Tóquio, Japão - 1980

Junko estava cansada daquela rotina. Era impossível não dar certa razão ao Hideki de que toda a situação na Mansão Kido era, no mínimo, esquisita. Desde que os garotos passaram a ter uma preparação física que era claramente exagerada para a idade deles, a rotina só se complicou.

O número de empregadas cuidando do "alojamento" aumentou. Ela, ao menos, teve a sorte de não ser uma das selecionadas para aprender cuidados de enfermagem pois o que não faltava ali eram garotos machucados. Prisão, campo de concentração, as palavras que pareciam mais adequadas para descrever aquele local estavam longe de qualquer cuidado que aquelas crianças mereciam.

— Junko, você pode me ajudar com o banheiro? Vomitaram lá…

— De novo? Todos os dias alguém vomita.

— Acho que com esse tanto de treinamento eles passam mal.

— É…

— Mas, o patrão disse que vai ser só por um tempo.

— E depois vão pra onde?

— Sei lá. Acho que para o exterior.

— Eles são parte de um programa de estudos da Fundação?

— Acho que sim.

"E que horas eles estudam?" era a pergunta que ela teria feito, mas achou melhor evitar. Além do Tatsumi, alguns seguranças ficavam por ali. Os assuntos que as empregadas conversavam entre si dificilmente vazavam, mas era diferente quando chegava aos ouvidos do Tatsumi. Todo cuidado era pouco.

— Entendi. Vamos lá.

Na visão dela, Ayumi era muito esperançosa com as promessas de que "seria só por um tempo". Já fazia tempo o suficiente. E não era só ela: Aisha, Yoshiko, e outras também se seguravam não só nesse pensamento, mas também na esperança de que as coisas seriam diferentes quando a menina Kido crescesse.

Era verdade que as coisas mudaram com a chegada da meninai, e era também verdade que, apesar do que se poderia esperar da herdeira do maior magnata japonês, Saori se saía melhor que o esperado. Mas, Junko tinha certo ceticismo com ela.

Saori tinha um carismo difícil de entender. Era como se houvesse um magnetismo capaz de conquistar os corações mesmo dos funcionários mais desconfiados. Basicamente, ninguém desgostava dela. Até mesmo para Junko é assim "ela tem umas coisas, mas num geral é tranquilo".

Mesmo a agressividade da garota com os órfãos não foi capaz de reverter essa espécie de adoração em torno dela. A culpa era do Mitsumasa. Bem, de fato, era, em parte. Contudo, havia uma tolerância um tanto excessiva. Até mesmo entre as crianças: sua filha, Hikari, e o Takeshi sempre tiveram posturas um pouco mais condescendentes com a menina, mas até mesmo Hideki ficou menos arisco com o passar do tempo, embora estivesse claramente irritado com a presença dos novos meninos.

O problema para Junko é que Saori parecia aglutinar várias características comuns em líderes de cultos. Aos 7 anos, ela dificilmente fazia isso de propósito. Mas, e aos 20? Como seria? Junko conhecia de perto a capacidade de manipulação de pessoas carismáticas.

O próprio Mitsumasa não era tão carismático, mas sabia ser convincente, principalmente com as mais jovens. Saori não parecia ter esse tipo de perfil, mas ela só tinha 7 anos. Assim como temia pela filha quando o patrão era mais abusado, tinha medo do que se tornaria Saori Kido ao longo dos anos.

Além disso, acreditava que ainda demoraria até a "era Mitsumasa" chegar ao fim. Ele podia estar velho, mas não estava à beira da morte. Mesmo se ficar sob os mandos de Saori fosse um futuro melhor, ainda parecia um futuro distante.

Ao entrar no banheiro, sentiu o cheiro forte do vômito. Com certeza não foi só um garoto. Também se preocupava com o presente eo futuro daqueles meninos. Muitas coisas passavam por sua cabeça enquanto ajudava Ayumi a limpar e deixar tudo em ordem, enquanto se esforçava para não pensar muito no significado de tudo aquilo.

Se perguntava se a concentração da colega também era uma forma de abstrair toda essa realidade. Imaginava que sim. Todas elas preferiam fingir que tudo aquilo era um sonho, ou um pesadelo. E assim como evitavam falar do Kido há alguns anos, tinha certeza que assim que esses garotos fossem embora, seria como se eles nunca tivessem passado por ali.


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