Ato 2, capítulo 1: Ecos do passado

Sophie sempre se orgulhou de sua vida simples e estável. Morando, desde que nasceu, uma cidadezinha suburbana pacata, tudo parecia seguir um ritmo calmo e previsível. Suas manhãs eram preenchidas com café recém passado e o som baixo da TV na sala, enquanto se preparava para mais um dia de trabalho, ela sempre teve o costume de deixar algo tocando quando estava sozinha, não gostava do silêncio solitário. Sophie amava sua rotina e a segurança que ela oferecia, seu pequeno apartamento tinha tudo o que ela precisava, e seus amigos, embora poucos, eram leais e amorosos. Ela tinha planos simples, sonhos pequenos, e isso a confortava. Até que tudo mudou de uma noite para outra, o último sonho era um exemplo claro disso.

Nas primeiras noites, eram apenas fragmentos, sensações dispersas que desapareciam ao amanhecer. Mas, com o passar dos dias, eles se tornaram mais vívidos. Ela estava em lugares que nunca havia visitado antes, em épocas que não faziam sentido. Via castelos em ruínas, cidades antigas de pedra, carruagens sob céus tempestuosos. Nos sonhos, sentia o cheiro de algo úmido e velho, quase mofado, como se estivesse presa em algum lugar há muito esquecido. E sempre havia ele, um homem à distância, cuja presença era uma constante, ele nunca falava, mas seu olhar a atravessava, fazendo-a sentir algo entre medo e fascínio. Cada vez que ela tentava se aproximar, acordava bruscamente, com o coração acelerado e o corpo suado. Os sonhos haviam começado de forma suave, apenas figuras vagas, rostos sem nome. Mas agora... agora as coisas estavam diferentes.

Essas situações começaram a invadir sua mente mesmo durante o dia. As cenas voltavam em flashes inesperados, como se estivessem gravadas em sua memória e não fossem simples criações de sua imaginação. Sentir o cheiro de terra molhada ao passar por um parque a lembrava das ruas dos sonhos, ouvir o som do vento balançando as folhas a fazia lembrar do sussurro que às vezes acompanhava o homem misterioso. Eram pequenos detalhes, mas cada vez mais frequentes. Sophie constantemente se pegava perdida nessas lembranças, como se estivesse vivendo entre dois mundos.

E então, veio a primeira visão clara. Era começo da noite e Sophie estava voltando de algumas compras, caminhando pelas mesmas ruas que percorria todos os dias, quando algo estranho aconteceu, uma sensação arrepiante percorreu sua espinha. Ela olhou ao redor, e por um breve momento, viu um homem parado do outro lado da rua. Ele estava vestido com um casaco longo e surrado, a gola alta fazia sombra e cobria parte do seu rosto, mas havia algo nele que a fez parar. Ele a observava de uma maneira que era ao mesmo tempo hostil e calculada, como se soubesse algo sobre ela que ela mesma não sabia. O ar parecia pesar ao redor dele e seu instinto a dizia para se afastar, mas a curiosidade falava mais alto. O homem sorriu, de uma forma fria, quase ameaçadora, o tipo de sorriso que se vê em um predador prestes a atacar. Ela desviou o olhar por um segundo, com a luz do farol ficando vermelha e quando olhou de volta, ele havia desaparecido, como se nunca estivesse ali. O coração de Sophie disparou, e o senso de perigo tomou conta de seus pensamentos, era algo que reconhecia, mas não conseguia explicar, ela foi embora se perguntando se havia imaginado tudo aquilo.

As noites seguintes trouxeram sonhos ainda mais intensos, mais perturbadores, porém, sempre com o homem misterioso à distância; cada vez que acordava, a sensação de perda era mais profunda, como se algo importante estivesse escapando por entre seus dedos. Sophie começou a notar outras coisas estranhas. A sensação de ser observada, que antes era sutil, agora parecia constante. Ela sentia olhos sobre ela, mesmo quando estava sozinha em seu apartamento. Certa vez, quando estava em uma loja, sentiu uma brisa gelada passar por seu corpo, mesmo com todas as janelas fechadas, então, virou-se rapidamente, mas, como sempre, não havia nada. Estava começando a se questionar se estava ficando paranoica, suas mãos tremiam levemente enquanto tentava afastar os pensamentos que a perturbavam. Em uma manhã, enquanto esperava o ônibus para o trabalho, a sensação de déjà vu se intensificou. Ela olhou para o céu e, por um breve momento, jurou que já havia vivido aquele exato momento antes. As mesmas vozes ao longe, as mesmas nuvens, o mesmo vento frio no rosto. A sensação foi tão forte que Sophie precisou se segurar no poste ao seu lado, sua mente girava em busca de respostas, não era possível que aquilo fosse coincidência. Algo, em algum lugar, estava errado.

Naquela noite, ela sonhara com uma casa velha, de madeira escura, cheia de portas e janelas cobertas com poeira. Ela caminhava pelos corredores em seus sonhos, sentindo o peso do tempo nas estruturas, como se a casa estivesse esperando por algo – ou por alguém, tentou todas as portas, mas pareciam todas trancadas, exceto uma. Havia uma sala no final do corredor que a atraía, um som baixo e abafado, Sophie não sabia explicar, mas a simples ideia de tocar na maçaneta a enchia de pavor. Era como se tudo estivesse prestes a desmoronar, no entanto, a porta permanecia ali, como uma promessa de um segredo antigo. O chão rangeu sob seus pés e o som a fez despertar, com o coração batendo rápido demais para uma manhã tão fria. Acordara com o gosto amargo do medo na boca, mas também com uma estranha sensação de saudade, como se aquele lugar fosse importante para ela de alguma forma. Sophie se levantou, sacudindo os restos do sonho e afastando a sensação incômoda que ainda pendia sobre seus ombros. Ela tinha um dia inteiro de trabalho pela frente, e, no fundo, sabia que precisava se concentrar na rotina, ainda que essas imagens perturbadoras estivessem cada vez mais frequentes. Ela se vestiu rapidamente e saiu de casa onde o ar da manhã parecia a acalmar.

Durante a viagem até o trabalho, as ruas familiares desfilavam à sua volta, mas Sophie não conseguia se livrar daquela sensação estranha, algo estava sempre à espreita em sua mente. Listras pretas e brancas apareciam em sua visão periférica, como se algo passasse rápido demais para que ela pudesse ver claramente. A cor verde... por alguma razão, o verde parecia importante, como se algo muito significativo estivesse associado a isso. Seus dedos se fechavam tentando afastar o sentimento de ansiedade crescente.

No trabalho, Sophie mal conseguia se concentrar. Ela trabalhava em uma pequena loja de coisas usadas, na sua maioria livros e roupas, um lugar que a acalmava normalmente, com o cheiro de páginas antigas e o som dos sussurros suaves de clientes conversando, mas parecia não estar fazendo efeito hoje. Ao seu lado, sua colega de trabalho, Tracy, estava reorganizando uma prateleira de livros, murmurando algo sobre como os clientes nunca colocavam os volumes no lugar certo. Sophie tentou se concentrar na tarefa diante de si, organizando papéis sobre o balcão. "Você está quieta hoje." Tracy comentou, enquanto guardava um livro na prateleira mais alta, "Está tudo bem? Aconteceu alguma coisa?" completou. "Sim... acho que sim", Sophie respondeu hesitante. Por um momento, ela considerou contar à ela sobre os sonhos, sobre a estranha sensação de ser observada e as cores que surgiam em sua mente sem explicação. Mas se conteve, não queria parecer louca sem necessidade. "Só ando tendo pesadelos na maioria das noites, mas é essa bagunça toda que está me preocupando mais!". Tracy sorriu de forma brincalhona, sem suspeitar de nada, "Acho que hoje você vai estar cansada demais até para sonhar!". Sophie concordou, mas logo mudou de assunto. Não queria dar margem para mais perguntas, sentia que, de alguma forma, falar em voz alta sobre essas coisas daria ainda mais poder ao que a perseguia.

Conforme os dias passavam, Sophie começou a perder o controle sobre a linha entre o sonho e a realidade. Ela acordava com marcas estranhas no corpo – arranhões que não sabia de onde vinham, hematomas que não faziam sentido. Uma noite, enquanto estava deitada na cama, jurou ter ouvido uma voz familiar sussurrar em seu ouvido. "Ele está esperando", Sophie se sentou rapidamente, ofegante, mas o quarto estava vazio. O medo começava a tomar conta dela, mas, ao mesmo tempo, havia uma curiosidade irritante. Quem era ele? E como parar toda essa situação? Ela não se importava realmente com as respostas, só um jeito de ter sua paz novamente. A vida de Sophie, antes tranquila e corriqueira, estava desmoronando aos poucos, cada novo dia trazia mais perguntas, e o pior de tudo, a sensação de perseguição, que agora parecia constante. Onde quer que fosse, sentia que estava sendo seguida, não sabia se era pelo homem que sumiu, dos sonhos ou por algo maior, mas o peso de uma presença invisível estava sempre com ela. Ao virar uma esquina, ao entrar em uma sala, ao deitar-se para dormir, Sophie sabia que algo estava à espreita, e a cada dia que passava, estava mais perto de descobrir o que era.

Em mais uma noite, enquanto tentava se acalmar em casa, a televisão ligada no noticiário servia como um barulho de fundo que mal conseguia ouvir, Sophie se deitou, mas o sono não veio com facilidade. Quando finalmente adormeceu, mais sonhos, vívidos como nunca. Os olhos... aqueles olhos profundos com uma sombra preta ao redor, uma risada forte, que parecia vir do fundo da garganta, ecoava em algum lugar nas profundezas de sua mente. A voz que falava com ela era inconfundível, rouca e gutural, mas o nome estava fora de alcance, perdido em algum lugar de sua memória, o sorriso tão característico. Era como se tudo estivesse escondido em camadas de sombras. Ao acordar na manhã seguinte, Sophie se sentia exausta e lembrança do homem da noite anterior não saía de sua mente, algo estava errado, ela sabia disso, mas ainda assim não tinha todas as peças do quebra-cabeça.