo conforme seus poderes se intensificavam.

Em menos de um segundo o salão se encheu com o som de metal tilintando, espectros armados surgiram de todos os lados que se poderia imaginar. Embora imortais, as duas divindades estavam cercadas pelos cavaleiros mais poderosos daquele reino.

-Vocês não são bem-vindos aqui, partam enquanto ainda me sinto inclinado a deixá-los com vida; Hades falou acenando com uma das mãos, dispensando os dois.

-Zeus nos ordenou que levássemos Cora, você não pode nos deter; Apolo ameaçou, para no momento seguinte sentir seu pescoço ser envolvido por finos fios dourados que se apertaram em volta da pele frágil, cortando sua passagem de ar, fazendo-o sangrar ainda mais. Nunca foi tão humilhado em toda sua existência.

-Mais respeito ao se dirigir ao nosso Imperador; a voz do espectro de Esfinge ecoou no salão, seguido por um acorde agudo de sua harpa.

Os espectros avançaram mais alguns passos, fazendo com que instintivamente Hermes e Apolo se aproximassem mais um do outro, enquanto as lanças afiadas empunhadas pelos cavaleiros prendiam os dois em um círculo fechado.

-Zeus e Deméter podem vir até aqui se quiserem; Hades continuou, indiferente aos dois. -Cora permanecera em meu reino, pelo tempo que ela desejar e se tentarem entrar aqui novamente, serão tratados como invasores... e mortos; ele completou.

No segundo seguinte, Hermes e Apolo eram imobilizados e arrastados por uma horda de espectros de volta as margens do Aqueronte. Com um sorriso sarcástico e um leve menear de cabeça, o barqueiro aceitou os dois pacotes e empurrou seu barco de volta para o rio.

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Sentia o coração disparar e seu corpo estremeceu, escondeu-se atrás de um pilar enquanto as vozes exaltadas ecoavam pelo salão.

-Senhora, por favor. Não deveríamos estar aqui; o espectro murmurou.

Péssima hora para os alarmes tocarem, estavam nos jardins quando um grupo de sentinelas passara por si avisando que tinham ordens de tratar como hostis as divindades que estavam na sala do trono com o Imperador.

A jovem que protegia ficara preocupada e o fizera lavá-la o mais próximo do salão. Hades iria matá-lo se descobrisse que ela estava tão perto da área de conflito, mas de qualquer forma ele iria fazer isso, porque simplesmente não a protegera direito.

-Xiiiii; Cora sussurrou, acenando para ele se calar.

Então sua mãe enviara aqueles dois para lhe buscar, sabia que isso aconteceria assim que sua ausência fosse notada, mas o Imperador não parecia preocupado, aliás, nem mesmo a menção a Zeus causou qualquer onda de preocupação nele.

-Cora permanecera em meu reino, pelo tempo que ela desejar e se tentarem entrar aqui novamente, serão tratados como invasores... e mortos;

A voz dele ecoou pelo salão como um trovão, levando tremores por todo seu corpo. Ninguém nunca fora capaz de desafiar sua mãe e ele, não apenas estava fazendo isso, como desafiava o próprio senhor dos deuses.

-Senhora, por favor; o espectro murmurou nervosamente, conforme os cavaleiros fechavam o cerco no salão. -Venha comigo, por favor. Poderá falar com o Imperador depois;

Relutante, Cora seguiu para fora do salão com o cavaleiro, enquanto ouvia o som das armaduras tilintando sobre o piso. Passou por uma série de corredores que jamais poderia achar novamente se estivesse sozinha, até que chegou numa sala suntuosa, ornamentada com mármore e ouro, tão branca e iluminada como as salas do templo de Zeus em Olímpia.

-Por favor, descanse um pouco aqui senhora. Em breve o Imperador vira lhe ver; o espectro pediu, indicando as portas de uma câmara que abria-se na parede oposta. -Estou de guarda aqui, a senhora não será incomodada;

-Obrigada; ela murmurou afastando-se.

Entrou no cômodo, fechando a porta atrás de si. Sabia que ninguém iria violar aquelas paredes, então estava segura ali. Entretanto, a questão agora era outra.

Desde que acordara nesse lugar estranho e completamente diferente de tudo que já vira, seu primeiro impulso fora explorá-lo, não fugir em busca de ajuda, como talvez devesse ter feito, já que as histórias sobre o mundo dos mortos sempre foram assombrosas, dignas de causar pesadelos.

Não duvidava que existissem prisões horríveis e locais inimagináveis dentro daquele labirinto, mas também havia o jardim que conhecera mais cedo, se aquele não era os Elísios, então, o paraíso dos deuses era ainda mais deslumbrante conforme os bardos cantavam.

Deixou seus olhos correrem a sua volta, encontrando uma piscina de banho e um banco de mármore com uma série de toalhas, óleos e vestimentas. Sobre a piscina uma nuvem fumegante de vapor erguia-se, convidando-a a se aproximar.

Despiu-se de sua túnica e mergulhou seu corpo na água convidativa. Pouco a pouco a tensão que sentia foi se esvaindo. Em meio as coisas sobre o banco, encontrou um cordão e com movimentos fluidos prendeu a massa de cabelos longos em um coque sobre a cabeça.

O tempo parecia correr de forma diferente ali, bem mais lento e porque não dizer, menos agressivo como onde vivia. Seria aquela uma das facetas dos poderes do senhor daquele mundo? Controlar o tempo em seu reino? Havia tantas coisas que queria saber sobre aquele lugar e principalmente sobre seu senhor.

Sua mãe iria querer lhe matar quando se encontrassem, mas aquela liberdade provisória era boa demais para não ser aproveitada.

Ao menos deveria se sentir um pouco ameaçada pela figura imponente e fria do Imperador, afinal ele a roubou de seu mundo levando-a para longe da proteção de sua mãe, mas não se sentia assim, pelo contrário. Pela primeira vez desde que se lembrava, sentia uma estranha euforia sempre que pensava na figura sombria de intensos olhos verdes e isso era o mais próximo da felicidade que chegara a sentir em muito tempo.

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Ergueu-se do trono assim que o salão esvaziou, sabia que não teria muito tempo antes que seu irmão e Deméter viessem bater em suas portas com Hermes e Apolo a tira colo.

-Majestade; um dos juízes chamou, se aproximando.

-O que quer, Aiacos? – ele indagou, impaciente.

-Reforçamos a segurança em nossas fronteiras, suponho que seu irmão não demore a chegar?

-Zeus está com pressa para resolver isso já que enviou Hermes. Deméter deve estar lhe deixando louco e Hera provavelmente voltou a ameaçar castrá-lo por isso; o Imperador respondeu com um brilho sarcástico no olhar.

-O que deseja que façamos agora, meu senhor? – o espectro indagou.

-Mantenham-se em alerta, me avisem quando eles chegarem. Estarei com lady
Cora até lá; ele completou antes de se afastar, seguindo até a câmara em que mandara Sylphid a levar.

Sabia que o confronto com Deméter era eminente e que a divindade se vingaria de qualquer um que tentasse se colocar entre ela e sua preciosa filha, mas isso não era algo que podia evitar, não desde que seus olhares se encontraram em meio aquele bosque.

Ao chegar ao salão principal, notou o espectro a postos, protegendo a entrada da câmara particular, notou-o imediatamente ficar tenso ao sentir sua presença.

-Majestade...; ele começou.

-Eu sei; Hades o cortou antes que Sylphid pudesse se explicar. -Ela não é uma prisioneira aqui, contanto que esteja em segurança, todas as portas sempre estarão abertas para ela; ele completou, sabendo o quão preocupado o espectro ficara quando a jovem correra para o salão principal.

Sentira sua presença no grande hall e uma parte dentro de si ficara bastante satisfeita quando ela não aproveitou a oportunidade de partir com Hermes e Apolo. Não estava mentindo para Sylphid ao afirmar que ela não era uma prisioneira.

Jamais condenaria Cora a viver em um lugar que não fosse de sua própria vontade, mas não podia negar a si mesmo a chance de tentar convencê-la a encontrar algo bom ali e decidir por conta própria, ficar.

-As coisas que solicitou já estão aqui, meu senhor; Sylphid avisou mudando rapidamente de assunto. A poucos passos de distância estava um carrinho com uma jarra e uma cúpula de prata.

-Ótimo, pode ir agora; a divindade o dispensou com um aceno. Com uma breve mesura, o espectro se afastou, deixando a câmara completamente vazia.

Aproximou-se das portas fechadas e deu leves batidas na madeira, alguns minutos se passaram antes que uma fina fresta se abrisse e pudesse ver um dos olhos da jovem, através do espaço estreito.

-Não há o que temer, você está segura aqui; o Imperador avisou, dando-lhe tempo para espiar ao seu redor e tomar a decisão de abrir ou não a porta por conta própria.

-Eu sei disso; Cora murmurou desviando o olhar e abrindo o restante da porta. -Me desculpe, acabei me distraindo um pouco; ela completou baixando os olhos, esperando que ele passasse por si, mas isso não aconteceu.

-Combina com você; ele falou, chamando-lhe a atenção, quando no segundo seguinte seus dedos tocaram levemente a curva de seu ombro, até contornar parte da alça da túnica que vestia.

A túnica branca que usava fora substituída por outra limpa, num tom de verde mais escuro, como a grama banhada pelas sombras das árvores, os longos cabelos negros estavam presos no alto da cabeça, deixando à mostra o colo alvo e esguio, destacando a curva de suas bochechas, até os olhos verdes que pareciam brilhar como esmeraldas.

-Obrigada; ela murmurou sentindo a face aquecer, enquanto um arrepio intenso corria pelo meio de suas costas.

-Acredito que esteja um pouco cansada, trouxe algo que pode ajudar; ele falou antes de voltar-se para o carrinho e puxá-lo em direção a uma mesa, composta por duas cadeiras. -Me acompanhe;

Com passos hesitantes, o seguiu até a mesa. Lançando um rápido olhar para trás. Quando abrira a porta, ele não passara da soleira, pelo contrário, ficou parado em frente sem avançar nenhum centímetro e também batera na porta, esperando sua resposta. Se as histórias fossem tão verdadeiras quanto sua mãe contava, Hades deveria ser uma divindade prepotente que não se importava em impor sua vontade absoluta sobre ninguém, como Zeus eventualmente fazia, mas o que via ali era bem diferente, ele era diferente do que sequer ousou imaginar.

Sentou-se na cadeira que ele indicara, enquanto o via mover a cúpula de prata de cima do carrinho, revelando uma tigela repleta de um manjar dourado. Em seguida ele colocou sobre a mesa um cálice de prata e da jarra, verteu um espesso líquido igualmente dourado.

Metódico e preciso ele terminou de montar a mesa, entregando-lhe por fim um guardanapo de linho ricamente bordado.

-Néctar e ambrosia, você pode usufruir deles sem se preocupar. São alimentos feitos para os deuses, não podem te prender aqui; ele explicou calmamente, diante do olhar preocupado dela.

O néctar era uma bebida produzida através da fermentação do mel, o tempo de produção era longo e o processo demorado, mas para eles que precisavam bem pouco disso para reestabelecerem suas energias, não era um problema a espera. Embora atualmente muitas divindades houvessem aderido as invenções de Dionísio - o famoso vinho e seus derivados, abandoando os dois primeiros, o néctar ainda era o melhor, principalmente para aqueles que passavam muito tempo em seu reino, vindos da superfície.

A ausência do sol ali acabava produzindo uma espécie de exaustão e sonolência, fazendo a pessoa em questão mergulhar em letargia até ser levada por Morpheu ao reino dos sonhos, alguns ficavam tão drenados que jamais retornavam, até desaparecerem completamente. Jamais permitiria que Cora corresse um risco tão grande, por isso mandara buscar aquelas iguarias para ela.

-Obrigada; Cora murmurou aceitando o cálice. Aproximou o mesmo de seu nariz, sentindo o cheiro adocicado do mel, embora muito diferente do que sentira nas romãs, o néctar tinha sua própria doçura e ao ingeri-la, sentia seu corpo se energizar, espantando qualquer traço de cansaço. -Não precisava ter se dado a tanto trabalho;

-Você é uma convidada importante, é o mínimo que poderia fazer; ele respondeu com um discreto sorriso curvando em seus lábios, enquanto servia outra taça com o manjar e estendia a ela.

-Convidada? É disso que chamamos agora? – ela perguntou atrevidamente, sentindo a face aquecer-se ainda mais ao estender a mão para pegar a taça e acabou por roçar seus dedos sobre a pele dele no processo.

-O que você preferir; ele respondeu estreitando os olhos sobre ela de forma intensa e Cora teria instintivamente recuado se não fosse o encosto da cadeira.

-Você me sequestrou; a jovem ninfa falou calmamente, embora estivesse longe de se sentir tão tranquila quanto aparentava agora que estava de frente pra ele.

-Eu fiz; o Imperador concordou displicente.

-Você nem ao menos hesitou ao dizer isso; Cora exasperou, sentindo as bochechas corarem ainda mais quando viu um brilho diferente em seu olhar.

Ele estava se divertindo!

A princípio chegou a pensar na possibilidade de que ele houvesse lhe raptado apenas para provocar o caos, já que sua mãe era uma verdadeira força da natureza no que dizia respeito a si, mas ele não parecia se importar com isso, nem mesmo com a possibilidade de enfrentar o próprio irmão.

Ele poderia ter problemas pelo que fizera a Apolo, não que sentisse algum tipo de pena da divindade, qualquer governante responderia com fogo uma afronta em seu próprio território, Hades não tinha que ser diferente. Não sabia o que as ninfas viam tanto em Apolo para falarem sobre ele em meio a suspiros sonhadores; ela pensou, enquanto levava uma colher de ambrosia aos lábios, ainda estudando atentamente o homem diante de si.

Fora muito mais impressionante a forma como Hades fizera Apolo se curvar, sem nem ao menos mexer um musculo em sua mandíbula, do que a atitude pretenciosa da divindade solar. Agora, por que aquele caos todo parecia diverti-lo?

-Temo que você tenha me entendido mal; ele falou calmamente. -Antes que o diga, nunca faria isso com você;

-O que? – Cora indagou confusa, vendo o olhar dele adquirir um brilho frio.

-Invadir e ler seus pensamentos... Tem minha palavra; ele completou, levando uma das mãos ao peito, sobre o coração. Selando sua promessa.

-Obrigada, eu... acho; ela balbuciou desviando o olhar.

A verdade era que sentia um alívio realmente grande ao saber que ele, mesmo podendo, não faria algo assim. Claro, vindo de qualquer um poderia ser uma grande mentira, mas ali, a seu lado, compartilhando com ele aquele momento, sabia que Hades jamais quebraria uma promessa, por isso seu alívio. Embora não fosse capaz de negar que ele 'já' invadira seus pensamentos e de lá não saíra desde a primeira vez que seus olhares se encontraram, não diria isso a ele agora.

-Recentemente o Olimpo esteve em guerra contra os titãs; Hades continuou calmamente. -E eu também estive na Terra, como você bem sabe;

-Sim; ela concordou assentindo para ele continuar, mas depois de alguns estranhos minutos em que ela parou com o cálice entre suas mãos, em seu colo, notou que ele ficara em silêncio, não sabia se ele estava ponderando o que dizer ou se o que dissera já fora dado como suficiente. -E? – ela indagou, tentando não parecer muito impaciente.

-Não me importa quem ganhou ou perdeu; ele respondeu por fim, com indiferença.

-Mas...;

-Vida e morte estão atreladas uma à outra, independente da vontade dos deuses, isso é o destino;

Ele estava certo, mortais ou imortais perdiam suas vidas pelos mais variados motivos. No caso dos mortais seu tempo de vida poderia ser encurtado por uma série de coisas como fome, frio, assassinato, enfermidades que ainda não existiam cura ou até mesmo a velhice que exauria suas almas, até que se desprendessem e partissem desse mundo. Já divindades como ela, embora tivessem o tempo de existência muito mais longo que os mortais – a fome, o frio e as enfermidades não poderiam matá-los. Todavia, as armas forjadas por Hefestos eram letais, não os mataria de imediato, mas causaria estrago suficiente para que seu corpo não fosse capaz de se regenerar.

A única coisa que conectava ambos os mundos eram esses dois elementos. Vida e morte. Pessoas nasciam, viviam e morriam quando a hora chegava. Até mesmo divindades como ela um dia passariam por isso.

-Não se eu puder evitar; ele respondeu bruscamente chamando-lhe a atenção.

-Você disse que não leria meus pensamentos; Cora falou em tom de provocação.

-Não preciso, você é tão transparente; o Imperador respondeu. E lá estava, aquele leve sorriso, com uma mistura de malicia e mistério, que faziam seus olhos brilharem com um calor abrasador.

-Se você não estava na Terra para tomar um partido, o que fazia lá? -ela perguntou curiosa.

-Só estava observando; ele respondeu displicente, dando de ombros. -Foi quando eu te vi;

E ali estava a razão por não ter saído correndo gritando por ajuda no instante que abrira seus olhos. Hades dissera que era transparente, então sempre sentia que ele estava lendo seus pensamentos, mas ao olhar para ele não via apenas a fria indiferença do governante do mundo inferior, sempre existia algo por trás de suas palavras, gestos e olhares. Até mesmo o fino sorriso que as vezes despontava discreto do canto de seus lábios lhe mandavam uma mensagem e só por isso, não sairá em disparada dali. Queria ver até onde poderiam chegar e o que esse caminho lhes revelaria.

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O ar estava úmido, ondas de estática crepitavam para todos os lados, correntes de energia convergiam entre si causando pequenas explosões. Do alto do trono dourado, o senhor dos deuses ouvia seus filhos reportarem o que acontecera e na outra extremidade do salão, Deméter e sua esposa estavam prestes a se digladiar.

-CALEM-SE OS QUATRO!

A voz de trovão ecoou pelo salão e as nuvens no céu tonaram-se ainda mais escuras, das mãos do onipotente ondas de estática espocavam em chamas.

-Meu pai;

-Chega Apolo; Hermes o cortou farto de ter passado todo o caminho até ali ouvindo suas lamurias por ter o orgulho estilhaçado pelo Imperador. -A missão que nos deu foi comprometida graças a esse idiota;

-Ainda assim vocês tiveram coragem de voltar e deixar minha preciosa filha naquele lugar? – Deméter esbravejou.

-Ela pode ter desejado ficar, já pensou nisso? - Hera rebateu em tom de provocação. Estava farta de aguentar Deméter se lamuriando pelos cantos exigindo que Zeus fizesse algo, quando fora ela a não cuidar da própria filha, mesmo tendo sido Hades a levá-la da Terra.

Tanto quanto o marido, o Imperador era uma força da natureza, duvidava que alguém pudesse tê-lo impedido se cruzasse seu caminho, mas de todos os pretendentes que Cora pudesse almejar, Hades não era de todo ruim e isso, vinha em um momento perfeito; a senhora dos deuses pensou sabendo o quão frustrados - Deméter e Apolo - deveriam estar naquele momento.

Aquele projeto de bardo achava realmente que iria permitir que alguém, que não fosse um de seus filhos - governar os céus - ainda mais uma criança gerada por uma titânide. Não permitiria que Apolo acendesse ao trono, nem mesmo ele sendo o filho favorito.

-JAMAIS! – Deméter gritou quase avançando em Hera, quando Apolo colocou-se em seu caminho, impedindo.

Embora desgostasse da senhora do Olimpo, por obrigação deveria protegê-la e mesmo a contragosto afastou Deméter.

-Acalme-se; ele murmurou entredentes, segurando-a firme entre os braços.

-Sei que você a ama Deméter, mas se Hades diz que Cora não é uma prisioneira em seu castelo e mesmo com Apolo e Hermes lá, ela não veio. Concordo com minha esposa, ela pode ter desejado ficar; Zeus concluiu não perdendo o sorriso que despontara nos lábios de Hera. – Entretanto, meu irmão não é dado a esses rompantes apaixonados, isso é um pouco estranho vindo dele; a divindade comentou, levando uma das mãos ao rosto, roçando distraidamente a barba que contornava seu maxilar.

-Não me importa quem Hades seja, eu vou buscar minha filha; Deméter exasperou, soltando-se de Apolo.

-Eu lhe acompanharei então; Apolo respondeu prontamente.

-Não... Você não vai; Zeus respondeu lançando um olhar entrecortado ao filho. Em outro momento teria uma séria conversa com ele sobre andar fazendo alianças por trás de suas costas, mas nesse momento tinha outra crise para administrar. -Hades irá matá-lo se pisar em seus domínios novamente;

-Mas...;

-Eu vou; o senhor dos deuses completou levantando-se do trono dourado.

-NÃO! – Hera gritou ao mesmo tempo.

-Não esqueça com quem está falando, esposa! – a voz do senhor dos raios reverberou novamente pela sala e seu poder estalou em todos como chicotes, colocando cada um dos quatro de joelhos no chão, apenas para mostrar sua supremacia. -Cora também pertence a minha linhagem, se ela não quiser permanecer com Hades, cabe a mim trazê-la de volta; ele completou vendo o olhar envenenado da esposa em sua direção. Aquele olhar já tão conhecido, que prometia retribuição. -Vamos Deméter; ele completou e com um estalar de dedos, ambos desapareceram no segundo seguinte.

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Atravessaram o longo corredor, aliás, aquele castelo era recheado deles. Verdadeiros labirintos para confundir qualquer invasor ou desavisado. Depois de se alimentar, ele pedira que lhe acompanhasse, a princípio achou que retornariam ao jardim que conhecera mais cedo nos arredores da primeira prisão, mas depois de alguns minutos a mais de caminhada, atravessaram uma porta que levou-os para a beira de um rio de águas prateadas.

O chão de pedra rustica pouco a pouco dava lugar a grama verde e úmida. Até mesmo o ar começava a se tornar mais fresco e limpo ali.

-Onde estamos? – Cora perguntou curiosa, quando o viu se aproximar de um pequeno barco atracado a margem onde a terra se misturava com finos grãos de areia.

-Essa é uma das fronteiras do meu reino; Hades explicou estendendo-lhe a mão.

Embora não estivesse certa do que ele pretendia, viu-o subir no barco que mal parecia caber uma pessoa ali, o que dirá duas, mas apoiou-se em seu braço e seguiu-o, curiosa para saber o que ele pretendia, mesmo sabendo o quão próximos seus corpos ficariam.

Como se empurrado por uma mão invisível o pequeno barco deu um solavanco e deslizou pra fora da margem, engoliu em seco perdendo o equilíbrio por alguns segundos, agarrou-se com força no braço dele, temendo que o barco fosse rachar no meio da água, derrubando os dois.

-Vai ficar tudo bem; ele murmurou, enlaçando-a pela cintura acomodando-a contra seu peito.

Sentiu o coração falhar uma batida e recomeçar, disparando enlouquecido, como se fosse sair de seu peito. O braço em torno de sua cintura apertou-se um pouco mais, enquanto segurava-se nele.

O barco deslizou pelas águas prateadas, olhando para cima poderia jurar que as paredes do que antes fora uma caverna, agora refletiam a imensidão do céu com estrelas brilhando tão perto que poderia jurar que conseguiria tocá-las com as pontas dos dedos.

-Esse é o Lete, o rio do esquecimento; o Imperador explicou conforme avançavam. -O que você vê aqui são as almas que estão prestes a renascer, passando pelo esquecimento, assim poderão começar do zero em sua nova existência;

-É tão lindo; Cora murmurou.

Estrelas cadentes cruzaram a abobada coberta pelo manto azulado da noite. Ali o tempo corria de forma diferente seguindo um fluxo próprio dentro daquele universo fantástico e mágico. Enquanto no jardim que estivera anteriormente era dia, ali estavam rodeados da mais pura e bela noite estrelada.

-Feche os olhos; ele murmurou em seu ouvido.

Sentiu um arrepio de antecipação cruzar o meio de suas costas, enquanto o calor do corpo dele parecia envolvê-la pouco à pouco.

-Estamos quase chegando;

Como se antecipasse que a curiosidade dela levaria a melhor, delicadamente passou a ponta de seus dedos sobre seus olhos, cobrindo-os levemente. Acomodou-a melhor entre os braços, enquanto o barco cruzava o último fio de distância. Por alguns instantes eles simplesmente flutuaram até a margem parando completamente.

-Mas o q-...; Cora engasgou quando ele a suspendeu em seu colo.

-Olhos fechados; ele murmurou quando viu suas pálpebras tremerem.

Contendo a respiração, sentiu ele se mover, primeiro erguendo um pé, depois outro. Até que seu corpo afundou alguns milímetros no chão quando desceu do barco.

-Você poderia ter me dito, eu posso andar; ela falou, segurando-se em seus ombros, enquanto ele seguia em frente.

-Eu sei; o imperador respondeu pausadamente, e ali estava novamente, podia sentir aquele sorriso mesmo de olhos fechados.

Decidindo não questiona-lo, apenas apoiou a cabeça sobre seu peito sentindo o chacoalhar de seu corpo enquanto seguiam em frente, para onde, desconhecia totalmente.

Não deveriam ter se afastado muito porque ainda ouvia o som de água corrente, embora o calor começara a tornar-se mais intenso, não sabia ao certo se isso se devia a proximidade de ambos ou ao local que estavam.

Sentiu-o parar alguns instantes e com relutância, baixá-la ao chão.

-Pode ser incomodo a princípio, então não tenha pressa em abrir os olhos; ele explicou colando-se a suas costas novamente, antes de colocar uma de suas mãos apoiada em seu braço como antes.

Com cautela começou a serrar as pálpebras, um brilho dourado pouco a pouco infiltrou-se entre os cílios. O vento fresco de um fim de tarde lhe rodeou carinhosamente agitando seus cabelos, fazendo os fios negros soltarem-se e se entrelaçarem aos deles, o som de pássaros cantando chegou até si. Será que ele lhe levara de volta à Terra? – ela se perguntou abrindo completamente os olhos assustada com a possibilidade.

Campos floridos, montanhas verdejantes, ao longe podia ver um templo como os de Olímpia, mas havia algo no ar que simplesmente parecia diferente talvez algo no cheiro ou calor, não sabia responder ainda. Olhou para o céu vendo o sol brilhar intenso, porém não sentia tanto calor além do emanado pelo corpo dele tão próximo ao seu. Se estivesse na Terra já estaria sentindo o suor umedecer suas roupas.

Deixou os olhos correrem a sua volta assimilando a grandiosidade daquele lugar, bem diferente do jardim que conhecera mais cedo, então só poderiam estar em um lugar.

-Esses são os Campos Elísios; ela murmurou encantada.

-Ao longe entre aquelas montanhas, fica o último descanso dos deuses; ele explicou indicando com a ponta dos dedos o local. -Quando o poder que nós carregamos se torna um fardo muito pesado, é ali que imortais como nós ficam. Às vezes, alguns decidem deixar esse mundo, então seus corpos permanecem ali enquanto suas almas mergulham no Lete;

-E depois? – ela murmurou pensativa. Nunca conseguiu imaginar como seria para os deuses depois que eles chegassem aos Elíseos, sempre imaginou que eles vivessem ali por toda eternidade e só.

-Eventualmente aqueles que preferem partir, seus corpos transformam-se em fragmentos de estrelas e voltam a fazer parte do cosmos; ele começou a explicar. -Alguns transcendem a necessidade de corpos físicos, tornando-se energia, outros, escolhem voltar ao Olimpo, mas todos passam por essa transição aqui;

-Nem nos meus sonhos imaginei que seria assim aqui; ela murmurou enquanto seguia andando com ele.

Ao longo do caminho avistou uma grande variação de pessoas, entre jovens, idosos e crianças, alguns passavam por eles meneando a cabeça em sinal de cumprimento, outros apenas desviavam o olhar diante da figura imponente que destoava daquele ambiente tão colorido.

Poderia caminhar por aqueles campos durante dias e tudo ainda pareceria novo e diferente, as cores eram mais vivas e intensas. Seria aquele o sabor de se estar livre? Ali não carregava o peso de ser a filha de Deméter e mesmo que a mãe enlouquecesse depois, queria viver e sentir o máximo que pudesse.

-Olhe, aqui também há romãs! – ela exclamou contente, afastando-se dele ao reconhecer um agrupamento de árvores pequenas, como as que vira na primeira prisão.

-Vá com calma; ele começou, mas antes que pudesse terminar, ela já havia disparado a sua frente perdendo-se entre as árvores.

Diferente daquelas que vira no outro jardim, as cascas destas eram mais escuras, de um vermelho mais queimado, enquanto as outras eram mais vivas.

-Essas árvores foram as primeiras plantadas por Gaia; Hades explicou encontrando-a olhando atentamente um fruto que caíra a seus pés. -Elas estão aqui desde que os campos se formaram quando Caos deu origem a tudo;

-Há tanta vida aqui; Cora murmurou, tocando com cuidado as flores que brotavam da romãzeira.

-Talvez como forma de equilibrar a escuridão das prisões; ele comentou desviando o olhar.

Seu tempo com Cora estava acabando, sentia o irmão se aproximar e o confronto não poderia ser evitado, por mais que quisesse aproveitar um pouco mais daqueles momentos roubados no tempo.

Cora era uma ninfa acostumada a natureza e ao sol, por mais que lhe mostrasse os Elísios, não podia ignorar a existência de sua outra metade, o inferno.

-Hei! Onde você foi? – ela chamou, acenando a mão em frente a seus olhos, afastando alguns fios negros de sua testa.

-O que? – ele balbuciou voltando-se para ela, encontrando os olhos verdes cravados em si e seu rosto tão perto.

Como seria ter um garotinho com aqueles mesmos olhos cristalinos? – ele se perguntou por um momento.

-Você estava a milhas daqui; Cora comentou, notando-o franzir o cenho. Inconscientemente tocou-lhe a testa, massageando o vinco que se formara ali, tentando aliviar a tensão.

-O que está fazendo? – o Imperador indagou segurando a mão dela.

Por um instante, foi como se o tempo houvesse parado. Seus olhares se encontraram e foi como se uma corrente de estática estalasse onde seus corpos se tocavam.

-Cora; ele sussurrou enrouquecido, deixando o outro braço enlaçá-la pela cintura atraindo-a mais para perto.

-Imperador; ela murmurou, sentindo uma onda de calor subir pelo colo, elevando-se até a ponta das orelhas.

A respiração quente chocou-se contra sua face fazendo-a engolir em seco, esperando com ansiedade o próximo passo dele. O coração batia em disparada na base da garganta, enquanto o via cada vez mais próximo, olhos tão intensos quanto esmeraldas. Como podiam dizer que o senhor daquele mundo era frio? Havia tanto calor emanando dele que parecia envolvê-la como uma crisalida.

-Hades; ele falou com os lábios muito próximos aos dela.

-Imperador... Hades; Cora balbuciou, sentindo o primeiro roçar dos lábios dele nos seus. Instintivamente cerrou os olhos, enquanto seu corpo estremecia entre os braços dele.

-Apenas Hades; o Imperador completou antes de assaltar seus lábios com os seus.

Desejo puro e intenso explodiu entre eles, dedos largos entrelaçaram-se nos fios negros, enquanto as mãos delicadas apoiaram-se em seus ombros acomodando-se melhor em seu abraço, apenas seus corações pareciam bater em conjunto, seguindo um único ritmo.

-MAJESTADE!

Afastaram-se com relutância, quando com passos apresados um dos filhos de Nyx se aproximou correndo.

Respirou fundo, tentando conter a onda violeta que o engolfara, segurando à vontade quase homicida de colocar um fim a existência do Deus do Sono. Tal desagrado ficou tão aparente que Hypnos deteve-se instantaneamente, quase recuando alguns passos, quando os olhos outrora calorosos do Imperador tornaram-se frios e afiados como adagas.

-Imperador, seu irmão e Deméter acabaram de chegar a Giudecca;

-Mamãe está aqui também; Cora murmurou quase encolhendo-se no abraço dele.

-Vou resolver isso de uma vez; Hades falou em tom monótono, como se enfrentar dois dos maiores deuses do panteão não fosse nada.

-Não quero causar problemas; ela falou, voltando-se para ele com os outros começando a avermelhar.

Deveria ter imaginado que a mãe não iria desistir, mas não queria que ele entrasse em confronto com as demais divindades e se ferisse por sua causa.

-Você jamais faria isso; o Imperador respondeu tocando-lhe a face carinhosamente e por alguns segundos o brilho gelado em seu olhar amenizou, trazendo de volta a aura calorosa que sentia antes de serem interrompidos. -Hypnos irá lhe acompanhar no passeio a partir de agora e garantirá sua segurança em minha ausência, não é Hypnos? -ele completou, lançando um olhar enviesado ao filho de Nyx.

-Claro, Majestade. Será uma honra servi-la, minha lady; a divindade respondeu prontamente, curvando-se em respeito.

-Peço apenas que espere um pouco, serei breve. Há muito mais que gostaria de lhe mostrar; ele falou, segurando sua mão entre as dele.

-Tenha cuidado; ela pediu, enrubescendo quando ele pousou um beijo suave sobre a palma de sua mão, enquanto a seu lado Hypnos desejava que um buraco se abrisse e o engolisse.

Hades afastou-se com evidente relutância, desparecendo em seguida.

Soltou um suspiro tremulo e inquieto, como se tivesse um centauro lhe pressionando o peito pra baixo e não conseguisse puxar ar suficiente.

-Minha senhora; Hypnos adiantou-se quando viu-a cambalear.

-Desculpe, eu...; Cora murmurou, sentindo um nó formar-se em sua garganta.

Não queria que Hades tivesse que lidar com isso por sua causa, mas sua mãe simplesmente não aceitaria que queria ficar ali e explorar aquele mundo novo. Passara tantos anos de sua existência presa em uma gaiola dourada, superprotegida ou melhor, vigiada.

Sempre tinha alguém consigo, nunca estava sozinha, mas não porque não lhe faltasse companhia, eram mais como sentinelas à espreita, relatando cada passo seu para sua mãe. Agora ali, desde que despertara no castelo estivera andando por conta própria. Hades lhe roubara da Terra, mas em momento algum a manteve prisioneira, apenas garantiu que estivesse segura nos locais que ofereciam ameaça ao seu bem-estar, mas ali era livre para estar onde quisesse, inclusive ao lado dele.

-Posso trazer néctar e ambrosia para a senhora? - Hypnos sugeriu imaginando que ela poderia estar daquele jeito por estar exposta ao submundo por tanto tempo. Era normal que divindades que vinham da superfície sentissem essa fraqueza.

-Não precisa; ela murmurou afastando-se dele, como se seu toque queimasse. Não era o mesmo calor como o que sentira vindo do Imperador, por mais inocente e despretensioso que tenha sido o toque da divindade do sono, lhe causou incomodo. Apoiou-se no tronco da árvore, desviando de alguns galhos no processo.

-Podemos seguir até meu templo, a senhora pode descansar com mais conforto lá; Hypnos explicou, indicando uma curva na campina mais próxima. -É normal sentir-se incomodada neste reino;

-Não me sinto; Cora respondeu secamente, desviando o olhar.

Como de fato, não se sentia incomodada por isso. Adorava o brilho do sol, mas o calor em excesso sempre foi uma grande fonte de incomodo, mas ali não tinha esse problema. Sentia-se cômoda e acolhida naquele lugar. Não apenas deste lado do Lete. No palácio todos os espectros com quem cruzara também foram muito corteses consigo e pode ver o quanto eles eram leais a Hades quando Hermes e Apolo estavam no castelo, aquele tipo de lealdade não poderia ser comprada, isso por si só era prova de que ele tinha algo bom, que ia além da fachada que ele permitia que os outros vissem.

-Senhora? -Hypnos chamou preocupado, vendo-a parada a tempo demais olhando para a copa da árvore. Se um cisco caísse em seus olhos, Hades iria lhe esganar. Deveria convencê-la a seguir até o templo, pelo menos enquanto o Imperador não voltasse.

-Me leve a Giudecca, Hypnos; Cora falou com voz firme voltando-se para ele.

-O que? – ele quase gritou. Agora que o Imperador lhe mataria se fosse com ela até o local onde provavelmente ele estaria lutando contra dois deuses tão poderosos quanto ele próprio.

-Eu preciso ir até Hades; ela insistiu, sentindo sua inquietação aumentar.

-Mas...;

-Hypnos; Cora quase gritou, enquanto os doces olhos esverdeados ficaram um tom mais escuro. A voz doce tornou-se firme e uma aura esverdeada a envolveu. Ondas de estática crepitaram a volta dela, enquanto com um movimento fluido estendeu a mão para um dos galhos e de lá, arrancou o fruto mais vermelho que pode alcançar. -Você pode vir comigo, ou ficar, não me importo; ela completou.

-Eu vou morrer; Hypnos sussurrou, pouco antes de apoiar a ponta do dedo indicador sobre o ombro da jovem e desaparecerem no segundo seguinte.

Continua...


Olá meus queridos

Segue capitulo novo pra vocês, cheio de novidades; Confesso que sou suspeita pra falar qualquer coisa, mas desde que retomei o projeto "Quando nos tocamos" esses paralelos do passado (mitologia) tem se tornado minhas cenas favoritas de escrever. Gostei muito de mergulhar novamente dentro dos livros estudando os mitos e lendas, pra poder retratar pra vocês, a forma mais precisa (se posso chamar assim) de como começou a relação entre Hades e Cora. O meu intuito foi tentar transporta-los para dentro desses momentos, visitando as prisões e encarando o 'mundo inferior' e até mesmo os espectros sob uma nova perspectiva. Não posso falar muito mais sobre isso, porque muitas coisas irão acontecer nos próximos capítulos. Então deixo pra vocês me contarem depois o que mais estão gostando dentro desse universo.

Novamente, aproveito pra deixar meu e-mail ( dama9_fanfiction .br ) para quem quiser entrar em contato e receber novidades sobre as histórias e alertas de novas postagens, porque o FF-net não anda fazendo isso direito.

Um forte abraço a todos.

Até a próxima.

Dama 9