15 de setembro de 1935:

_ Não, pode voltar. - Tirei o elástico do meu cabelo. _ Muito melhor, vem. - Bateu na cama e fechei a porta, fazendo o feitiço Abaffiato.

_ Trouxe um livro ótimo e pipoca. - Tirei os sapatos, subindo na cama.

_ Você tomou banho? - Fez careta.

_ Tomei, quer cheirar? - Sentei-me ao seu lado, o sentindo cheirar meu pescoço. _ E aí? Cheirosa, né? Posso ter passado quase um ano em 993, mas ainda era limpa e continuo sendo. - Pisquei.

_ Odeio sujeira.

_ Eu sei, come. - Entreguei o saco de pipoca, o vendo comer. _ Está muito bom. - Ainda estava quente e com gostinho de manteiga.

_ Que livro você lerá hoje? - Começamos a fazer sessões de leitura, não queria falar de política com ele.

Não era porque ele era uma criança, era porque não queria me lembrar que do outro lado desse cômodo, o mundo que tanto odeio e quero destruir, existe.

Nesse lugar pequeno, abafado e que agora só existiam duas chamas de velas ao invés do meu lumos, ele era como o meu novo refúgio. Mas posso sair daqui à hora que quiser e ele pode sair daqui a qualquer momento.

Não estou presa, não estamos presos.

_ Meu pai me recomendou esse livro quando o visitei em Nova York em 1925. - Mostrei a capa para ele.

_ Ele já voltou de viagem? - Já estava sabendo de quase toda a minha vida.

_ Não, ainda não. - Sentia saudades. _ Mas a mamãe mandou uma carta dizendo que estavam bem. - Ficou me observando e pensei que continuar nesse tópico, mas não foi assim.

_ Alice no País das Maravilhas. - Sussurrou. _ Quem eu seria? - Fiquei confusa. _ O coelho, ou Chapeleiro Maluco?

_ Você já leu? - Levantei a sobrancelha.

_ Quem não leu esse livro?

_ Eu. - Abro o livro. _ Como você já leu, me diga, quem eu seria? - Ficou pensativo.

_ Bom, a Alice é a protagonista que seguiu o coelho e acabou caindo na toca, sendo apresentada ao mundo mágico. - Acenei. _ O país mágico, na verdade.

_ Sou a Alice? - Gostava da ideia de ser a protagonista.

_ Não, acho que não. - O observei. _ É mais fácil ser o coelho do que a Alice. - Não estava errado.

_ Papai também me disse isso, afinal, o coelho sempre está com pressa.

_ Bom, acho que você é o coelho, mas de outro jeito. - O deixei continuar, ele me analisava de uma forma estranha. _ Você que me apresentou o mundo.

_ Então você é a Alice? - Zombei, mas concordou.

_ Podemos colocar dessa forma, quero conhecer o mundo e você parece conhecer perfeitamente esse mundo. - Neguei, mas minha mente estava pensando que não estávamos falando do mundo.

_ Não conheço. - Não acreditou, mas não teimou.

_ Se eu começar a viajar pelo mundo, você iria comigo? - Crispei os lábios.

_ Já estamos planejando uma viagem pelo mundo? - Não neguei e nem concordei, queria saber o seu motivo para isso.

_ Sim, o que acha?

_ Você vai pagar? - Sorri de lado. _ Não tenho dinheiro.

_ Mentirosa. - Gargalhei, era tudo tão extremo em sua presença. _ Mas fui eu quem a convidou, então, nada mais que justo pagar a viagem, não acha?

_ Sim, perfeito. - Como se fossemos fazer isso, você nem vai se lembrar de mim.

_ Claro, isso só acontecerá se me lembrar de você. - Ele conseguia ouvir os meus pensamentos?

_ Certo, Alice. - Riu. _ Viajaremos para a Albânia primeiro, tem algo que quero saber.

_ Ok, você quem manda. - Fechei o livro, não estava a fim de ler.

Aconcheguei-me na cama e usei o ombro do garoto como travesseiro, algo que é bem desconfortável, mas não era tão ruim.

_ Está cansada? - Apoiou sua cabeça na minha.

_ Não, entediada. - Suspirei. _ Deveria ter vindo para 1936 ao invés de 1935.

_ Você teria morrido. - Bem lembrado.

Tirou meus cabelos das minhas costas, cutucando a minha pele, como se dissesse para tirar aquilo que tento esconder do mundo, menos dele.

Tirei o feitiço, o sentindo alisar as cobras que gostavam desse contato.

_ Ainda fico impressionado que elas se mexem com os meus toques.

_ Elas gostam de você, diferente de mim. - Fechei meus olhos, tentando me agarrar nessas palavras.

_ Sim, fingirei que acredito. - Isso me lembrou de algo.

_ Você tem alguma marca em seu corpo? - Protegeu seu corpo como uma donzela protegeria sua castidade.

_ Por quê? Irá me vender? - Quem dera.

_ Por Merlim. - Ri e ficou muito desconfortável.

Deitei-me na cama, o que o fez não gostar dessa ação, porém, não estava ligando para os seus sentimentos.

_ Cresça e não ficará desconfortável. - Estalei os dedos.

_ Ok, comerei melhor. - Continuou na mesma posição.

_ Bom. - Como fará isso? Devo fazer o elfo trazer as refeições?

_ Não tenho nenhuma marca como você. - Pisquei, me lembrando do real assunto.

_ Sério? - Voltou a comer a pipoca. _ Por que só eu que ganho marcas pelo corpo? Que injusto!

_ O mundo e a vida não são justos. - Repetiu minhas palavras. _ Você sempre fala isso. - Zombou e quase senti meu cérebro sendo comido por si.

_ Sim, sempre falo para você e você não pode usar essas palavras contra mim.

_ Por quê? - Sua entonação era como se tivesse descoberto algo divertido. _ Fere o seu ego? - Zombou.

_ Posso pegar esse travesseiro e matá-lo sufocado. - Toquei o objeto macio.

_ Irá morrer. - Por que contei isso a ele?

_ Será uma morte prazerosa. - Digo devagar.

_ Duvido. - Parecia estar certo de algo. _ Você começaria a chorar, pedindo que eu não morresse e acabaria confessando que gosta muito da minha companhia. - Bufei.

_ Chato.

_ Idiota. - Sorrimos. _ Somos perfeitos. - Cutucou minha bochecha.

_ Para destruir o mundo. - E apenas isso.

_ Corrigir o mundo. - Melhorou minha frase.

_ Mas faremos isso sozinhos. - Suspirou. _ Você de um lado e eu do outro, afinal, não quero estar em sua presença depois de agosto, entendeu? - Peguei um pouco de pipoca, tentando não deixar cair na cama desse ser irritante.

_ Você é chata, por que não admite logo que somos perfeitos juntos?

_ Porque o odeio. - Revirou os olhos. _ E, porque você é chato demais. - Essas palavras não eram mais tão significativas quanto antes, nem parece verdadeiras.

_ Somos chatos e não a odeio, gosto de você. - Isso não deveria estar acontecendo.

_ Então passe a me odiar, será melhor assim. - Melhor para mim.

_ Tudo bem, vou odiá-la, mas você vai saber que gosto de você. - São apenas palavras de uma criança e não tem nenhuma importância.

_ Como saberei disso? - Sorriu.

_ Porque sempre estarei ao seu lado, mesmo você não percebendo. - Ri.

_ Duvido muito. - Ninguém ficava.

_ Não duvide das minhas capacidades, anjo. - Virei de lado e dou as costas para ele. _ Por que não pensamos que esses meses nunca passarão e que continuaremos assim, por toda a nossa vida? - Nunca pensei que ele teria uma mente tão fértil.

_ Não, é chato pensar assim. - Fechei meus olhos. _ E onde você arrumou velas?

_ Já disse que não vou falar. - Provavelmente pegou da cozinha. _ Você já gostou de alguém? - Como entramos nesse assunto?

_ Não, mas as pessoas têm a mania de gostar de mim. - E por que estou... Desisto.

_ Romanticamente?

_ Sim, mas não entendo o porquê de isso acontecer. - Nunca entendo. _ Dragon gostou de mim e Salazar anularia o casamento se eu ficasse e Pollux, ele tinha uma paixonite de adolescente por mim.

_ E quem seriam esses? - Fez desenhos nos meus ombros, mas não o que eram.

_ Pollux Black, Salazar Slytherin e Draco Malfoy, o meu primo. - O sinto pegar o livro dos meus braços e colocar em algum lugar.

_ E você não gostou de nenhum deles? - Por que gostaria? Tenho mais coisa para fazer do que gostar de pessoas.

_ Não, só os via como conhecidos, amigos ou irmãos.

_ E por quê?

_ Porque eles eram bonzinhos demais. - Bufei. _ Não sei, tá legal? Eu só machuco as pessoas, não sei se conseguiria amar alguém. - Não que eu tenha mais essa vontade. _ Então, decidi que não amaria ninguém, sou muito melhor sozinha.

_ Então, estarei ao seu lado enquanto você estiver sozinha. - Deitou-se na cama.

_ Mas aí, não estaria sozinha. - Seus pensamentos são estranhos.

_ Não, você estará. - Fiquei confusa, mas não me virei. _ Você disse que é muito melhor sozinha na questão romântica, mas não na questão amizade. - Como ele...

_ Não quero ser sua amiga, queria matá-lo. - Riu. _ Não ria de mim.

_ Não, continuarei rindo, você não me manda. - Apertou minha bochecha e me deu vontade de empurrá-lo daqui.

_ Pirralho irritante. - Cutucou minhas costas.

_ Se tivesse uma marca em meu corpo, não seria uma cobra. - Estranhei a conversa fora de ordem. _ Seria algo que representasse você e não é uma cobra. - Estava ficando com sono, mas não sentia sono alguns segundos atrás.

_ E o que me representaria? - Bocejei, piscando algumas vezes.

_ Um coelho, Leesa. - Franzi a testa e jurei que escutei o meu nome saindo de sua boca.

Mas como era possível se nunca disse o meu nome para ele?

_ Bons sonhos. - Não, não quero dormir...

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Acordei com alguém batendo na porta e parecia que iria quebrá-la.

_ Eu... - Minha boca foi tampada por uma mão macia e percebi que não estava no meu quarto.

Olho para cima e vejo olhos que aprendi enxergar em qualquer escuridão, eles poderiam ser normais, mas eram tão únicos.

Sei que aqueles olhos poderiam me reconhecer em qualquer multidão e ele sabe que poderia reconhecê-lo em qualquer momento.

Acho que não gosto de seus olhos apenas pela cor ou pelo significado que tentava dizer sem palavras, talvez gostasse de sua alma... O que estou dizendo?

Parei de pensar sobre isso e o vejo colocar seu dedo indicador nos seus lábios, pedindo silêncio.

O Abaffiato não existia mais no quarto e talvez fosse presa por estar aqui, e não quero ser presa.

_ Sua aberração! - Esmurrou a porta. _ Saia logo desse quarto, ou você não terá nada para comer.

_ Não como muito mesmo. - Gritou.

_ Olha aqui, sua peste, se você...

_ Não vou sair. - Cerrou os dentes. _ Ficarei com fome até a hora do almoço, porque sou um garoto desobediente. - Escutei a mulher bufar e algumas crianças riram, mas todos saíram, nos deixando a sós.

Retirou sua mão da minha boca e me sentei na cama, o observando.

_ Está com fome?

_ Não. - Sua barriga roncou. _ Isso não é do meu estômago, é...

_ Sei a diferença do barulho do estômago e do intestino. - Franziu os lábios, mas não falou. _ Pedirei ao Penny que traga algo para nós.

_ Quem é Penny? - Cada dia que passa, estou mais certa que no final tudo será diferente.

_ Um elfo. - Dou de ombros e chamei o elfo. _ Penny, bom dia.

_ Minha princesa. - Gritou e coloquei o Abaffiato rapidamente no quarto. _ Sabe o quão preocupado Penny estava? - Começou a chorar, amassando sua roupa com os dedos e fungando.

_ Está tudo bem, estou bem. - Ajoelhei-me na cama e dei batidinhas em sua cabeça. _ Penny, por favor, me escute, estou com fome. - Piscou, saindo mais lagrimas.

_ Fome? - Secou suas lágrimas no pano que usava. _ Minha princesa está com fome?

_ Sim e o meu convidado também. - Apontei para o garoto que não estava assustado, mas estava fascinado com a nossa interação.

_ Penny trará rapidamente. - Antes que fosse embora, entreguei o saco de pipoca que estava pela metade e o livro.

_ Obrigada. - Desapareceu. _ Aquela mulher é sempre assim? - Apontei para a porta.

_ Sim. - Lembrei de algo.

_ Ontem você disse o meu nome? - Ficou confuso e se sentou ao meu lado.

_ Seu nome? - Tentou se lembrar e negou. _ Você não me contou e ontem apenas falei: bons sonhos.

_ Mas... - Ele não poderia saber o meu nome, devo estar alucinando. _ Tudo bem, devo ter ouvido errado.

_ Bem que você poderia me dizer o seu nome... - Peguei o travesseiro e comecei a sufocá-lo. _ Estou... Brincando! - Tirei o travesseiro do seu rosto que estava avermelhado. _ Estou brincando. - Disse em um só fôlego.

_ Idiota.

_ Você é tão má comigo. - Revirei os olhos. _ Sou tão bom com você. - Tentou me tocar, mas me esquivei.

_ Não, não é não. - Levantei da cama e me espreguicei.

_ O que fiz...

_ Você existe. - Olhei para ele.

_ Isso não é motivo para ser má comigo. - Ficou emburrado.

_ Não, é motivo suficiente. - Fui até a janela e vejo algumas crianças correndo. _ Odeio crianças. - Talvez porque elas me lembravam... Deixa para lá.

_ Você odeia muitas coisas. - Igual você.

_ Sim, nasci para odiar coisas.

_ Devo estar no seu top três de ódio. - Acenei.

_ Está no primeiro lugar.

_ Fico feliz por isso. - Garoto estranho. _ Isso quer dizer que sou muito especial em seu coração. - Parecia um anjo.

_ Não vou contradizê-lo.

_ Porque falei a verdade. - Ficou me observando. _ Você é muito mais bonita a luz do dia. - Não gostava quando ele me elogiava, me sentia estranha.

_ E você é muito mais feio, acho que é por isso que prefiro visitá-lo à noite.

_ Obrigado. - Que pessoa estranha.

_ Não fiz um elogio.

_ E o que tem? - Balançou as pernas. _ Não ligo muito para elogios ou coisas que você fala sobre mim, sei que é mentira. - Como pode ter tanta certeza?

_ E se não for?

_ O espelho do banheiro me diz o oposto e as tias da biblioteca me dizem que sou muito bonito para a minha idade, e tem algumas que dizem que sou um príncipe perdido. - Se colocarmos que ele é um Slytherin, não seria mentira.

_ Tudo cega. - Gostava desses momentos.

_ Elas usam óculos. - Pontuou por fim.

_ Deveriam trocar o grau. - Veio até mim.

_ Você é bem alta. - Não acho...

_ Ou você que é baixinho? - Zombei.

_ Vou ficar maior que você, apenas espere.

_ Contarei os dias. - Continuei olhando para fora e sinto seus dedos alisando minhas costas. _ Você tem alguma coisa contra as minhas costas?

_ Não, só acho elas bonitas. - Era louco, mas era um louco que me entendia.

_ As acho horríveis. - Queria retirar minha pele e colocar outra. _ Você não sente que elas são deformadas?

_ Você está dizendo que você era um pássaro e suas asas foram quebradas? - Nunca contei isso para ninguém, não desse jeito. _ São lindas, mesmo deformadas, você quer ajuda para curá-las? - Não conseguia falar. _ Para você se sentir bem consigo mesma.

_ Elas não são horríveis? - Sussurrei.

_ Não, elas dizem exatamente o que você passou e quão poderosa você é. - Sinto meu coração tremer. _ Você aguentou tudo sozinha e por isso, acha que ser sozinha é a melhor forma, você pensa assim por estar machucada. - Sinto as cobras se mexendo nas minhas costas.

_ Deveria pensar em me unir a você? - Uni minhas mãos, tentando me acordar desse sonho.

_ Sim, mas isso depende de você e não de mim. - Mordi meus lábios. _ Farei você mudar de ideia e estaremos juntos. - Neguei, mas continuou. _ Lado a lado, sem que você se esconda atrás de mim, tentando me manipular como um boneco de ventríloquo.

_ Será você...

_ Não. - Falou sério. _ Ninguém manipulará ninguém e seremos um só, anjo. Seremos as únicas pessoas que estarão em pé de igualdade nesse mundo, e os outros... - Riu. _ Os outros serão os nossos servos e seguidores, mas nós, seremos sócios.

_ Sócios. - Brincar de faz de conta não é tão ruim assim.