Cinco eram os clientes que se encontravam no pequeno mercado de bairro naquele instante. A mulher de estilo gótico, com roupas pretas e maquiagem escura, estava na prateleira dos chocolates e salgadinhos industrializados. Carregava uma das cestas do mercado, e colocava amendoim salgado dentro dela. Passou por ela um homem jovem conduzindo um carrinho com bebidas destiladas. Esse jovem homem, em idade universitária, parou ao lado da mulher de estilo gótico, e depositou no carrinho alguns pacotes de batata frita. Os dois trocaram olhares, mas nenhuma palavra foi dita. Talvez o jovem homem tenha pensado que a garota gótica era estranha, e ela, por sua vez, possa ter pensado que o jovem homem era um filhinho de papai superficial.
No corredor ao lado, um funcionário do mercado estava repondo produtos nas prateleiras. Passou por ele uma mulher de meia idade em roupas casuais.
"Como tudo está caro!" Ela disse ao funcionário.
"Fazer o quê?" Ele respondeu rapidamente e continuou o serviço, enquanto a mulher de meia idade seguiu comparando os preços.
Uma senhora idosa se encaminhava para o único caixa disponível naquele momento, que era operado por uma mulher balzaquiana. Por último, um homem de meia idade, vestido com uma camiseta que servia de uniforme de uma oficina mecânica, estava no fundo do mercado, passando em frente ao freezer que conservava os sorvetes. Ele pegou um pote e o colocou na cesta que carregava. Havia ainda um funcionário que trabalhava no estoque, e o gerente do mercado, que naquele momento estava no banheiro.
Todos estavam ocupados demais com os próprios problemas e tarefas. A garota gótica estava com problemas de relacionamento, o jovem homem fracassava na faculdade, a mulher idosa sofria de solidão, a mulher e meia idade se preocupava com o filho rebelde, e o homem da oficina mecânica estava com os negócios em risco por causa da criminalidade no bairro. O funcionário que fazia reposição dos produtos se preocupava com os próprios poucos ganhos, a caixa do mercado estava grávida outra vez, o funcionário do estoque estava desesperado para manter aquele emprego, e o gerente naquele momento se preocupava com a suposta comida estragada que ingeriu no almoço.
Ninguém prestou atenção na briga que acontecia do lado de fora da loja, em parte porque seus pensamentos estavam longe dali, em parte, porque a música ambiente estava particularmente alta naquele instante. Até que um homem vestido em um terno foi arremessado contra a porta de vidro. Um segundo homem, também em terno, entrou de forma atrapalhada no mesmo mercado. Ele passou direto pelo homem caído, e correu para o interior o mercado. O corredor mais centralizado era o que vendia petiscos e chocolates, onde a garota gótica e o jovem universitário se encontravam. O homem usando terno foi de encontro a jovem mulher, e a dominou agarrando-a pelo pescoço.
"Fica quieta!" Ele gritou ao revelar a arma de fogo. "Fiquem todos quietos."
A idosa e a caixa do mercado ficaram paralisadas, tal como a mulher de meia idade e o funcionário que correram para se esconder em um canto do mercado próximo a porta do estoque. A razão pelo desespero o homem bem vestido não demorou a se revelar. Entraram no mercado duas pessoas vestidas em roupas pretas e mascadas, de forma que tudo que se poderia ver eram os olhos. A primeira pessoa era mais alta, próximo a 1.80m. A segunda pessoa era menor em estatura.
"Se vocês se aproximarem, eu atiro!" O homem de terno berrou para as pessoas mascaradas.
"Não faça nenhuma bobagem." O mascarado mais alto revelou uma voz metalizada.
"Fique aí na sua ou eu atiro!" O homem berrou mais alto.
O mascarado levantou as mãos e procurou negociar, enquanto o companheiro verificou os sinais vitais do outro homem abatido.
"Ele está vivo, mas sangrando." O mascarado mais baixo informou e se voltou para as mulheres acuadas no caixa. "Ligue 911." Ordenou. "Tall, temos cinco minutos."
O mascarado mais alto casualmente pegou um vidro de geleia em oferta, colocada na entrada do corredor.
"Cara, solta a moça. Todas as provas já foram enviadas à polícia. Acabou."
O jovem universitário fez um movimento brusco, chamando a atenção do homem de terno, e foi baleado ao fim do corredor, levando o homem mascarado a agir rápido. Ele jogou o vidro de geleia precisamente no rosto do homem de terno e, numa corrida precisa, segurou o pulso do homem, o fez soltar a arma com uma torção de pulso, libertou a jovem e conseguiu empurrar a ameaça. O mascarado menor, apareceu em seguida, aplicando um soco tão forte, que fez o homem de terno desmaiar.
O mascarado maior amparou a jovem mulher gótica, ao passo que o menor se ajoelhou diante do universitário baleado.
"Não foi fatal." O mascarado menor disse em voz metálica. "Eles vão ficar bem. Precisamos sair daqui."
O mascarado maior acenou para o companheiro, e deu uma pequena piscadela para a garota gótica.
"Ligue 911!" Reforçou o mascarado menor para a caixa e a idosa antes de os dois deixarem o local.
A caixa alcançou o telefone e fez a ligação necessária. O mecânico e a mulher de meia idade se aproximaram do jovem ferido. O universitário estava em choque, mas aparentemente a bala entrou no ombro pelas costas, e não atingiu nenhum órgão vital. O gerente saiu do escritório, encontrando o pequeno caos que estava no mercado que administrava.
"Mas que merda aconteceu aqui?" Ele não perguntou para alguém em particular.
"Aqueles mascarados queriam esses caras." O mecânico se aproximou o homem de terno desmaiado no chão. "Não roubaram nada. A treta era com esses caras, aparentemente."
"Talvez isso faça algum sentido." O gerente levou a mão à testa. "Eu conheço esse cara."
"Esse não é o..." O funcionário de aproximou.
"Big Mike... o mafioso que cobra mensalidade pela segurança do bairro."
"Mas ele não anda com vários seguranças?" O mecânico perguntou.
Os dois homens decidiram olhar para fora da loja, e o que encontraram foram vários homens caídos pela calçada e pela rua. Ao horizonte, já adentrando a rua, a polícia chegava. Não havia mais nenhum sinal da presença dos mascarados. O homem de terno e o jovem universitário foram atendidos e levados de ambulância. Todos os demais também foram atendidos pelo serviço e emergência, mas o problema deles era mais psicológico do que físico, e cada um deveria lidar com isso depois da melhor forma que pudessem. A notícia não tardou em se espalhar, uma vez que as câmeras de segurança instaladas no mercado de bairro conseguiram registrar boa parte da ação.
...
"Eu nunca tive tanto medo em minha vida." Tina disse aos colegas. "Eu estava lá no mercado, na mais perfeita paz e, de repente, eu tinha certeza que iria morrer ali mesmo."
"Eu ouvi dizer que um braço a máfia foi ao chão nesse dia." Sam disse com os olhos arregalados.
"Sim, está em todos os noticiários." Rachel disse em conflito. Ao mesmo tempo em que ela estava feliz porque a colega sobreviveu a uma situação de risco, havia uma ponta de ciúmes pela atenção que Tina estava recebendo. No dia anterior, Tina apareceu em três canais de televisão e fez declarações a diversos jornais.
"Eu falei com Big Mike uma vez." Finn relatou aos colegas. "Ele levou o carro dele para fazer um reparo. Pagou 10% a mais do preço orçado para que o serviço recebesse atenção exclusiva."
"Como um cara que mal tinha 1.60m pode ser chamado de Big Mike?" Sam perguntou quase que casualmente.
"Dizem que o big dele não é uma referência à altura." Kurt disse com o habitual tom cínico.
"Você não conseguiu ver nada sobre os dois vigilantes?" Sam perguntou.
"Nada!" Tina disse com certa decepção. "Aliás, um deles tem olhos azuis. É o mais alto que me salvou. Eu olhei bem nos olhos dele. Eles usam uma maquiagem preta ao redor dos olhos, mas posso dizer que os olhos do mais alto definitivamente são azuis. Não deu para ver nada sobre o mais baixinho. Só que ele era muito forte."
"Ai que tédio." Santana disse em tom reprovador. "Agora vamos ter que ouvir pelo resto do mês sobre a maior emoção que a garota Chang já experimentou em sua entediante vida. Eu não sei se vou aguentar."
"É só tampar os ouvidos, Santana." Tina desafiou. "Ninguém te chamou para a conversa mesmo."
"Não fui eu que não foi chamada para a conversa, Chang. Foi você que a sequestrou em primeiro lugar para contar sobre o seu pequeno drama, que todo mundo já sabe do que se trata."
"Vai se foder, Santana." Tina esbravejou.
"Isso realmente seria ótimo... para mim mesma. Super relaxante." Santana respondeu com um sorriso cínico.
"Você é nojenta." Rachel fechou a expressão do rosto, e ganhou um beijo jogado no ar pela colega.
"Não é hora de provocar, Satan." Mercedes disse ao pé do ouvido da amiga, que recuou.
"Mas eu os odeio e provoca-los com verdades é divertido." Santana respondeu igualmente reservada para a amiga.
"Mantenha a postura."
"Sinceramente, eu não sei o que estou fazendo aqui."
"É que você me ama."
"Não seja tão otimista, Wheezy."
A jovem mulher fez um sorriso teatral para o grupo e ficou em silêncio. Nesse meio tempo, William Schuester, diretor e produtor do musical a ser montado no teatro comunitário, chegou ao palco e interrompeu a conversa. Os ensaios precisavam continuar, pois eles estavam à apenas um mês da estreia da peça protagonizada por Rachel Berry e antagonizada por Mercedes Jones. Era uma peça musical de curta temporada, amadora, produzida com investimentos da própria comunidade que cuidava do aparelho cultural, além do patrocínio da mecânica Hummel.
Tanto Mercedes quanto Santana eram recém-chegadas naquele grupo formado desde o ensino médio. Rachel Berry, Finn Hudson, Tina Cohen-Chang, Sam Evans, Kurt Hummel eram remanescentes de um grupo que, um dia, foi maior. A união da dupla de garotas foi de responsabilidade da própria Tina: ela, como estudante da Universidade Estadual, conhecia Mercedes, estudante de jornalismo, que por sua vez era colega de quarto de Santana Lopez, estudante de engenharia civil. Tina convenceu Mercedes a fazer uma audição para a nova peça, e esta, por sua vez, convenceu a melhor amiga a acompanha-la. Não era objetivo de Santana fazer um teste, e muito menos permanecer no grupo. Ela estava ali como um favor à melhor amiga: Mercedes sim era uma ávida entusiasta pelas artes do canto e do teatro.
Ao final do ensaio da noite, de maneira inesperada havia uma dupla de jornalistas ávida para entrevistar a testemunha e sobrevivente. A garota universitária que gostava do estilo gótico não tinha mais nada a acrescentar sobre o evento, mas na busca de alimentar a repentina atenção, passou a exagerar sobre a ação e sobre os próprios sentimentos.
"Espero que ela aproveite bem os 15 minutos e fama." Rachel ironizou já a caminho do estacionamento.
"Eu não desejaria esses 15 minutos de fama." Kurt comentou. "No lugar dela, eu estaria dando entrevistas a psicólogos em vez de jornalistas."
"Vamos para casa, pessoal." Finn abriu a porta da caminhonete para a namorada entrar. "Hoje você quer dormir comigo ou vai para a sua casa?"
"Vou para a minha casa, se não se importa. Tenho aula amanhã."
Finn acenou para a namorada e esperou o irmão entrar no veículo. O dia de ensaio havia terminado, tal como a semana o teatro.
...
"... não penso que a população deva começar a vestir máscaras e passar a fazer justiça com as próprias mãos. Nós temos leis! Por mais que algumas delas possam parecer excessivas sob alguns aspectos, mas são leis. Por outro lado, precisamos entender que esses fenômenos sociais são consequências do mal funcionamento do sistema de segurança, das políticas públicas e pela ação corrupta de certos elementos que atuam nessas entidades. Os vigilantes são criminosos. A presença deles são sintomas de que as coisas estão muito erradas. Nossa polícia é frouxa, e meus colegas acham que se combate o crime dando sermões, como se os criminosos fossem crianças de cinco anos..."
Kurt acompanhava o comentário de Sue Sylvester no noticiário da manhã. Ele não gostava da popular vereadora que tinha plataforma antissistema, mas que costumava atuar em conjunto com o sistema. Sem mencionar que Sylvester era a principal adversária política de Burt Hummel, pai de Kurt e líder do grupo responsável pelas propostas progressistas da cidade. O que mais incomodava Kurt era que ele concordava com Sylvester. Ela era uma pessoa absolutamente desagradável, e estar de acordo com ela era por si só bastante conflituoso.
"Parece que não se fala de outra coisa nessa cidade." Rachel resmungou.
"Especialmente quando as coisas começaram a acontecer tão perto de casa." Kurt terminou de tomar a xícara de café.
"Tina é uma exagerada."
"O que aconteceu com ela foi real. Ela correu risco de morte. Eu não queria estar na pele dela, nem esse tipo de 15 minutos de fama."
"Eu estou grata que Tina está bem, Kurt. Eu só não gosto desse debate. Eu prefiro me dedicar aos meus objetivos."
"Ser aceita pela C Academy." Kurt revirou os olhos. "Rachel, querida, você já recebeu três cartas de recusa. Se quer saber, o melhor que você faz é se formar pela faculdade comunitária e tentar as audições que surgirem. Pronto."
"Obrigada pelo apoio." Rachel resmungou para o amigo.
Ela pegou a mochila no quarto e saiu do apartamento que dividia com o amigo. Quando não tinha o benefício das caronas do namorado, Rachel precisava caminhar até a estação do metrô e pegar a linha azul para chegar a faculdade comunitária. Era um percurso realizado em apenas dez minutos, sem contar com a espera na estação. A faculdade comunitária da cidade foi instalada em um prédio histórico. Tratava-se de um conjunto arquitetônico que envolvia um edifício quase centenário, integrado a um segundo novinho em folha de arquitetura contemporânea. O campus era objeto de amor e ódio na mesma proporção. Rachel gostava da mistura.
Rachel concluiu o curso de atuação no último termo letivo. Como nada de novo aconteceu no campo profissional, a não ser o dinheiro recorrente que fazia cantando regularmente em um restaurante e os ocasionais trabalhos de marketing, ela decidiu continuar a estudar classes mais avançadas de artes performáticas. Kurt também era estudante da Faculdade Comunitária, muito embora ele tenha preferido os negócios com o intuito de abrir a própria butique online. Do grupo do teatro comunitário, os estudantes se resumiam a Rachel, Kurt, Tina, Mercedes e Santana, embora as três últimas estudassem na Universidade Estadual para ganhar o diploma de metido a besta, como Finn Hudson costumava dizer.
"Bom dia, Quinn." Rachel entrou no hall do prédio moderno a faculdade, e viu a colega que trabalhava na cafeteria já no habitual uniforme.
"Olá, Berry. Vai o de sempre?"
"Sim." Rachel sorriu e entregou as moedas para que Quinn registrasse no caixa. "Se puder colocar mais canela, eu vou te amar pelo resto da minha vida."
"Sempre exagerada." Quinn sorriu educadamente e começou a trabalhar no capuchino.
"Como está Beth?"
"Está ótima."
"Ela está gostando da escolinha?"
"Sim. As coisas ficam melhores quando a gente se socializa com nossos afins."
"Verdade."
"Canela extra." Quinn entregou o copo de café à estudante.
Quinn observou a estudante se afastar. Não tinha muito o que pensar naquele momento além de sorrir e atender o próximo cliente que já adentrava na fila. Todo dia era sempre igual: a faculdade funcionava de segunda a sexta-feira, e Quinn trabalhava no turno da manhã, que era tradicionalmente o mais movimentado. A cafeteria era dela em sociedade com Joe Hart, em uma parceria em que ela trouxe a disposição administrativa e ele o trouxe o investimento inicial. Ambos tinham suas parcelas na força de trabalho. A loja instalada nas dependências da faculdade tinha apenas um ano, mas a clientela era garantida e isso possibilitava que Quinn tivesse uma remuneração boa o bastante para as despesas, e para criar a filha de cinco anos de idade.
"Oi Quinn." Joe apareceu a trabalho quando já havia uma fila. Ele, imediatamente, colocou o avental da pequena empresa, e arregaçou a manga da camisa. "Desculpe o atraso."
Havia dois principais picos de consumo de café pela manhã: no momento da chegada dos estudantes e no momento do almoço ou saída da maior parte deles. No intervalo entre uma coisa e outra, Joe e Quinn faziam a manutenção do lugar. Joe trabalhava sozinho no período da tarde, pois Quinn aproveitava o menor movimento para lidar com os fornecedores e pagar contas, além de cuidar a filha. A loja fechava as 18h, mesmo havendo aulas no período noturno da universidade. Tudo isso era rotina.
"Conseguiu se matricular no curso à distância?" Joe perguntou depois que eles atenderam o último cliente da fila na primeira etapa da manhã.
"Yeap."
"Animada?"
"Tenho que estar."
Quinn sorriu para o sócio como um gesto protocolar. Por dentro, ela tinha tantas dúvidas conflitantes sobre si mesma, que se parasse para pensar à sério, a cabeça explodiria. Ao fim do expediente, Quinn andou até o quarteirão ao lado, onde ficava a escola de Beth. A garotinha estava animada com as atividades do dia junto aos colegas de classe. A escola organizava uma excussão ao zoológico, e Beth foi o caminho inteiro para casa falando a respeito. Quinn morava próxima a faculdade comunitária, em um complexo de apartamentos destinados a pessoas de classe-média baixa. O apartamento alugado por Quinn, assim como metade dos demais do complexo, tinha dois quartos, um banheiro, e uma cozinha-sala, além da área de lavanderia comum que servia aos moradores do prédio. Quinn não precisava de luxo. Ela, que teve uma infância de luxo, chegou a morar na rua quando os pais a expulsaram de casa. Aquele apartamento era uma mansão perto do que ela passou na vida.
"Quinn Fabray!" Uma jovem mulher trans negra a cumprimentou a caminho o elevador. "Olha a pequena Beth! Como está?"
"Oi Unique." Quinn sorriu para a babá favorita de Beth.
"Oi tia Unique!" A garotinha disse feliz.
"Chegando do trabalho?" Unique perguntou já apertando o botão do quinto andar em que ambas moravam.
"Na verdade, dando uma pausa no trabalho." Quinn lamentou. "Tenho contabilidade a fazer."
"Boa sorte, amiga. Uma pena que não posso te ajudar. Matemática é o meu pesadelo particular."
O trio saiu do elevador. No corredor que continha quatro portas de apartamentos, Quinn pegou o caminho da direita, ao passo que Unique pegou o da esquerda. Unique entrou no apartamento dela, que tinha uma decoração um pouco mais festiva do que o de Quinn Fabray, e deparou-se com a companheira e quarto, Marley Rose terminando de arrumar a cozinha.
"Bom dia, Rose." Unique atirou-se no sofá. "Eu estou acabada."
"O pós-show deve ter sido espetacular, pelo visto." Marley sorriu.
"O melhor!"
"O melhor tem nome?"
"Dave Karofsky."
"Sério? Karofsky? Que tipo de nome é esse?"
"Não tenho ideia. Deve ser do leste europeu. Mas ele é americano, sabe? Um urso desses que adora o fato de eu ainda ter o meu piu-piu."
"Oh, um urso gay?"
"Ele disse que eu sou o melhor dos dois mundos... e digo mais... ele adora ser passivo." Unique gargalhou. "Eu saí do apartamento dele ainda a pouco, e ele implorou para que eu pegasse o cartão de visitas para combinar outros encontros." Unique procurou o cartão dentro a bolsa e o mostrou para a amiga.
"Dave Karofsky, eletricista e bombeiro hidráulico? Bom, vamos manter o cartão, porque a gente pode precisar dos serviços dele em algum momento. Essa pia da cozinha é um pesadelo."
"Já vai trabalhar?"
"Sim, mas antes vou passar na firma. Grant pediu para eu passar no escritório dele."
"Sabe o que o seu irmão quer desta vez?"
"Ele não é o meu irmão."
"Vocês não foram criados juntos?"
"Eu nunca deixei de ser a filha da cozinheira, Unique." Marley foi rapidamente ao quarto dela e pegou a mochila.
"Grant não te trata assim."
"Não, mas os pais dele fazem questão de lembrar qual é o meu lugar sempre que eu apareço na mansão."
"Lixo privilegiado!"
"Descanse bem, querida." Marley beijou o rosto de Unique antes de seguir para a porta.
"Eu irei. Ou eu não vou conseguir fazer o meu show de hoje."
Marley sorriu e fechou a porta do apartamento. O caminho para o escritório de advocacia de Grand Fisher era longo, na parte nobre da cidade onde morava parte da classe privilegiada que ocupava as margens do maior e mais importante parque. Na outra margem do parque estava a universidade estadual. Marley pegou o carro compacto e econômico que dirigia e enfrentou o trânsito. Entre uma retenção e outra ao longo do percurso, ia se distraindo na estação de rádio favorita. E não raro cantava a canção juntamente com o som que saía dos autofalantes do veículo. Unique fazia shows regulares no complexo hoteleiro que funcionava o maior e melhor cassino da cidade. Ela fazia parte de um grupo de drag queens e mulheres trans que animava a única boate LGBT do complexo hoteleiro. Marley também trabalhava no hotel, porém na pequena equipe de TI. Uma vez por semana, depois do expediente, ela se apresentava em um bar próximo dali que permitia artistas amadores apresentarem material autoral ao piano ou ao violão. Ou era isso, ou era algumas aparições especiais que fazia no show de Unique.
O escritório de advocacia dos Fishes ocupava cinco andares de um moderno arranha-céu. Marley tinha o passe livre na recepção do prédio devido a uma credencial que possuía que lhe dava status de funcionária de uma das dezenas de empresas que funcionavam ali. Grant era um recém-formado em direito, e o escritório dele ficava no terceiro dos cinco andares que a firma ocupava. Marley cumprimentou a recepcionista do andar, e foi direto no setor de quatro salas ocupadas pela equipe e Grant: a maior era dele próprio, e uma segunda era comandada por Ryder Lynn, encarregado pelos casos pro bono vindos de uma comunidade menos favorecida que Grant atendia.
"Oi, bro!" Marley deu pequenas batidas à porta antes de entrar no escritório.
"Marley, que bom que você veio. Preciso de um favor."
"O que foi dessa vez?"
"Eu preciso de um serviço discreto seu."
"Do que se trata?"
"Preciso de alguns bons firewalls para um computador de uso pessoal."
"Eu não vou fazer isso pro bono... ao contrário de você, tenho que pagar aluguel."
"Prometo que pagarei o justo."
"É para o seu computador?"
"Não, é para uma amiga. Eu preciso que você blinde o celular e o computador dela com o melhor sistema que tiver à disposição."
"Você sabe que tem uma equipe muito boa de TI aqui mesmo na firma." Marley ficou intrigada.
"Não é pela firma." Grant pegou um pedaço de papel e o entregou para a irmã de consideração. Tratava-se do nome, do telefone e do endereço da tal amiga.
"Eu só vou poder atender depois do meu expediente, ou amanhã pela manhã."
"Eu preciso disso o mais rápido possível."
"Então hoje à noite."
Marley se espediu de Grant e voltou ao velho carro. O hotel ficava a três quarteirões dali. Ainda bem que os funcionários tinham direito a uma vaga no estacionamento interno sem precisar pagar o absurdo que o próprio hotel cobrava pela facilidade dos respectivos hóspedes e visitantes do cassino, assim como dos demais empreendimentos que funcionava no complexo.
"Boa tarde." Marley passou pelo gerente do setor.
"Está atrasada!"
"Eu mandei mensagem... e fiz hora extra nessa semana. Meu banco de horas está excelente."
Marley passou pelo chefe e sentou-se à mesa para o trabalho. Ao lado dela estava Arthur Abrams, mas que todos o chamavam de Artie. O colega era cadeirante e, tal como Marley, era considerado um prodígio na área. Havia também um colega mais velho, George Rasik, de origem indiana.
"Vai ao bar hoje?" Artie perguntou.
"Nope."
"Mas hoje é sexta-feira. Você sempre canta às sextas." Artie nutria um crush por Marley, e por causa dela passou a ser um cliente do bar em que Marley cantava.
"Eu tenho um trabalho extra para fazer. Você sabe que eu não estou recusando dinheiro nesses dias."
"Oh, que saco!"
"É dinheiro limpo e honesto."
"Vai precisar de ajuda?"
"A princípio é coisa simples. Se precisar de você, eu te passo uma mensagem e a gente divide o dinheiro."
Ao final do expediente, Marley pegou o papel que Grant havia lhe dado e seguiu para o serviço extra. Não pensava em nada de especial, a não ser no quanto iria cobrar do melhor amigo. Entrou no campus da universidade estadual e procurou pelo dormitório Stevenson, conhecido por abrigar alunos bolsistas e de situação financeira mais modesta. Era um prédio mais simples, com banheiros coletivos, bem diferente do dormitório Gilmore, o prédio imediatamente ao lado, com seus dormitórios que mais pareciam pequenos apartamentos destinados aos estudantes mais abastados. Marley bateu à porta indicada no endereço, e foi atendida por uma estudante rechonchuda e negra, mas com um olhar cheio de atitude.
"Santana Lopez?" Marley tinha o intuito de perguntar se aquela pessoa na sua frente era Santana Lopez, mas não foi entendida dessa forma. A jovem mulher revirou os olhos e abriu mais a porta, revelando uma segunda jovem mulher, dessa vez latina, magra, claramente mestiça.
"San... espero que não seja mais uma conquista sua." Mercedes esbravejou.
"Essa eu não conheço." Santana se levantou. "Mas eu não me incomodaria em te levar para tomar uma cerveja..." Ela franziu a testa como uma deixa para que uma constrangida Marley se apresentasse.
"Lopez... oi... meu nome é Marley Rose, e eu vim aqui a pedido de Grant Fish."
"Oh... você é a TI?"
"Sim."
"Bom, Grant disse que eu deveria ter um firewall decente no meu sistema, mas eu não imaginei que ele fosse realmente providenciar isso, e com alguém que definitivamente não se parece com uma nerd."
"Eu sou uma nerd."
"Não é isso, é que... eu pensei que Marley fosse um cara."
"Eu estudo isso às vezes."
"Entre um instante. Vou pegar o meu computador e o meu celular para você fazer o seu lance."
Marley se sentiu desconfortável dentro daquele dormitório entre uma garota que estava sentada em uma as camas e definitivamente a julgando, e com a outra que estava a paquerando.
"De onde você conhece Grant?" Marley sentiu que um pouco de conversa ligeira a ajudaria a lidar com o incômodo.
"Somos amigos." Santana respondeu já com os aparelhos em mãos.
"Mesmo?" Marley estranhou. "Desculpa, mas eu conheço os amigos de Grant... e você... é que... você parece... nova e... obviamente bonita... do tipo que Grant..."
"Grant e eu não estamos fodendo, se isso é o quer saber." Santana interrompeu a garota. "Grant é lindo e rico, o que definitivamente é uma combinação atraente, mas você faz mais o meu tipo."
"Oh, você... sai com garotas... não que isso seja da minha conta."
"Olha, Grant e eu nos conhecemos e ficamos amigos, okay? Não tem nada demais nisso."
"A vida dele não é da minha conta. Desculpe. Foi só curiosidade." Marley pegou os aparelhos eletrônicos. "Eu vou trabalhar no sistema e te devolvo amanhã pela manhã. Pode ser?"
"Pode ser na hora do almoço? Aqui mesmo no dormitório? Tenho aulas."
"Combinado. Eu te passo uma mensagem."
"Meu celular vai estar contigo."
"Oh, é claro. Bom, na hora do almoço eu passo aqui no seu dormitório para te devolver o equipamento devidamente protegido."
Marley acenou para as duas jovens mulheres e foi embora sentindo o rosto queimar em constrangimento. Ela era uma nerd, mas nem por isso costumava ficar inoperante na frente de desconhecidos. Santana ficou à porta e observou a TI andar pelo corredor até os elevadores. Marley era bonita. Santana parecia que tinha um fraco por garotas mais altas e com olhos azuis. Brittany que o diga.
"Nem pense nisso, Lopez." Mercedes disse em tom de advertência, fazendo Santana revirar os olhos e fechar a porta do dormitório.
"Eu não fiz nada, Wheezy."
"Essa sua fase womanizer está ficando ridícula. Saindo do controle, se quer saber."
"Eu não fiz nada!" Santana disse mais alto, já irritada com a censura a amiga.
"Ao menos eu sei que você vai ficar quieta por hoje."
"Eu estou exausta e ainda tenho que estudar."
"Exatamente, você está sem tempo para garotas. Desde que Brittany te deixou, que você não se firma com ninguém. Isso não é saudável."
"Eu me firmei com Jenny... por um tempo."
"Jenny, a pessoa mais tóxica essa cidade? Não é saudável ficar perto dela nem em uma fila para o café."
"Eu sei que você tem um ponto." Santana se jogou na própria cama. "É que a minha vida anda confusa."
"Eu sei, San. Eu te conheço há tempo suficiente para saber que essa é uma fase estranha."
"Você acha que eu estou fazendo o certo?"
"Não sou eu que deve te responder sobre isso, San."
Mercedes encarou a amiga, e sentou-se na própria cama. Eram tempos confusos. Santana tentou pegar um livro para ler, mas não tinha concentração. Era melhor simplesmente virar de lado e dormir.
Do lado de fora do dormitório Stevenson, rondando o parque em direção ao bairro universitário, o vigilante mascarado fazia a sua vigília. Sem uma agenda específica a atender naquele momento, o vigilante brincava de Batman naquela noite, salvando vítimas de pequenos crimes.
