Somente na décima tentativa Wang Ben conseguiu acertar o laço.
Agora entendia o quão cruel poderia ser nascer mulher naquele mundo. Deu uma volta avaliando a peça desconfortável e exageradamente chamativa presa ao corpo. Sim, porque usar algo como aquilo jamais poderia ser comparado a se vestir; aquele traje não passava de uma prisão. E seu martírio estava só começando. Pegou o pincel mais largo e tentou imitar os movimentos que viu a mãe executando mais cedo. Desde pequeno admirava seu pai por manusear armas de guerra, principalmente as lanças, que sempre foram sua grande paixão. Mas nunca, em toda a sua vida, imaginou algum dia ter que fazer aquilo. Movimentos longos, circulares e suaves. Definitivamente delicadeza não era bem o seu forte. Os lábios ficaram levemente borrados. Talvez, na noite, esse pequeno deslize nem fosse notado. Não tinha certeza se aquele era o tipo de coisa que um homem reparava em uma mulher. Ele mesmo não se lembrava se já notara antes. Apertou um pouco mais o laço. Era bem provável que o formato do seu corpo chamasse mais atenção que um lábio mal pintado. Prender os cabelos de forma graciosa ainda era a parte mais fácil, já que não era tão diferente do que costumava usar. Suspirou, tentando relaxar um pouco, o pior ainda estava por vir.
O sol nem havia se posto ainda quando deixou a propriedade em direção a pequena cabana do outro lado do rio.
Ao contrário de Xin, Wang Ben não conhecia tantos atalhos e por isso, levou mais tempo do que planejara. Além disso, montar a cavalo preso em todo aquele tecido era uma tarefa impossível. Se pudesse, teria saído de casa mais cedo, porém, cada hora a menos só aumentaria o risco de ser descoberto, à luz do dia.
A noite parecia avançar mais rápido que seus passos. Wang Ben começava a sentir algo que não costumava fazer parte de sua personalidade.
Medo.
Nunca sentia medo. Sempre fora um dos soldados mais destemidos do estado de Qin. Era estranho em como o simples fato de vestir um quimono com um laço bonito, não poder usar uma boa arma, ou andar a cavalo, o deixava tão vulnerável.
Já era noite quando, com muita dificuldade, finalmente pode avistar a cabana do outro lado do rio. Atravessou a pequena e íngreme ponte de madeira, tomando cuidado para não prender suas getas na madeira podre.
À noite, a iluminação do local era nula, e a claridade da lua cheia era a única fonte de luz disponível. Wang Ben caminhou até lá. Deu uma volta em torno da cabana tentando encontrar algum sinal de Xin. Infelizmente, Xin parecia estar ausente. Suspirou frustrado. Levou quase três horas de viagem caminhando naqueles trajes desconfortáveis para nada.
Em um ato de fúria, Wang Ben meteu o pé na porta com toda a sua força. Logo, toda aquela raiva se tornou dor. Havia até se esquecido que usava tamancos abertos e não uma bota com ponta de ferro, como de costume.
– Nossa, o que foi isso, você está bem?
Wang Ben, na hora, conteve uma palavra de extrema deselegância que, por muito pouco, não deixou escapar.
Xin estava parado bem ali, atrás dele, com um pouco de lenha nos braços.
– Mas que diabos deu em você pra chutar a minha porta assim? Poderia ter perdido um dedo, sabia? Aqui, deixe-me ajudá-la – Xin largou a madeira ali mesmo e ofereceu a mão, ajudando Wang Ben a se sentar em um pequeno tronco de árvore próximo à janela lateral. Xin retirou seu sapato, massageando o local da pancada. – Caramba mas que pés enormes. Esquece o dedo, poderia ter sido a minha porta.
Se Wang Ben tivesse um pouco mais de mobilidade naquele momento, teria chutado a cara de Xin; com gosto.
– Dói aqui?
Wang Ben foi atraído mais pela sensação que pelas palavras. Sentiu os dedos de Xin pressionarem uma parte extremamente sensível de seu pé. Fez que não com a cabeça, fechando os olhos, enquanto as mãos de Xin continuavam a tocá-lo. Sentiu a mão subir do pé até a canela, passando pelo joelho, onde parou, fazendo-o abrir os olhos e se deparar com aquele belo par de olhos verdes.
– E ai, se sente melhor agora?
A voz de Xin soou suave, muito diferente do que Wang Ben costumava ouvir, durante os treinos e batalhas, onde Xin parecia apenas ser capaz de gritar feito um selvagem. Fez um movimento mínimo com a cabeça, ainda torpe com todas aquelas sensações novas que Xin estava causando em si.
– Ótimo, então vamos andando.
Xin empurrou a perna de Wang Ben de uma vez, quase fazendo com que ele repetisse a pancada, só que desta vez, no tronco onde estava sentado.
Wang Ben ficou tão furioso com aquela atitude, que ignorou toda a dor que ainda sentia e se preparou para enfiar seu "pé enorme" na cara de Xin. O problema é que a dor voltou ainda mais intensa depois que tentou levantar a perna e se equilibrar no salto desproporcional de madeira. A única coisa que impediu Wang Ben de encontrar o chão foram as mãos fortes de Xin, que acabou o segurando, impedindo sua queda.
Em qualquer outra situação Wang Ben teria socado a cara de Xin e se afastado o máximo possível.
Mas o que o impediu de agir com razão foram os olhos de Xin que, imediatamente, se prenderam em seus lábios.
Ben sabia que, cedo ou tarde, Xin iria beijá-lo, ou, ao menos, tentar. Porém, sabia também que não estava preparado para quando o momento chegasse.
Era estranho estar do outro lado. Pela ordem natural das coisas, Wang Ben era quem deveria tomar a iniciativa. Nunca mais julgaria uma garota por ficar tão nervosa com um simples beijo. Talvez não precisasse esperar pelo tão temido momento. Poderia fazer como sempre e tomar a iniciativa. O problema era que, mulheres decentes não costumavam sair por ai beijando desconhecidos; principalmente uma da realeza, e que ainda por cima, estava noiva. Nesse momento, Ben só desejou que uma dama tivesse todo o direito do mundo de demonstrar o quanto era segura o suficiente para poder lidar com a situação.
Mas, se não tinham, então ele seria a primeira.
Ben se aproximou mais de Xin, o suficiente para deixar o rapaz desconcertado. Era agora. De certo modo, Ben só estaria antecipando o inevitável.
Mas se beijar outro homem o estava perturbando, ser impedido de consumar o ato, conseguia ser ainda pior.
Xin se afastou no momento em que sentiu o primeiro contato de pele com pele.
Havia culpa e constrangimento no olhar de Xin. Ben não entendia se era culpa por quase ter beijado uma mulher comprometida, ou se havia alguma desconfiança por trás daquilo tudo. Agora o motivo parecia nem importar mais. Estava ai mais uma coisa para se lembrar de nunca fazer na vida; rejeitar alguém.
– Desculpe – pelo menos as desculpas de Xin deixava claro que não havia suspeitado de nada em relação a ele. – É que… eu realmente gosto de outra pessoa.
Se Wang Ben acreditava que a situação não podia ficar pior, se enganou feio. Ouvir aquilo de Xin, naquele momento, doeu mais que o pior golpe que já levara de um inimigo, e olha que uma lança já havia atravessado seu corpo antes.
Como um animal selvagem, deu uma forte investida em Xin, se soltando dele e o arremessando longe. Saiu em disparada em direção a ponte. A única coisa que queria agora era fugir dali e nunca mais voltar. Se sentiu rejeitado, humilhado. Nem sabia como chegaria em casa sozinho aquela hora da noite, mas, definitivamente, não ficaria para aceitar um pouco mais da piedade de Xin.
Se sentou ali mesmo, bem no final da ponte e se encolheu. Talvez fosse mais seguro esperar o dia chegar. O problema é que Xin poderia resolver vir atrás dele. Viu a lua caminhar no céu de um lado ao outro e nada de Xin aparecer.
Parece que tinha razão afinal, Xin não era nenhum príncipe e não viria em seu resgate. Não deveria se importar tanto, já que ele também nunca foi uma princesa de verdade. Estava certo desde o começo, Xin não era nada mais que um caipira, mal educado e sem graça mesmo.
Ainda assim não poderia mais dizer com toda a certeza, que não poderia se apaixonar por ele.
Um relinchar e bater de cascos fez seu coração gelar. Uma mão lhe foi estendida, mas não eram as mãos de um príncipe e sim de seu algoz.
