"Então disse o Senhor Deus: Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente,
O Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado.
E havendo lançado fora o homem, pôs querubins ao oriente do jardim do Éden, e uma espada inflamada que andava ao redor, para guardar o caminho da árvore da vida." Gênesis 3:22-24
Homura estava ajoelhada sobre os restos do que já deveria ter sido um grande arranha-céu. O vento da desolação estava forte, fazendo o seu cabelo esvoaçar.
Mitakihara estava completamente arrasada. Uma montanha negra no horizonte era como uma lápide para a cidade morta, uma prova de uma sequência de fracassos sem fim.
[A Madoka foi mesmo incrível quando se transformou, não foi?]
Tendo Kyuubey como única companhia, Homura deu ouvidos a ele. Apesar das escolhas das palavras, a criatura falava com o seu costumeiro tom casual ao invés de excitação ou júbilo.
[Eu havia previsto que ela se tornaria a garota mágica mais poderosa de todas, mas jamais pensei que ela destruiria Walpurgisnatch com um só golpe.]
Um golpe. O que estava acontecendo? Era uma cruel piada? Mesmo com toda a preparação, experiência e conhecimento, Homura sentia que estava indo cada vez pior no confronto contra Walpurgisnatch, enquanto Madoka havia chegado nesse ponto. "E você sabia o que aconteceria a ela como resultado?"
[Teria acontecido mais cedo ou mais tarde,] Kyuubey respondeu, [Como a garota mágica mais forte, ela derrotou a inimiga mais forte. Naturalmente, após isso, tudo o que restava a ela era se tornar a bruxa mais terrível de todas.] A criatura continuava a observar a montanha negra, a bruxa parecia ter expandido seu tamanho. [Nessa forma, imagino que ela só precisará de dez dias para destruir o planeta inteiro. Bem, isso é problema da humanidade, não nosso. Até porque, a esta altura, nós alcançamos a nossa cota de energia.]
Homura se levantou e começou a partir.
Notando aquilo, Kyuubey perguntou, [Não lutará contra ela?]
"Não," Homura respondeu com a absoluta certeza, "meu campo de batalha não é aqui."
Aquela garota mágica anômala, que não havia registros de que havia feito contrato, mas que sabia demais sobre tudo, até sobre a chegada de Walpurgisnatch. Kyuubey agora sabia o que ela iria fazer, a última peça do quebra-cabeça havia sido encaixada. [Homura Akemi, você...]
Uma magia roxa envolveu as bordas do escudo que estava no braço esquerdo de Homura. O mecanismo intricado que havia no escudo trabalhou rapidamente, fazendo o objeto circular rotacionar.
Kyuubey viu o escudo desaparecer em um instante, e não somente ele, mas também a gema da alma em forma de losango que havia sobre a mão esquerda da garota.
Então Homura desfaleceu. Seu corpo sem vida começou a cair para trás, mas mais lentamente do que o natural, até que ele parou completamente, como se estivesse congelado no tempo.
Kyuubey testemunhou então a garota ficar transparente lentamente, até desaparecer. Havia apenas o som do vento e de seus pensamentos. [Isso confirma: ela é uma viajante do tempo.]
Outra última peça, de outro quebra-cabeça, estava prestes a ser encaixada.
[Então seria isso?] Kyuubey voltou a olhar para a montanha negra. [Homura Akemi somente decidiu usar o poder agora. Não quando estava claro que ela não era capaz de derrotar Walpurgisnacht, mas somente quando Madoka Kaname fez o contrato e se tornou uma bruxa. Isso era algo que ela estava prevenindo desde que a encontrei no hospital.]
Uma rajada de vento puxou para trás o longo par de orelhas da criatura, concentrada em suas ponderações.
[Homura deve ter feito um contrato por causa da Madoka, em outra linha do tempo se a teoria estiver certa. Tal desejo fez com o futuro de todo o universo dessa linha tempo recaísse sobre o futuro de Madoka. Isso traria um grande karma, mas isso seria o suficiente para tamanho potencial que ela demonstrou?] Kyuubey piscou os olhos, um sinal de epifania. [Eu não sei quantas vezes Homura Akemi viajou no tempo. Talvez eu deva considerar a futuro das outras linhas do tempo também. Um acúmulo de potencial é uma possibilidade. Isso significa que na próxima interação, Madoka Kaname será ainda mais poderosa e liberará uma energia ainda maior.]
O uivo do vento soava como um pranto vindo da montanha negra.
Kyuubey fechou os olhos. [Homura Akemi, isso foi inesperado, mas nós estamos muito gratos pela sua colaboração. Muitos futuros estão sendo salvos com os seus esforços.]
"Quem sabe ela merece uma aposentadoria, não é?"
Kyuubey imediatamente reconheceu aquela voz. A criatura se virou, vendo a mulher alta de longos cabelos brancos e a gema da alma corrompida em sua tiara. [Então você veio. Não é uma surpresa que esse evento chamou a sua atenção.]
O semblante de Estér ficou mais tenso, seu olhar era cheio de desprezo.
Seguido de um silêncio como resposta, Kyuubey percebeu o que havia feito. [Perdoe-me, eu não tinha permissão para falar.]
"Esse não é o problema," Estér disse, "eu já estava aqui faz um tempo, observando. Eu ouvi a sua conversa com aquela garota, inclusive a parte em que você afirmou que esse planeta será destruído em dez dias. Isso é verdade?"
[É uma estimativa grosseira.] Kyuubey assentiu. [Mas a bruxa consome tudo a sua volta, permitindo que ela cresça mais e mais. Se nada for feito, é certo que esse mundo estará condenado.]
"E quanto ao nosso acordo?"
Kyuubey piscou os olhos.
Estér cruzou os braços.
[Você ainda pergunta.] Kyuubey começou a andar, circulando a mulher. [Você nunca cumpriu a sua parte do acordo, você foi avisada.]
Estér seguiu a criatura com os olhos. "Estou muito perto de conseguir."
[O seu tempo acabou.] Kyuubey parou atrás dela e sentou. [Eu tenho que dizer que ainda não tínhamos a intenção de destruir esse mundo, apenas aconteceu. É a sua culpa.]
"Minha culpa?" Estér olhou para o céu nublado, as nuvens sendo sugadas pela bruxa com um tamanho de uma montanha.
[Sim, se você tivesse se tornado uma bruxa, talvez nós já teríamos alcançado a nossa quota. Nós teríamos deixado esse planeta. Madoka Kaname não teria feito um contrato, Homura Akemi não estaria viajando no tempo, aumentando o karma dela, essa bruxa jamais teria nascido.]
Estér deu alguns passos em direção a montanha negra no horizonte, até chegar na ponta da plataforma onde estava.
Kyuubey continuou sentado na mesma posição. [Agora, o que acontecer contigo não tem importância. Você se tornar uma bruxa seria um bom bônus, é claro.]
Estér cerrou os punhos. "Tem algo melhor para dizer?"
[Você ainda pode tentar salvar esse mundo, derrotando essa bruxa, mas eu recomendo que use tudo o que tiver se quiser ter alguma chance. Faz um tempo desde a última vez que você demonstrou a extensão de toda a sua magia, eu espero poder testemunhar isso.]
"Entendo..." Uma rajada de vento esvoaçou os longos cabelos brancos de Estér. Ela esperou o vento acalmar antes de dizer, "infelizmente, para você, eu não poderei derrotá-la dessa vez."´
Kyuubey ergueu seu pequeno par de orelhas. [O que disse?]
A mulher explicou, "Ela está crescendo rápido demais. O que você vê é apenas como uma ponta de um iceberg, ela está enraizando pela crosta terrestre, se espalhando. Logo, montanhas negras como essa irão 'brotar' em outras cidades, talvez já esteja acontecendo. Para destruí-la, eu teria que destruir o planeta."
Kyuubey aguardou ela terminar de falar, sem se dar conta que havia um certo tom de sarcasmo na voz. [Você disse 'dessa vez'...]
Estér virou a cabeça para olhar para criatura. Ela tinha um sorriso de satisfação.
Kyuubey entendeu tudo. Foi então que ele se deu conta que podia ouvir o vento, apenas o vento. Ele se virou várias vezes, olhando para diferentes horizontes da cidade aniquilada.
Mantendo o sorriso, Estér se virou e caminhou até criatura. "O que foi, Qu'ube? Se sentindo sozinho?"
A criatura olhou para ela. [O que você fez?]
"Eu usei telecinese para matar todos outros da sua laia, em um raio de cem quilômetros, ao mesmo tempo. Eu não sei qual é o alcance exato da sua telepatia, então eu preferi me assegurar." Estér ergueu as sobrancelhas. "Além disso, eu fiz no momento que Madoka se tornou uma bruxa. Previsíveis como vocês são, vocês vão fazer uma investigação e, ao não encontrar nenhuma outra evidência, terão a conclusão lógica que foi esse fenômeno que causou as mortes."
Kyuubey nada disse, ainda considerando a possibilidade dela estar falando a verdade, mas o momento de silêncio somente reforçava isso.
"Matriarca estava preparando esse feitiço. Ela estava treinando, melhorando-o, para usar quando conseguisse encontrar um substituto de você. Ela REALMENTE queria chutar o seu rabo, que criança diligente..." Estér suspirou. "Bem, o que você queria contar para os seus... hmmm... irmãos?"
[Você não pertence a essa linha do tempo,] Kyuubey respondeu, [mas nós temos registros do seu contrato. Eu sei qual foi o seu desejo.]
"Sobre isso, não é difícil para você descobrir o que está acontecendo." Estér fez um leve gesto com a mão. "Não que isso importe."
De repente, Kyuubey sentiu uma força invisível o levantar a mantê-lo no ar. Essa mesma força começou a comprimir o seu corpo.
Estér abriu um grande sorriso. "Você só estava ainda vivo pois eu queria ver a sua reação."
A criatura se apressou para perguntar, [Quantas vezes você já viajou no tempo?]
Estér apenas continuou sorrindo.
Kyuubey prosseguiu, [Quantas almas você absorveu durante as suas viagens? Você chegou a absorver as almas das mesmas garotas mágicas várias vezes?]
Estér afirmou, "Suas estimativas estão erradas, Qu'ube."
Kyuubey sentiu a pressão sobre o seu corpo crescer lentamente. A mulher queria saborear o momento o máximo possível e ele deveria aproveitar essa oportunidade para extrair mais informações. Quem sabe, ele conseguiria ganhar mais tempo até estabelecer uma comunicação. [Isso é ruim! Você não tem idéia do que está fazendo? Se você realmente absorveu mais almas do que eu sei, então deixar esse planeta não será mais o suficiente para salvá-lo, talvez nem se você conseguisse deixar esse sistema estelar.]
"Oh, desculpe, eu esqueci de mencionar que eu tenho um plano melhor." Cheia de sarcasmo, Estér assentiu. "Eu já estava ciente do acúmulo de potencial de Madoka Kaname. Homura-chan tem provado ser muito dedicada com as suas viagens no tempo, você não tem noção de quantas vezes ela já passou por isso. Eu acho que só precisa de mais um pouco para que o desejo de Madoka se torne omnipotente." Ela mostrou o punho dela para a criatura e então o fechou. "Quando isso acontecer, eu irei controlar essa garota para fazer um desejo do meu interesse."
[...] Os olhos Kyuubey esbugalharam enquanto a sua cabeça era esmagada pela pressão telecinética.
"Quando eu terminar, eu estarei morta, Leona estará sã e salva, e quanto a você..." O sorriso de Estér deu lugar para um semblante de escárnio. "Você nem sequer será história!"
O corpo do alien estourou, formando uma névoa vermelha que prontamente foi dispersada pelo vento.
A árbitra
Homura escrutinizou a desconhecida mulher de cabelos brancos. Ela havia dado as boas vindas e estava sorrindo, mas parecia haver trilhas de lágrimas em sua face. No chão haviam cinco sementes das aflições, todas inativas.
Espera.
Então, coração de Homura apertou. Dentre as cinco sementes, ela reconheceu duas.
Sayaka, Kyouko...
A mulher alta estendeu a mão. Uma luz laranja coalesceu sobre a palma, gerando um pote redondo e branco.
Homura franziu o cenho, aquilo era alguma espécie de arma?
"Pega." A mulher jogou em pote em direção a garota.
Homura recuou prontamente e viu pote cair no solo. Nada havia acontecido. O pote parecia ser de isopor e havia uma colher de plástico fixada na tampa.
A mulher conjurou outro pote similar em sua mão. Ela o abriu e usou a colher para pegar uma porção do que havia dentro. Era um creme amarelado, que ela saboreou.
Homura tinha um palpite do que seria aquilo, mas isso não reduziu a sua tensão. Aquela mulher era uma matadora, ela havia derrotado Sayaka e Kyouko, e provavelmente as outras garotas também. Ela não podia abaixar a guardar nem por um instante.
"Sorvete e música, duas coisas que bastam para que a humanidade seja digna de sua preservação." A mulher abriu um sorriso maior. "Você não pensa assim, Homura-chan?"
O fato de a mulher falar japonês tão fluente, e com um ar intimidade, só tornava a situação pior. Homura sentiu um embrulho em seu estômago.
"Desculpe, eu estou com um humor ruim agora." A mulher fungou o nariz e comeu um pouco mais de sorvete. "Hmmm, aliás, o sabor do meu é abacaxi. Eu não sei qual você gosta, então coloquei chocolate no seu pote. Não tem erro, não é?"
Homura só estava ali porque aquela mulher havia prometido respostas. "Quem..."
"Ah sim, você pode me chamar de Estér." Ela comeu mais uma colherada de sorvete.
Um vento, ainda fresco por ser de manhã, balançou os longos cabelos da garota e da mulher. Homura não esboçou nenhuma reação.
"Isso não significa nada para você, hein?" Estér ergueu as sobrancelhas. "Vamos fazer o seguinte: você aceita o pote de sorvete que eu ofereci, enquanto eu conto sobre mim."
Homura se manteve parada.
Estér suspirou, ainda simpática, e afirmou, "Eu tinha a sua idade quando me casei com um deus."
"Um deus?" Homura questionou de forma monótona, sem demonstrar interesse.
Estér confirmou, "Sim, de carne e osso, fezes e urina. Esses em que você não precisa ter fé, mas medo." Ela fechou o pote que estava segurando e fez ele evaporar em uma nuvem de pontos laranjas brilhantes. Ela tinha terminado de comer o sorvete. "Por isso, minha mãe me preparou muito bem para seduzi-lo. Ela queria uma vida de nobreza e misturar o sangue de nossa família com o divino. Ela era muito astuta, conseguiu tudo através de mim, mas ela não tinha idéia do que havia criado."
Um rei. Homura tinha um entendimento do que seria aquele 'deus', trazendo outra questão em mente. Há alguma nação nos dias de hoje que ainda considera seu rei como um deus?
"Minha mãe estudou as linhagens de sangue de muitas famílias, o que eles possuíam, o que eles perderam. Ascensão e queda, ela catalogava tudo, e eu herdei esse interesse pela história, mas em uma direção oposta, eu diria." Estér olhou para o céu azul, sem mais estrelas além do Sol. "Quando me casei com ele, garantindo o meu presente, me vendo livre da minha mãe, minhas ambições miravam o futuro. Quando a minha barriga crescia com o primeiro herdeiro, eu só pensava no dia que o deus morreria. Eu sabia o que iria acontecer então, pois mesmo que minha mãe se esforçou tanto em registrar o passado, muita coisa se perde no tempo. Se até os vivos são esquecidos, quem diria os mortos. Tudo termina e deixa de existir, até deuses. Eu não queria isso para mim."
"Foi então que ele apareceu para você," Homura comentou, "Kyuubey."
"Qu'ube..." Estér sorriu.
"Você desejou..." Homura hesitou em concluir, "pela imortalidade."
"Imortalidade?" Estér balançou a cabeça em negação, "eu fui mais... sofisticada. Eu desejei que, mesmo que mundos e tempos morressem, minha existência seria inviolável. Eu sou como uma regra, acima dos universos. Eles passam, eu não."
Homura se lembrou da luta daquela mulher com o homem. O corpo dela podia ser facilmente ferido, mas a gema da alma... Seria ela indestrutível?
"Se você notou, meu desejo tem uma falha fatal, pois eu não sabia sobre a verdade das origens das bruxas. Quando isso veio ao meu conhecimento, eu me perguntei: meu desejo garante a minha existência, mas e quanto a minha existência humana?" Estér suspirou. "Quando perguntei isso para Qu'ube, ele não tinha uma resposta."
"Você ainda confiou nele?" Homura questionou com certa ojeriza.
"Nunca confiei nele, mas as minhas ambições falavam mais alto. Eu ainda acreditei que podia obter a lealdade dele se oferecesse algo em troca," a mulher alta falou com plena normalidade, "então eu fiz acordo com ele. Eu ofertei a terras e o povo de meu marido, a nação de um deus."
Homura arregalou os olhos.
"Oh Homura-chan, como eu era terrível." Estér mostrou um fraco sorriso, em um semblante resignação. "Eu lutava contra bruxas mesmo grávida, sabia? Eu não me importava se eu perdesse o bebê, eu não me importava com a família. Laços de sangue apodrecem, eu não, não mais. A única coisa que me importava era manter a humanidade."
"O que há de humano no que acabou de dizer?" Homura questionou.
"Boa pergunta," Estér manteve o sorriso e continuou a sua história, "o meu plano para tomar tudo de meu marido foi uma questão de tempo, eu diria, pois eu sabia que não iria envelhecer. Para evitar suspeitas, eu decidi em disfarçar a minha idade, usando vestimentas comumente utilizadas por mulheres mais velhas, cabelo preso e um véu para cobrir a minha cabeça. Felizmente, minha mãe não viveu o bastante para notar."
Aquela história parecia que seria longa e Homura não conseguia ver a conexão dela com Madoka. "E o seu marido não notou?"
"Eu acho que ele notou, mas..." Estér sorriu mais. "Ele tinha outras esposas, mas elas ficaram velhas, e ele também não tinha mais paciência em lidar com virgens. Ele passou a desejar só a mim, não tinha como evitar, que homem resiste o vigor juvenil de uma garota mágica com a experiência depravada como a minha?"
Homura nada disse, guardou consigo a idéia de que a vestimenta reveladora da mulher não era coincidência.
"Então eu passei a envenenar os ouvidos dele com intrigas. Fiz ele crer que as outras esposas tinham inveja de mim e conspiravam me matar. Ele se livrou de todas elas, inclusive seus filhos." Estér ergueu as sobrancelhas e deu de ombros. "Conforme a idade dele avançava, ele tinha mais dificuldade de governar, delegando mais e mais poderes para mim. Eu fui muito solidária!"
Homura engoliu seco, já imaginando onde isso iria terminar.
"Então quando me senti pronta, eu provoquei uma conveniente tragédia. Um incêndio no palácio, justamente em uma noite onde estava o meu marido e todos os meus filhos. Ninguém escapou, até eu fui pega pelo incêndio, mas por um 'milagre' eu sobrevivi."
Era pior do que o esperado. Homura suspirou com a tensão de estar face a face com alguém sem escrúpulo algum.
"Sim, meu marido foi o primeiro deus que eu matei." Estér assentiu como se estivesse concordando com a sua própria afirmação. "Então, como a única herdeira legítima viva, eu clamei-me como deusa. Sob a minha soberania, institui uma nova fé em minha nação. Uma promessa de prosperidade e segurança as famílias, desde que elas ofertassem a primeira filha delas que chegasse na pubescência a mim, para serem sacerdotisas."
Homura franziu o cenho sutilmente.
Estér manteve um sorriso.
Uma rajada de vento do deserto passou, cortando o breve silêncio entre as duas garotas mágicas.
"Sua tola," Homura disse, "você pensou que iria comprar o favor de Kyuubey com sacrifícios."
Estér desviou o olhar, buscando se lembrar. "Na verdade, isso funcionou bem por muitos, muitos anos. As garotas vinham ao meu templo que eu havia construído no lugar do palácio. Como sacerdotisas iniciantes, elas tinham apenas a tarefa de manter o lugar limpo e bem cuidado, mas as que Qu'ube via potencial, essas eram convidadas para me ver pessoalmente. Eu oferecia a oportunidade de terem um desejo realizado, em troca de serem minhas agentes 'divinas'. Eu sugeria as elas que fizessem um desejo em prol de suas famílias e da nação. Qu'ube adorava ficar em meu colo nesses momentos."
"E quanto as bruxas?" Homura semicerrou o olhar.
"Ah, elas eram as maldições, responsáveis pelas tragédias e doenças," Estér explicou, "eu dizia para as minhas 'escolhidas' que meu poder divino era capaz de materializar essas maldições perto do templo. Elas eram encarregadas com a tarefa de destruí-las e trazer as sementes da aflição para mim. Elas deviam ter o cuidado de não deixar essas sementes próximas das gemas da alma delas, ou seriam poluídas pelas maldições. Ainda assim, elas eventualmente acumulariam muitas impurezas em suas gemas. A garotas que estavam perto do limite eram convidadas por mim para ritual privado de 'ascensão' para um 'plano mais alto de existência'."
Homura pressionou os lábios e exalou a sua tensão. "Você as tornava em bruxas."
Estér assentiu. "Felizmente, as bruxas dão cabo dos corpos das garotas que as geraram. Seria mais difícil se eu tivesse que incinerar ou fazer covas coletivas."
"Agora entendo como você se relacionou tão bem com Kyuubey," Homura concluiu, "mas isso não durou. Ele traiu você."
"De acordo com ele, fui eu que o traí." Estér ficou séria.
Homura ficou com um olhar inquisitivo diante da reação da mulher.
"Você consegue entender a minha posição. Eu tinha garantido um suprimento sem fim de sementes, mas então eu convivia com dezenas de garotas mágicas. Eu temia que um dia a farsa fosse descoberta. Mesmo que eu não possa morrer, eu poderia ser subjugada pelas magias delas, e elas levariam as sementes embora." A mulher alta ajeitou a sua tiara onde estava a sua gema completamente escura. "Eu precisava de poder, como se fosse realmente divino. Portanto, eu comecei a estudar magia em sua essência, eu observava os contratos que Qu'ube fazia com as sacerdotisas, eu via a magia se manifestar pela primeira vez nelas, no brilho primordial. Então eu fiz uma descoberta sobre as nossas almas."
"Sobre as nossas gemas da alma?" Homura indagou.
"Sim, se você acredita que não é a mesma coisa e quer ser mais específica. O que eu descobri é que todas são iguais."
A garota em trajes fúnebres franziu o cenho.
Estér assentiu. "Eu entendo que você tenha dúvidas sobre o que afirmo, afinal de contas cada garota mágica tem a sua gema da alma diferente das demais, se não em cor, mas no símbolo, e cada uma tem as suas vestes e magias próprias." Ela abriu os braços e deu de ombros. "Eu nem precisaria usar garotas mágicas como exemplo, cada pessoa comum tem o seu conjunto de opiniões e comportamentos, idiossincrasias e vícios..." Ela semicerrou o olhar e levantou o dedo indicador. "Mas aí é que está! Essas são apenas a camada externa, que orbita um núcleo onde jaz o que acredito ser o nosso arbítrio. Esse núcleo do qual nós já nascemos com ele, é feito da mesma 'matéria' para todos, e se é feita da mesma 'matéria, nós podemos juntá-los'."
Homura arregalou um pouco os olhos. As terminologias utilizadas não eram estranhas para alguém que havia estudado química além do que a escola ensinava, para fabricar explosivos, mas a garota estava receosa com o que havia entendido. "O que... você fez?"
"Eu tomei as gemas da alma das sacerdotisas. Me tomou tempo, eu falhei muitas vezes, eu até tentei forçar fisicamente as gemas para entrar dentro da minha, pois eu pensava que iria funcionar como as sementes da aflição, mas elas só absorvem desespero, uma camada externa..." Estér levou o seu dedo indicador até a sua gema da alma. "Só quando eu me concentrei na minha gema, quando tentei sentir o que havia dentro dela, é que tive progresso. Assim que consegui isolar o meu núcleo, a minha vontade pura, das memórias e emoções, eu também comecei a conseguir fazer o mesmo com outras gemas da alma. A partir desse ponto, almas se tornaram algo palpável para mim, eu posso estabelecer uma forte conexão com elas. Aqueles que não tem fé nessa verdade, não são capazes de impedir que suas almas se tornem uma comigo. Para cada gema da alma que absorvo, cada magia, cada pequena esperança, emoção, segredo de sua dona... Passa a estar à minha disposição."
"Isso é loucura." Para Homura, isso confirmava os seus temores. Aquela mulher era capaz de absorver gemas da alma. Isso explicava as variedades de magia que ela havia demonstrado, isso explicava mais uma coisa também. "Kyuubey não iria gostar disso. Se as almas dessas as garotas ainda estão dentro de sua gema, então elas não se tornaram bruxas."
"Isso mesmo." Estér estava de novo com um semblante sério, com um certo tom de desgosto na voz. "Quando ele descobriu o que eu estava fazendo, ele pediu para que eu parasse, mas eu o ignorei. Eu pensava que ele já havia se beneficiado o bastante com o nosso acordo, e que ele não era mais uma ameaça, não com o poder que eu estava adquirindo rapidamente com a absorção de alma. Finalmente eu estava me sentindo segura." Ela balançou a cabeça e suspirou. "Até que um dia ele não mais apareceu. Novos contratos não podiam ser feitos, mas isso era um problema pequeno, pois eu tinha muitas sementes. Eu pensei que eu podia esperar ele voltar do 'mal humor' dele. No entanto, o que veio foi uma tempestade, uma forte chuva nunca vista antes. Em poucas horas, a minha capital estava completamente alagada. A população veio ao meu tempo, clamando pela minha ajuda divina." Ela fechou os olhos. "Eu ainda me lembro dos gritos..."
Veio um silêncio e Homura o respeitou.
"Eu realmente achei que tinha poder para salvar alguém. Eu consegui fazer um buraco nas nuvens tempestuosas e ver o céu azul, mas era como se estivesse chovendo no mundo inteiro. Ondas gigantes engoliram as construções e levaram embora homens, mulheres, velhos, crianças, bebês... Ninguém, ninguém foi poupado." Estér reabriu os olhos exalou sua frustração. "As minhas sacerdotisas deram tudo de si, mas em vão. Eu testemunhei a gema de cada uma delas estourar e se tornar uma semente. Eu tive que matar cada bruxa para obter essas sementes, pois eu não conseguia mais encontrar o templo onde estava o resto, tudo ficou embaixo das águas turbulentas. E assim passou dia, a mesma chuva continuou no dia seguinte, e nos outros dias, então uma semana se passou, duas semanas, três, quatro, um mês, e a chuva não parava."
"O dilúvio," Homura murmurou, ela tinha familiaridade com essa história, dos tempos da escola católica. Mas se o que a mulher estava relatando tinha relação com isso, era algo que aconteceu milhares de anos atrás.
"Eu havia adquirido a magia de voar. Durante esse tempo na chuva, eu procurei por sobreviventes, se alguma coisa havia sobrado da minha nação, mas a visibilidade estava péssima. Eu só consegui desperdiçar todas as minhas sementes, pois eu temia virar uma bruxa. Eu encontrei um tronco de árvore boiando e me agarrei a ele. Eu decidi conservar a minha magia e esperar a chuva parar. Não havia esperanças se não parasse de chover. Eu estava perto de acreditar no fim." Estér sorriu e balançou a cabeça, um sorriso de desapontamento, de alguém que ouviu uma piada ruim. "Tão de repente como ela veio, a chuva foi embora, o céu abriu e o Sol era quente. Eu sabia que aquilo não podia ser natural, eu já suspeitava que era ele, mas eu nem precisei procurá-lo. Qu'ube veio até mim, caminhando despreocupadamente sobre a superfície água."
"Você está me dizendo que Kyuubey foi responsável pelo dilúvio?"
"Oh não, Homura-chan, você já esqueceu? Segundo ele, fui eu que o traí, é minha culpa," falando com ironia, Estér ergueu as sobrancelhas, "aliás, ele me disse que não fez nada, foi um desejo de uma garota, uma princesa de um reino distante. A minha nação havia prosperado, eu era famosa, havia estátuas de mim, meu nome de deusa que eu havia inventado ficou conhecido em terras longínquas. Isso traz admiração, temor, respeito, mas inveja também. Segundo Qu'ube, essa princesa desejou a destruição de tudo que eu conhecia e que eu fosse esquecida," continuando com o tom irônico, ela revirou os olhos, "foi apenas uma 'mera coincidência' que Qu'ube encontrou potencial nessa garota. Essa princesa foi muito burra, pois eu conhecia a existência do reino dela, e isso fez com que a chuva também destruísse esse reino e ela não durou muito."
Homura não estava surpresa quanto aos métodos de Kyuubey.
"Eu o matei. Foi a primeira vez que fiz isso, e foi quando eu descobri que era inútil. 'Outro' ele apareceu e se gabou do meu esforço desperdiçado, antes de me deixar sozinha. Eu acho até que ele planejou isso. Ele deve ter pensado que isso faria eu cair em desespero, mas a única coisa que cresceu dentro de mim foi raiva." Estér respirou fundo. "Eu iria reconstruir minha nação, eu iria me preparar melhor contra aquele cretino, era essa a minha fé. Como a chuva havia parado, eu esperava que a água iria abaixar logo, mas os dias passaram e nada mudou. Então, um barco apareceu no horizonte. Quando ele se aproximou, eu vi que era enorme. Eu voei e aterrissei no convés, que estava cheio de animais. Um homem sujo e fedorento me recebeu, parecia um mendigo. Estava tão bêbado que perguntou se eu era 'mensageira do senhor'. Eu pretendi que sim."
Homura se sentiu compelida em perguntar o nome daquele homem, mas logo descartou a idéia. Toda aquela história podia ser um engodo.
"Ele tinha uma esposa e filhos. Como eles falavam a língua comum da região, eu perguntei se eles eram da minha nação, mas eles disseram que nunca ouviram falar. Eu mencionei o meu nome de deusa, perguntando se eles conheciam, mas também não sabiam. Foi quando me dei conta que meu legado foi interrompido. Eu realmente havia deixado de existir. Homura-chan, eu..." Estér fez uma longa pausa, então balançou a cabeça. "Eu não sei se foi a raiva, o meu desejo, ou um milagre que impediu eu de me tornar uma bruxa. Eu só sentia um vazio dentro de mim, eu não tinha nem sequer a ambição de viver. O homem e sua família tinham bom corações, mas eram pessoa simplórias e tolas. Aquele homem bêbado dormiu algumas vezes comigo, mencionando o nome da esposa dele. Eu podia resistir facilmente, mas não o fiz, pois a minha vontade estava tão morta quanto o resto do meu ser."
Aquela mulher queria ganhar tempo com essa longa história? Ou ela estava esperando por uma reação? Homura sentia que estava ficando impaciente.
"Foram alguns meses nesse barco, até que o bêbado 'ouviu' uma voz dizer que águas haviam baixado o suficiente. Eles decidiram usar um corvo para procurar por terra enxuta, como se um animal selvagem e estúpido conseguisse fazer isso. Após o óbvio fracasso, eu me prontifiquei para a busca. Voando, eu encontrei facilmente, e eu retornei ao barco com algumas folhas frescas como prova. Eu sai voando novamente, prometendo trazer mais, mas eu menti, eu nunca mais retornei, pois eu sabia que estava grávida dele." Estér pôs a mão sobre o seu ventre. "Eu cacei bruxas e purifiquei minha gema, enquanto procurava um lugar isolado para ficar. Por que eu ainda continuei? Eu me pergunto hoje em dia. Eu penso que foi o instinto materno, eu havia mudado muito e não sabia." O olhar dela se perdeu por um momento. "Uma aldeia me aceitou, eu vi a minha criança crescer, e as crianças dela também. Eu deixei o lugar depois, mas continuei os supervisionando a distância, oferecendo uma ajuda tímida. Eles prosperaram, mas o vazio dentro de mim não diminuiu, eu era uma eternidade insignificante. Foi quando então que eu descobri que o meu nome de deusa havia sobrevivido ao esquecimento, já havia multidões venerando a sua imagem. Eu podia retornar ao meu antigo papel, mas eu sabia que se eu fizesse isso, Qu'ube traria destruição novamente. Então ficou claro para mim que os humanos são refém dele, e o sistema de garotas mágicas era a sua arma para podar nossas maiores aspirações. Eu tinha a consciência e o poder para contrabalancear isso, eu encontrei um propósito, como protetora da humanidade."
Homura manteve um semblante impassível ao ouvir aquilo.
Agora em silêncio, Estér pendeu a cabeça de lado e ergueu as sobrancelhas.
A garota em trajes fúnebres nada disse, aguardando que a mulher continuasse a falar.
"Eu respondi a sua pergunta, Homura-chan. Agora você realmente sabe 'quem' eu sou." A mulher alta pôs as mãos na cintura. "Ufa! Eu nunca falei tantas verdades de uma vez. Isso foi... catártico."
Homura até havia esquecido que tinha feito esse questionamento, pois a resposta não tinha sido nada satisfatória. "Você clama ser protetora da humanidade. Você acha que isso trouxe redenção pelo que você fez?"
"Proteger a humanidade é algo bom?" Estér respondeu com uma pergunta, seguido de um sorriso. "Eu acho que você já tem uma opinião formada quanto a isso."
"O que você sabe sobre mim?" Homura foi direto ao ponto, "e Madoka?"
"O tanto quanto você pensa." Estér semicerrou o olhar. "Mas eu sempre descubro coisas novas, como o fato de você ter sido lançada para outro universo quando Madoka fez o desejo que culminou na criação da Lei dos Ciclos."
A expressão de Homura congelou.
"Um universo onde não havia bruxas, mas demônios. Também não havia Madoka." Estér ergueu as sobrancelhas, fingindo surpresa. "Oh, então você não suportou isso. Você falou tudo para nosso querido Kyuubey. Ele te recompensou tornando você em um ratinho de laboratório, em um experimento para controlar a Lei dos Ciclos."
Homura abaixou a cabeça e cerrou os punhos.
"Interessante, muito interessante... Madoka conseguiu resgatar você, mas você capturou a alma dela e a manteve encarcerada em sua barreira, que tomou proporções galácticas. Você também chegou na verdade sobre as almas, mas você estava obcecada demais para se dar conta disso." A mulher sorriu mais. "Você até se intitulou como diaba, o mal encarnado. Huhu, que fofa."
Homura respirou fundo e perguntou, "Como você sabe dessas coisas?"
"Porque eu estou lendo você," Estér respondeu prontamente.
Homura voltou a fitar a mulher, com o olhar um pouco arregalado. "O quê? Lendo?"
A mulher assentiu. "Você já entendeu."
Homura pôs a mão sobre a sua têmpora. "Você... Você está lendo a minha mente?"
"Suas memórias e pensamentos," Estér explicou casualmente, "eu sei que você já considerou que minha gema da alma é indestrutível. Muito perspicaz."
Homura rangeu os dentes.
"Ohhh... Pobrezinha..." Estér disse em tom de zombaria, "está se dando conta que não poderá esconder nenhum de seus planinhos de mim."
Fechando os olhos com força, como se isso pudesse de alguma forma evitar expôr a sua mente, Homura engoliu seco. Como ela poderia confrontar aquela garota mágica?
"Sabe, Homura-chan, Madoka não foi primeira a ser uma ameaça para o mundo todo."
Com aquela súbita afirmação da mulher, Homura reabriu os olhos.
Estér continuou, "Eu não sei se tinha ficado claro, mas eu assumi o papel de proteger a humanidade do sistema de garotas mágicas, e eu não estou só falando de bruxas." Ela balançou a cabeça. "Se Qu'ube não está atrás de garotas ambiciosas, ele está atrás de garotas imaturas e estúpidas. Você não tem idéia de quantas garotas já desejaram que todo mundo morresse ou desaparecesse, só porque era dia ruim."
"Todos..." Homura murmurou, ainda processando a nova informação.
"Felizmente, nenhuma delas tinha o potencial para isso, mas merdas aconteceram, e é eu quem vinha fazer a limpeza." Estér deu de ombros e suspirou. "Esse só um exemplo simples, as coisas ficam mais complicadas quando envolve viajantes do tempo."
"Hã?" Homura estremeceu.
"Você viu eu manipular o tempo. Isso é a combinação da magia de muitas almas de viajantes do tempo que eu tomei. Quando eu tomei a primeira dessas almas, eu fiquei logo ciente de que os meus problemas e trabalho se multiplicariam," Com um tom agora repreensivo, a mulher afirmou, "não importa o quão boa ou bem pensada for a intenção, a viajante do tempo causará uma corrente de eventos na linha do tempo que ela visita, que levará a novas tragédias e desgraças que ela nem tinha noção de serem possíveis, mas geralmente envolvendo garotas estúpidas fazendo desejos estúpidos." Estér puxou seu longo cabelo branco para trás. "Para manter a minha sanidade, eu não tive escolha a não ser caçar todas as viajantes."
"Você está me caçando?" Homura perguntou de pronto, suas mãos tensas se preparando para um combate eminente. "Você está me seguindo pelo tempo? Desde-"
"Eu visitei Mitakihara depois que ela foi arrasada por Walpurgisnatch. Eu encontrei com Qu'ube e ele me informou que uma garota tinha feito um desejo antes dela desaparecer na frente dele. Ele mesmo me disse que ela devia ter viajado para o passado." Estér ergueu as sobrancelhas. "O resto foi fácil, pois eu já tinha a magia para encontrar a linha do tempo para onde você pulou."
"Desde de o começo..." Homura murmurou.
"Quer que eu te conte algo que eu descobri sobre viajantes do tempo?" Apesar da pergunta, Estér não esperou uma resposta da garota. "Nossas almas são atemporais, então é mais fácil que apenas a gema da alma viaje pelo tempo do que o seu corpo inteiro. Assim que que a sua alma chega, ela procura pelo seu corpo naquele tempo e o possui, 'sobrescrevendo' a alma que estava naquele corpo. Você nunca se perguntou do por que você nunca ter topado com uma outra versão sua em suas viagens?"
Ela nem sequer havia pensado sobre isso. Homura permaneceu em silêncio.
"Cada linha do tempo pode haver uma versão de você, mas para viajantes isso não se aplica mais. Viajantes removem a versão que havia ali e depois abandonam a linha do tempo, não deixando nenhum traço para trás. Isso faz nossa existência se tornar 'única' por assim dizer." Estér sorriu, mais relaxada. "Devido como a viagem no tempo realmente funciona, nós não facilmente recebemos visitas de garotas mágicas de passados ou futuros longínquos, pois suas gemas das almas não encontram um recipiente adequado, tendo que criar um do nada, o que normalmente os leva a se tornarem bruxas. Eu só posso ficar agradecida por isso, pois seria caótico demais de outra forma."
Homura não se importava com nada disso, ainda remoendo uma idéia. Desde de o começo... Ela é poderosa, se ela tivesse me ajudado com Walpurgisnatch...
"Eu só segui você para te eliminá-la," Estér afirmou.
"Mas eu ainda estou viva," Homura retorquiu, "por quê?"
"Por causa de Madoka," Estér respondeu, "mais especificamente do potencial que ela acumulou com as suas viagens pela linha do tempo."
Homura sentiu um calafrio. "Você já sabia disso?"
"Isso foi fácil de notar para alguém que está te seguindo." A mulher alta arregalou os olhos. "O mais interessante é que você desejou refazer o seu encontro com Madoka, mas ao invés de retornar no momento exato que isso ocorreu, ou ao menos no mesmo dia, você retornou mais de uma semana antes do ocorrido e, mais importante, antes de Madoka se tornar uma garota mágica." Após pôr ênfase na sua última afirmação, Estér veio com um tom mais inquisitivo. "Com tantas viajantes do tempo que eu lidei, eu nunca vi isso acontecer antes. Por que contigo foi diferente? Eu não achei explicação. Seria um capricho do destino? Sorte? Seja o que for, foi isso que me fez mudar de idéia e então protegi você para ver o quão fundo esse buraco me levaria."
"Você me protegeu?" Homura franziu o cenho, incrédula.
"Homura-chan, sem querer te ofender, mas... Quando você decidiu ser uma loba solitária, você achou que a sua força de vontade, tranças desfeitas e óculos removido tornariam você em uma super garota mágica?" Estér abriu os braços. "Convenhamos! Você explodiu a sua casa várias vezes, eu tive muito trabalho para te manter viva. Você realmente testou a minha paciência com a sua inépcia, e olha que sou eterna!" ela continuou repreendendo, "você se tornou uma garota mágica decente, claro, mas quanto tempo isso levou? ANOS confrontando os mesmos desafios! Eu tive garotas mágicas sob minhas asas que só precisaram de meses para se tornarem competentes."
Homura segurou a respiração, aquelas declarações haviam doído em seu âmago mais do que ela esperava. Eu acreditava que minha força vinha do sinal que eu sempre segui, do único futuro que eu aceitaria, por mais impossível que fosse, mas...
"O pior é que você acreditava que conseguia desfazer os seus fracassos, que você conseguia 'resetar' o tempo. Na verdade, uma desculpa para evitar pensar sobre isso," Estér não havia terminado, com um tom de alguém cheia de razão, "você não sabe quantas vezes eu destruí a bruxa de Madoka, você não sabe os bilhões e bilhões de vidas humanas que salvei enquanto limpava a sua bagunça! E é por isso que você se sentiu no DIREITO de perguntar se eu merecia redenção."
Não, nada disso importa... Homura recobrou sua compostura. Sim, ela era inepta, seus fracassos apenas trouxeram mais morte, e seu egoísmo chegou a trazer a extinção à humanidade, mas havia uma coisa que ela estava certa nisso tudo: salvar Madoka, e Madoka salvou a todos. "Madoka fez um desejo que mudou tudo, eu não estou mais viajando no tempo. O que você pretende fazer?"
Estér silenciou com a pertinente questão, ainda com um olhar tenso.
Homura não insistiu, apenas aguardou.
"'Nada disso importa', hmmm?" Estér relaxou o seu semblante. "Eu acho melhor explicar o que eu estava fazendo naquela base. Você se lembra do foguete espacial?"
"Então era um foguete espacial." Homura assentiu.
"Sim, e era para mim. Ele lançaria uma sonda para viajar para além do nosso sistema solar, para mais longe possível que pudesse. Minha gema da alma seria separada do meu corpo, assim usaria menos magia, e colocada na sonda, ao lado de algumas sementes da aflição." Estér apontou para sua gema da alma enegrecida. "Por que tudo isso era necessário?"
Homura já havia reparado muitas vezes na gema daquela mulher. A pedra parecia estar prestes a estourar e se tornar uma semente, mas isso não condizia com o comportamento tranquilo e a força da mulher.
"Eu tenho uma pergunta fácil para você, Homura-chan," Estér disse, "se uma garota mágica começa a absorver a alma de outras garotas mágicas em sua gema, o que acontece quando essa gema se torna uma semente? Que tipo de bruxa você acha que nasceria disso?"
Se era mesmo uma pergunta fácil, Homura decidiu pela a mais óbvia resposta, ainda que de contragosto, "Walpurgisnatch."
"A Walpurgisnatch que atormentou você em Mitakihara era de uma garota mágica que eu confrontei na Sibéria, há mais de cem anos. Assim como viajantes do tempo, eu também busco exterminar aquelas que descobrem a verdade sobre a alma. Já basta eu como problema." Estér deu um efêmero sorriso. "Segundo a minha contagem, a garota mágica tomou a alma de quarenta e sete outras. É claro que ela não tinha nenhuma chance contra mim, mas eu não consegui evitar que ela se tornasse uma bruxa. A energia liberada pela transição devastou mais de dois mil quilômetros de floresta. Esse fenômeno ficou registrado como 'Evento de Tunguska', sendo a causa atribuída a queda de um meteoro, apesar de não haver uma cratera."
Homura ficou boquiaberta com aquela informação.
"Essa Walpurgisnatch era bem tímida, e com magias elusivas que a garota havia roubado de alguém, eu não consegui mais segui-la... Mas isso não importa mais." Estér ergueu as sobrancelhas. "Se uma gema contendo a alma de quarenta e sete garotas causou tamanha destruição, o que a minha gema pode causar? Eu perdi a conta, mas eu não tenho dúvidas que tenho ao menos dezenas de milhares de almas."
Isso significa... Os olhos de Homura começaram a arregalar.
"Sim, Homura-chan." Estér assentiu. "É bem possível que a minha gema exploda esse planeta, e mesmo que isso não se concretize totalmente, os sobreviventes terão que lidar com uma bruxa eterna, todo-poderosa, compelida por ambições insaciáveis."
Homura olhou para as cinco sementes da aflição que ainda estavam no chão. "Então por que você não limpa a sua gema?"
"Ah, não se preocupe. O desespero que você vê contido em minha gema não pertence a mim. Como eu disse, tais emoções de pessoas alheias orbitam o meu núcleo. Elas podem obscurecer o brilho da minha alma, mas ela ainda está lá."
A garota voltou a um semblante mais calmo. Homura ainda não sabia se haveria negociação com aquela mulher, mas certamente seria impossível se ela virasse uma bruxa agora.
"E não se preocupe quanto ao foguete," Estér continuou, "eu recentemente adquiri uma nova magia que me permite ir para qualquer lugar, em qualquer distância, imediatamente." Ela olhou para o céu. "Homura-chan, no centro da nossa galáxia há um lugar chamado 'Sagitário A estrela', já ouviu falar nele?"
"É um buraco negro," Homura respondeu.
"Sim, supostamente. Eu penso em ir para lá. É quase certo que não morrerei, mas a pressão da singularidade sobre a minha gema deve fazer eu me tornar uma bruxa logo. Se a minha bruxa herdar essa magia de translocação que eu mencionei, ela deve conseguir escapar do buraco negro." Estér fechou os olhos e sentiu o vento. "Porém, se a Teoria da Relatividade Geral estiver correta, quando a minha bruxa sair, eu conto com o fato que trilhões anos terão passado. O sistema solar não existirá mais e a humanidade ou estará extinta, ou terá se espalhado pelo cosmos."
Homura sentiu que algo estava estranho. Se ela leu as minhas memórias, ela sabe como funciona a Lei dos Ciclos.
Estér olhou subitamente de volta para a garota. Ela falou com um tom sério, "Parece que nossa conversa está chegando ao fim."
"Ela está?" Homura tensionou o corpo.
Estér assentiu, voltando a sorrir. "Como um pequeno último favor, eu gostaria que você usasse o seu antigo uniforme de garota mágica. Esse seu vestido negro... Eu não sei, eu acho que é o meu demônio nostálgico cochichando em meu ouvido."
Era um pedido inusitado, mas Homura não encontrou malícia nele, pois ela sabia que isso não faria diferença em um combate. Após ser envolvida por uma luz violeta, Homura reapareceu com as suas vestes originais de garota mágica.
"Onde está o seu relógio de pulso?" Estér perguntou.
"Relógio de pulso?" Homura franziu o cenho.
Estér apontou para o seu próprio antebraço esquerdo. "A sua 'coisinha'."
Entendendo o que ela queria dizer, Homura conjurou o seu escudo em seu antebraço esquerdo. O objeto metálico circular estava com dois compartimentos esféricos e transparentes visíveis, um vazio e o outro cheio de areia na cor violeta. "Presumo que você já sabe como isso funciona."
"Vejo que você poderia viajar no tempo com ele," Estér comentou, "o que você acha que aconteceria se fizesse isso?"
"Eu não sei." Homura desviou o olhar. "Eu não pensei muito sobre isso."
Estér balançou a cabeça, como se estivesse desapontada. "Qu'ube disse a você que esse universo sofreu uma 'ruptura', e ele suspeita que você é a causa disso. Você também acredita nisso, que essa linha do tempo agora começa no momento que você acordou naquele hospital, não há 'passado' antes disso."
Homura pressionou os lábios. Aquela mulher sabia de tudo. "Eu não estou mentindo quando digo que eu não sei. O desejo de Madoka abrange todas as linhas do tempo. Eu ir para outra linha temporal não fará diferença."
"Mas..." Estér deu um leve sorriso.
"Como você deve saber, Kyuubey disse que eu sou a causa do desejo Madoka." Homura examinou o seu escudo. "Se eu realmente me tornei o ponto original, a pedra fundamental dessa linha do tempo, então se eu deixá-la, ela pode acabar 'desmoronando'. A existência do desejo de Madoka e da Lei dos Ciclos estaria ameaçada."
"É um preço alto a se pagar, não é?" Estér assentiu. "Portanto, qual condição faria você usar esse escudo para viajar no tempo?"
Homura fitou a mulher.
Estér apenas ergueu as sobrancelhas enquanto esperava uma resposta.
O corpo de Homura estremeceu, ela até havia esquecido de respirar. Não havia mais dúvidas, ela sabia exatamente quais eram as intenções daquela mulher.
"Nossa conversa está realmente chegando ao fim," Estér disse, em um tom de ordem, "se tem algo para dizer, faça agora."
"Foi você quem deu as coordenadas para Mikuni-san," Homura afirmou, desejando que estivesse errada. Era a sua última esperança.
Contudo, o sorriso de Estér confirmava. "Eu não dei apenas as coordenadas, eu dei para ela um futuro."
"Futuro?" Homura sentiu um sutil tom irônico naquela palavra.
"Homura-chan, você saberia diferenciar um devaneio, uma alucinação, de uma premonição?" Estér balançou a cabeça. "Eu mexi com a cabeça de Oriko Mikuni, dei algo para ela se assustar, pois eu sabia que ela iria contatar você. E eu não precisei ler a mente dela para isso, pois eu estava lá quando ela fez esse acordo contigo, às margens do canal que passa por Mitakihara."
"Todo esse tempo..." Homura murmurou, sentindo uma raiva crescer dentro de si, pois Kyuubey devia saber sobre tudo isso!
"E eu não preciso te explicar de como eu sabia que você iria vir para cá sem Madoka," a mulher alta olhou para as sementes no chão, "sozinha ou com amiguinhas. Isso não importa."
"Você fez isso para me separar dela." Homura arfou, sentindo o peso da conclusão natural dessas ações. "Você... Você pretende matar Madoka antes de deixar esse planeta, não é?"
"Matá-la?!" Estér pareceu que iria sorrir, gargalhar, mas foi só por um curto momento. Sua face agora tinha uma fúria incontida, lágrimas se formaram em seus olhos. "Eu irei DESTRUÍ-LA!"
Boquiaberta, Homura viu a 'máscara' da mulher finalmente cair. Ela exclamou, "Isso não faz sentindo! Você deve saber como a Lei dos Ciclos funciona. Madoka pode prevenir que sua bruxa destrua esse mundo e a humanidade que o habita."
"Eu não preciso de Madoka para salvar a humanidade de mim. Eu posso fazer isso eu mesma." Com força, Estér esfregou os olhos, secando as lágrimas. "Eu aspirava mais dela, eu tinha fé que ela iria mudar mais, muito mais. Agora é tarde demais, meu destino está selado, e o dela também."
"Por favor," Homura suplicou, "eu... Eu também já pensei assim. Eu achava que não havia mais futuro para mim, eu machuquei Madoka muitas... muitas vezes. Eu estava errada."
"E você está, pois você não está na mesma posição que a minha," Estér respondeu, "Madoka é uma deusa, ela irá perder tudo, assim como eu perdi. Essa é a nossa maldição."
Homura balançou a cabeça com vigor. "Madoka não é uma deusa! Ela me disse que não se vê como uma."
"Então isso me dá mais uma razão para fazer isso. Nesse último amanhecer, a esperança morrerá, como Réquiem de uma deusa." Estér estendeu a sua mão esquerda. "Não se preocupe, Homura-chan, você não testemunhará o desespero absoluto que ela sofrerá."
Homura viu uma bola de luz rosa coalescer na mão da mulher, formando um exótico cetro de bastão curto, com uma cabeça em cada ponta. Essa é a arm-
A escuridão na gema de Estér deu lugar a um brilho rosa.
A brilho se intensificou tão rápido, se tornando um flash de luz cegante para Homura. "AH!"
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Não devo estar longe agora. Oriko Mikuni estava com uma mão segurando uma gema da alma corrompida, que pertencia a sua última adversária, enquanto sua outra mão segurava o ferimento em seu abdômen. Sua saia estava pesada, encharcada de sangue, os passos eram difíceis.
Era a subida de um morro. O terreno acidentado, com muitas rochas e arbustos espinhentos, tornava tudo mais oneroso e lento. Era tentador usar magia para ignorar a dor e dar um grande salto sobre aquilo tudo, mas as premonições sempre alertavam Oriko de que se ela fizesse isso, o corpo dela iria explodir em pleno ar, sendo similar ao que aconteceu com Madre.
Akemi-san deve estar confrontando a mulher que Kyouko descreveu, aquela que apareceu na minha visão. Eu não sei se posso ajudar, eu não sei se ainda temos uma chance... Mas eu vou morrer tentando pelo nosso mundo, Kirika, Yuma...
Oriko havia decidido a continuar se aproximando, com cautela, talvez assim ela seria agraciada com o elemento surpresa. No entanto, ela sentiu. "O-O quê?!" O chão estremeceu de leve enquanto o azul do céu foi ofuscado por uma luz rosa. Se não fosse o morro, ela não conseguiria enxergar mais nada. "Essa magia... É demais! Não, não! Eu fui uma TOLA!"
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"Hã?" Sortuda parou e se virou.
E não somente ela. Uma noviça disse, "Vocês também tão sentindo isso?"
Matryoshka se aproximou da garota mágica coelhinha, comentando enquanto olhava para o horizonte, "Isso é muita magia."
"Eu acho que senti a presença da Generalíssima," Sortuda abaixou olhar, "mas... Eu não tenho certeza, eu não sabia que ela tinha tanta magia."
"Bem, ao menos isso significa que ela está lutando." Matryoshka deu um tapinha no ombro do membro da Irmandade das Almas. "Ela está ajudando a Revenante."
"É..." Sortuda queria estar ajudando também, mas ela tinha uma missão. "Vamos indo, noviças, pra um lugar seguro."
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"Gnnn..." A luz foi perdendo força e Homura começou a abaixar lentamente o braço com o escudo que ela usou para proteger os olhos, olhos que se arregalaram.
Os olhos de Estér tinham intenso brilho rosa, lembrando muito o divino brilho dourado do olhar de Madoka. A gema tinha o mesmo intenso brilho, mas o que era realmente aterrador era a aura circular atrás da mulher. Como um halo, uma imensa mandala, com cores e formas geométricas complexas. Era similar ao de Walpurgisnatch, e definitivamente maior!
Esse era o poder da garota mágica que derrotou a bruxa da Madoka nas linhas do tempo anteriores, e que poderia ser muito bem o poder para matar Madoka agora.
"Seja honrada," Estér falou, enquanto cada cabeça da sua arma, sua vajra, estava acumulando uma força luminosa rosa, "eu não me lembro da última vez que revelei a minha 'presença divina'. Quem duvidaria que eu era uma deusa se me vissem assim, huh?"
Homura sentiu o peso de seu escudo no braço esquerdo. Não havia alternativa. Ela precisava de um plano, de uma preparação, de tempo, e essa era a única forma de conseguir isso. Confrontar Estér agora era impossível, um suicídio, e Homura estava consciente de que se morresse, Madoka morreria também.
Estér ergueu as sobrancelhas. "Você acha que consegue formar um plano contra mim?"
Uma luz lilás se formou no contorno do escudo, só mais alguns segundos. Talvez a arrogância daquela mulher seria a sua chance. Homura já estava determinada em usar o próprio corpo para proteger o escudo. Ela não sabia o que iria acontecer, mas se acordasse no hospital, se o desejo de Madoka tivesse sido desfeito, ela faria tudo de novo, ela lutaria contra as bruxas, contra outras garotas mágicas se necessário, se preparando para derrotar Walpurgisnatch e... Encontrando uma forma de proteger Madoka dessa mulher.
"Você nunca irá vencer." Estér balançou a cabeça e suspirou. "E ainda assim você vai tentar. Eu estou agradecida pela a sua teimosia, ela me serviu bem, mas essa história termina aqui."
As engrenagens do escudo começaram a girar. Só mais um segundo. Homura agiu, girando o corpo conforme planejara, deixando-a entre a mulher e o escudo. Madoka, eu falhei contigo de nov-
O pote de isopor no chão, perto de Homura, estourou, envolvendo a garota de imediato com uma espessa nuvem branca.
O brilho nos olhos e na gema de Estér se dissiparam, a aura desapareceu, assim como ela fez evaporar a sua arma. Após isso, ela tranqüilamente se aproximou da nuvem e aguardou.
Segundos se passaram até a nuvem dispersar, revelando o corpo completamente congelado de Homura, uma estátua coberta de gelo, ainda carregando um semblante resoluto.
"Você deveria ter aceitado a minha generosa oferta de última refeição." Estér andou envolta da garota congelada. "Ao invés disso, deixou um objeto criado com a minha magia, sob MEU controle, perto de você. Você sempre consegue me desapontar, se você fosse a minha pupila, eu teria muito trabalho."
Ela parou e examinou o escudo no braço esquerdo de Homura, ele nem tinha começado a girar. "O problema de dispositivos com mecanismos intricados é que eles tendem a emperrar quando estão sob temperaturas extremas. É nesses momentos que o que parece forte e resiliente mostra ser sensível e frágil." Estér então estendeu o seu braço de uma vez, perfurando o peito da garota.
O corpo de Homura rachou e colapsou como um fino vaso. Milhares de fragmentos caíram no solo árido, acompanhados por uma quantidade similar de pequenas engrenagens, que davam vida à boneca de cera.
Esse não era o interesse de Estér, seu foco estava no que a sua mão havia pego: uma salamandra congelada de cor lilás. A mulher sorriu e sussurrou, "Descanse bem, Homura-chan," antes de fechar o punho e esmagar o pequeno animal.
Com isso, os fragmentos do corpo de Homura começaram a evaporar, formando uma névoa negra.
Estér reabriu a mão e viu a névoa se espiralar sobre a sua palma. A escuridão se solidificou, adquirindo a forma de uma semente da aflição, com os seus detalhes metálicos simbolizando uma ampulheta.
A mulher não contemplou por muito tempo o objeto que estava segurando. Ela fechou o punho novamente e o chacoalhou com força. Depois ela parou e reabriu a mão.
Como um truque de mágica, agora havia uma moeda prateada no lugar da semente.
Estér pegou a moeda com a outra mão e a examinou. Era uma moeda antiga, com um dos lados contendo o rosto de um deus que deixou de existir, um deus que só ela ainda sabia que já existiu, pois o seu ventre carregou a prole dele, um legado morto.
"Guerras, pragas, desastres... Tudo isso para que no fim a extinção da humanidade fosse decidida por uma mera moeda." Estér olhou para uma face da moeda. "Cara, o mundo morre." Depois ela olhou para a outra face. "Coroa, o mundo morre."
A mulher lançou a moeda para o alto, ela quase perdeu a vista do pequeno objeto se não fosse o reflexo da luz do Sol na superfície de prata.
A moeda quicou no chão seco várias vezes e começou a rolar em círculos.
Estér chegou mais próximo para confirmar.
A moeda perdeu velocidade e, finalmente, tombou, decidindo o destino de todos.
Coroa
Com um semblante impassível, assentindo levemente algumas vezes, com um ar de relutância, ela proferiu, "Xeque-mate."
No instante seguinte, não havia mais ninguém ali.
Próximo capítulo: A origem do mundo
