"Beth!" Quinn chamou a filha, que ainda se arrumava para a escola. "Estamos ficando atrasadas, docinho. Quer ajuda?"

"Não... quer dizer."

Quinn não esperou por uma resposta completa e entrou no quarto da pequena. Encontrou Beth vestindo uma roupa diferente do que ela e Quinn escolheram não fazia nem dez minutos. Nada de anormal vindo de uma criança ativa e sonhadora.

"Não quer mais o vestido?" Quinn reparou que Beth optou por uma bermuda que ela usava muito para brincar no parque.

"Acho que não." Beth ficou pensativa. "Vestidos são ruins para brincar."

Quinn franziu a testa e balançou a cabeça com o raciocínio da criança. Beth usava shorts debaixo dos vestidos justamente para que ela ficar à vontade para brincar. Ao visto, a criança optou mesmo pela praticidade e leveza. Com a camiseta e a bermuda no corpo, Quinn levou Beth à escola com a garotinha saltitando pelo caminho. Era ótimo quando a criança estava em bons espíritos, porque não existia sinal melhor de que não havia problemas sérios acontecendo.

Após a passagem na escola, Quinn literalmente correu para a faculdade comunitária. Ela estava atrasada para abrir a cafeteria, e sabia muito bem que pontualidade não era o forte de Joe. Ele sempre foi tranquilo demais, e ela percebeu tal característica desde o dia em que os dois se conheceram em um evento religioso cristão dois anos antes. Quinn era uma recém-chegada na cidade, ela tinha uma criança de três anos no colo, e um emprego de faxineira em uma firma de advocacia chamada Fish and May. Entre salário baixo e as pequenas humilhações que sofria devido ao assédio, ela foi ao evento da igreja em busca de força espiritual para lidar com tantos problemas. Joe era o filho do pastor e cantava na banda gospel. A banda de Joe era muito boa, e ele tinha uma voz muito bonita. A conexão entre os dois aconteceu de imediato, mas o lado romântico nunca deixou de ser platônico e de um lado só.

Quando Quinn teve a ideia de montar uma cafeteria depois de ver uma oportunidade de aluguel de um espaço na faculdade comunitária, ela recorreu a Joe, que não fazia nada na vida além de cantar na banda gospel. O pastor Graham Hart viu em Quinn uma oportunidade de fazer o filho ter um trabalho em que pudesse colocar os pés no chão e desenvolver alguma habilidade diferente. Por isso o pastor foi o maior financiador do projeto. Joe trabalhava bem preparando cafés e sorrindo para a clientela, mas ele nunca se estressou por causa dos problemas que o negócio ocasionava: isso era trabalho para Quinn.

Naquela manhã, lá estava Quinn abrindo a cafeteria, com a camiseta do uniforme, vestindo o avental e ligando as máquinas. Foi quando viu o bilhete:

"O filtro gelado quebrou. Não temos como servir ice tea." – Joe.

Quinn suspirou. Joe deixava bilhetes, e nunca mandava mensagens no celular, sabe-se lá porque razão. Ice tea de pêssego e frapê eram pedidos populares naquela época do ano. A quebra do filtro significava não apenas um custo extra, mas perda vendas.

"Bom dia, Quinn."

Quinn suspirou e sorriu para a cliente mais fiel. Ao menos Rachel Berry era constante no pedido.

"Bom dia, Berry. O de sempre?"

"Kurt diz que eu tenho ideias fixas. Acho que dessa vez vou querer uma mocca."

"Mocca então. Mas você poderia aguardar cinco minutos enquanto eu ligo a máquina e me organizo?"

"Claro. Sem problemas." Rachel se debruçou no balcão. "Você deveria contratar alguém para te ajudar. Joe está sempre atrasado."

"Ele não demora a chegar. Isso é administrável." Quinn procurou não transparecer o próprio incômodo. "A não ser que esteja interessada em trabalhar."

"Eu já trabalho servindo mesas."

"Pensei que cantasse em um restaurante."

"Eu trabalho no Piano Bar. Só que quando eu não estou cantando, eu sirvo mesas. Você saberia se tivesse aceitado o meu convite."

"Desculpe. Eu tenho uma garotinha para criar." Quinn terminou de se organizar e foi ao caixa receber o pedido de Rachel para a mocca.

"Eu vou cantar neste domingo. Vou fazer um setlist de meia hora. Você é minha convidada."

"Quem sabe um dia, Berry." Quinn preparou o pedido com agilidade que adquiriu com a rotina, e logo o entregou para a cliente fiel. "Boa sorte com o seu setlist."

Quinn acenou para Rachel, e olhou para o próximo que estava se aproximando.

"O que vai querer hoje?"

"Ice tea, por favor." Uma garota pediu.

"Estamos sem gelo."

"Oh..." A garota parecia que iria desistir e ir embora.

"Mas a água é geladinha. Nem vai fazer tanta falta." Quinn odiava perder clientes, pois era necessário servir uma quantidade considerável de cafés e de bebidas para que o dia fosse lucrativo. "Eu garanto que vai ficar bom do mesmo jeito."

"Pode ser então."

Quinn fez o registro, foi até a máquina e fez o chá. Ela pegou o copo e o segurou por um instante, ainda de costas para a cliente. Então voltou-se para estudante.

"Nossa, está mesmo gelado!" A garota comentou assim que experimentou.

"Está bom?" Quinn franziu a testa.

"Sim, está. Obrigada."

Quinn sorriu e atendou o próximo, como se todas as opções geladas estivessem disponíveis. Foi assim até Joe aparecer para o trabalho. De repente, as opções de frapê e ice tea já não estavam mais disponíveis.

"Viu o meu bilhete?" Joe perguntou.

"Sim, estava esperando por você para ligar para a manutenção."

"Bom... mãos à obra."

...

O serviço solicitado por Grant para proteger o celular e o computador pessoal de Santana Lopez não foi grande coisa para Marley. Ela não levou mais do que um par de horas para instalar um programa que ela mesma tinha desenvolvido em parceria com George para a proteção dos sistemas do hotel. Não que o hotel fosse um alvo importante. O cassino era outra história, e era o serviço do complexo que mais demandava trabalho. Marley era profissional demais para bisbilhotar os arquivos da amiga de Grant, mas ela não pode deixar de reparar a foto usada como papel de parede no celular: Santana abraçada a uma senhora. Pela semelhança, devia ser a mãe dela. Isso também queria dizer que, apesar de aparentemente gostar de paquerar garotas, Santana Lopez tinha laços familiares. Marley não podia dizer o mesmo naquele momento. Ela nunca conheceu o pai, e a mãe morreu no ano anterior por complicações da diabetes. Ela tinha um tio e dois primos que moravam em outro estado, portanto, o contato com eles era quase inexistente. Havia Grant, mas ele era família de escolha, não de sangue. Ver aquela foto a fez sentir saudades da mãe, que era uma pessoa simples e com muitos problemas de saúde, porém muito amorosa e honesta.

"Ai meu deus, o que é essa luz?" Unique saiu do quarto dela.

"Isso se chama luz do dia." Marley disse ligeiramente impressionada com a presença de Unique àquela hora. Normalmente, Unique não levantava antes das 11 horas da manhã. "Você está bem?" Marley apontou para o relógio de parede. "Ainda são 8 horas da manhã."

"Eu nem sei se estou no meu próprio corpo, querida."

"Posso saber o que aconteceu?"

"Deixa eu ver... nós fizemos o show ontem à noite. Em vez de sair com as garotas e caçar um bofe, eu decidi ir direto para casa. Eu cheguei, você estava no seu quarto e eu fui para o meu. Será que isso é um universo paralelo?"

"Dificilmente, a não ser que eu esteja falando com uma cópia sua de outra realidade."

"Não, babe, a minha cópia de outra realidade seria basicamente eu mesma. Eu sou a constante em meio ao caos." Unique disparou a rir da própria falta de senso.

Marley pegou o café e serviu uma caneca para a amiga, além de oferecer um pedaço de bolo inglês.

"Isso se chama café da manhã, caso tenha esquecido." Marley sorriu.

"Que ultraje!" Unique aceitou a xícara. "Se eu continuar nesse ritmo, você vai me convidar para ir à academia."

"Você quer ir comigo?"

"Não vai rolar."

Marley riu da amiga. Unique era esse talento incrível em cima do palco, e ela tinha uma criatividade artística farta. Infelizmente, isso não era bem empregado devido à preguiça incorrigível que ela tinha para qualquer trabalho executado fora de um palco. Marley acreditava que a única exceção de Unique para trabalhos fora do palco era ser babá ocasional de Beth, a garotinha que morava na porta ao lado. Unique se divertia com a menina.

"O que vai fazer hoje?" Unique perguntou enquanto tomava um pouco de café.

"O usual... eu vou passar na Universidade para entregar um serviço."

"Para a universidade?"

"Não. Para uma garota chamada Santana Lopez. Grant pediu."

"Mesmo? Qual é a dela?"

"Não tenho ideia. Acho que deve ser testemunha em um dos casos que ele pegou. Porque eu não vejo Grant ser amigo de alguém como aquela garota."

"Feia? Pobre? O quê?"

"Ela é bonita. Talvez seja pobre por causa do dormitório em que ela mora. Aparentemente é lésbica, porque ela me paquerou na cara dura."

"Oh... interessante."

"Eu não estou interessada."

"Como não?" Unique levou a mão à cintura, em uma postura de indignação. "Você tem uma mente bem aberta sobre sua sexualidade... e depois você precisa se desintoxicar de Jake."

"Eu estou seguindo adiante. Eu só não quero me envolver com ninguém agora."

"Que seja!" Unique revirou os olhos e tomou o café.

Ela não acreditava que Marley estava realmente seguindo adiante depois do rompimento traumático com Jake. Foram dois anos de traições, gravidez interrompida e muito, mas muito drama. Jake era tóxico e Marley era absolutamente apaixonada por ele. Até que depois de muitos alertas, especialmente por parte de Unique, Marley decidiu dar um basta na relação. Marley e Jake foram apenas um exemplo que fazia Unique pensar que o amor era uma perda de tempo, e que o melhor que ela fazia era viver o agora intensamente.

...

"Wheezy!" Santana sacudiu a amiga.

"Satan, por favor, volta pro inferno."

"Tudo bem. Não sou eu que vai ter outro ataque."

Mercedes gritou debaixo das cobertas antes de jogá-las para o lado. Santana era implacável nos exercícios matinais. Tem sido assim há pelo menos seis meses. Santana e Rachel eram amigas de longa data, que combinaram ir para a mesma universidade e trabalharam para tal. Mas Santana nunca foi de se intrometer nas escolhas pessoais da amiga, especialmente no que dizia respeito ao peso acima do recomendado. Até que Mercedes colapsou em meio ao campus com arritmia cardíaca, causada por uma soma de comorbidades provocadas pela obesidade. Mercedes era grata pela dedicação da amiga em ajuda-la a vencer a preguiça para todo tipo de exercícios físicos, a não ser a dança e o teatro. Mas dançar ocasionalmente e se movimentar pelo palco não bastava: por isso Santana a fazia se exercitar pelo menos por meia hora todas as manhãs, a não ser em dias em que o tempo não permitisse. Ela corria no parque, e Mercedes a acompanhava de bicicleta.

Meia hora depois de acordar de maneira nada gentil, Mercedes e Santana estavam em um local cosmopolita da cidade. O parque era um centro de lazer e cultural que por um lado abrigava ricos, e por outros era acesso para um bando de jovens em idade universitária que tinham várias origens sociais, e que vinham de diversos lugares do país. Pelas manhãs, no entanto, ele era ocupado por quem queria se manter em forma. Mercedes pedalava por meia hora, que era o tempo mínimo no pacto gerado pelas duas amigas.

Sexta-feira era um dia relativamente curto para Santana. Além da rotina dos exercícios, ela tinha uma aula e, depois, um dia inteiro de folga. Havia naquela sexta-feira, ao menos um compromisso adicional estabelecido. Santana cumpriu a agenda e, na hora do almoço, em vez de ir ao refeitório foi em direção ao dormitório. Lá, nem tanto para a própria surpresa, encontrou a T.I que havia lhe prometido devolver o celular e o computador pessoal.

"Marley, certo?" Ela encontrou a moça sentada ao banco que fica ao lado da portaria de entrada.

"Oi... Lopez." Marley levantou-se quase derrubando os equipamentos. "Desculpe... como vai?" Ela estendeu a mão para cumprimentar a outra.

"Por favor, me chame de Santana."

"Claro. Bem, aqui está o seu celular e o seu computador. A proteção que eu instalei não vai mudar muita coisa no seu manuseio. Você continua desbloqueando tudo com a sua senha. A diferença é que seus aparelhos estão mais fortes contra ações de hacker, e que eu instalei um software de criptografia que pode ser bem útil."

"Criptografia?" Santana franziu a testa.

"Eu não sei porque Grant pensa que o seu equipamento deva ser protegido. O que eu sei por experiência é que pessoas com certas necessidades e posições precisam de proteção de documentos. Agora se essa necessidade é real ou não... isso é contigo. Posso te ensinar como usar, é bem simples, na verdade, não leva mais de 10 minutos."

"Você pode me ensinar no almoço." Ao ver que a expressão no rosto da outra garota não foi muito amistosa, Santana decidiu recuar. "Olha, tem um restaurante decente aqui próximo ao campus. Não é tão barato quanto o refeitório, mas a comida é bem saborosa. Eu não estou fazendo isso para querer entrar em suas calças, okay? Só estou sugerindo um ambiente agradável e público para você mostrar o tal o programa. Além disso, eu estou morrendo de fome."

Marley não estava tão certa quanto as intenções de Santana. Houve uma má impressão no primeiro contato, mas a postura mais relaxada e obviamente cansada da estudante fez Marley entender que paquerar não estava na lista de intenções de Santana, pelo menos até aquele momento. Além disso, ela também estava com fome. Marley acenou positivo e acompanhou Santana pelo campus. O caminho percorrido foi mais longo do que Marley pensou, porque foi preciso praticamente atravessar o campus até a avenida que dava acesso à entrada da Universidade. O restaurante em questão ficava na esquina ao fim do quarteirão. Era simples, relativamente movimentado e agradável.

Marley pediu uma salada com um filé de frango grelhado, ao passo que Santana pediu um montante admirável de comida. Isso deixou a T.I intrigada: como uma pessoa tão magra podia lidar com tanta comida? Ficou imaginando se Santana tivesse distúrbios alimentares e psicológicos, como ela própria chegou a desenvolver na fase em que namorou Jake e foi brutalmente assediada por Kitty. Foi uma época em que Unique precisou agir inclusive como psicóloga a amiga. De qualquer maneira, Santana era apenas uma cliente e Marley nada tinha a ver com os problemas dela.

"Onde você anda aprendendo a fazer esse negócio de T.I?" Santana perguntou enquanto comia batatas fritas sem a menor preocupação com a balança.

"Eu não estudo em lugar algum. Quer dizer, não formalmente." Marley respondeu.

"Sério?" Santana franziu a testa. "Você não parece ser mais velha do que eu."

"Não sou, para dizer a verdade. Eu sou pouco mais de um ano mais nova do que você."

"Você, por um acaso, é uma daquelas prodígios que foi para a faculdade aos 12 anos?"

"Foi aos 15."

A resposta verdadeiramente surpreendeu Santana. Ela encarou Marley para ver se havia algum traço de mentira, contudo, a garota estava sendo absolutamente sincera. Isso a deixou impressionada.

"Onde você se formou?" Santana perguntou.

"Eu estudei na Faculdade Tecnológica, mas não me formei."

"Faltou dinheiro?"

"Eu perdi a minha bolsa de estudos. Grant se ofereceu para pagar a minha faculdade, mas eu recusei. Eu achei melhor abandonar o curso, mas continuo estudando e me atualizando informalmente."

"Como uma autodidata?"

"Exatamente." Marley acenou sentindo certo orgulho de si mesma.

"De onde você conheceu Grant?"

"Eu cresci na mansão dos Fishes. Minha mãe era cozinheira da família, e eu fui criada correndo naquele jardim. Não é que os Fishes sejam pessoas desprendidas e generosas, embora eles sempre me trataram de forma decente. Grant era diferente. Ele me tratava como se eu fosse a irmã menor dele."

"Legal."

"E você? De onde você conhece Grant?"

"Daqui mesmo. Aconteceu essa festa em uma sororidade, eu era caloura, e ele estava com uma namorada."

"Miley? Loira, alta, olhos verdes?"

"Essa mesma." Santana sorriu.

"Eu a chamava de Barbie Super Bitch."

"Essa Miley foi mesquinha com a minha melhor amiga. Não leve a mal, Mercedes sabe se defender muito bem, mas ela tem alguns pontos fracos. Eu achei que deveria defender a honra da minha amiga e decidi me vingar. Grant me flagrou fazendo o trote, mas em vez de me denunciar, ele virou meu amigo."

"Então você não é nenhuma testemunha de um caso?"

"Não, eu não sou."

"Acho que eu me equivoquei." Marley pareceu envergonhada.

"Por que?"

"Você não é o tipo de pessoa que Grant tem no círculo de amizades dele."

"Pobre?"

"Isso também. Grant às vezes se envolve com garotas e origem mais simples para irritar os pais dele. Esse não seria o seu caso porque você curte outras garotas. Mas quando falamos de amizades próximas, Grant não se afasta muito do círculo social de origem. Por isso que você não se encaixa no perfil."

"Entendo." Santana acenou e a conversa foi brevemente interrompida com o barulho de notificações de mensagens.

"Deve ser Jenny." Marley disse casualmente e, ao ver o olhar de Santana, procurou se retificar. "Não li nada privado seu, nenhuma mensagem. Juro! É que essa Jenny mandou muitas mensagens para você, e ela é um pouco insistente."

Santana encarou Marley e silenciosamente checou as mensagens. Passou os olhos por elas por um minuto ou dois antes de revirá-los. Olhou para Marley pensando se deveria ou não comentar a respeito. Por fim, decidiu que Marley era uma pessoa da qual ela não sabia quase nada a respeito, e guardou a informação para si. Nesse meio tempo, chegou mais uma notificação vinda o grupo do teatro amador. Rachel Berry havia enviado o convite para o show que ela recorrentemente fazia em um piano bar. Santana nunca foi a tal lugar. Ela sabia dos ensaios do teatro que Rachel Berry era uma cantora tão boa quanto Mercedes Jones, porém com um estilo diferente. A admiração de Santana por Rachel, no entanto, se restringia ao campo artístico, uma vez que considerava a colega insuportável.

Marley ainda estava ali esperando por um sinal de Santana. Não sabia se concentrava em comer a salada ou se começava a breve aula do software. A estudante suspirou, sacudiu levemente a cabeça e sorriu.

"Bom, Marley. Você poderia me explicar esse tal programa que você instalou?"

...

Rachel não queria viver o clichê da atriz que trabalhava servindo mesas enquanto a carreira não decolava, mas sim, ela tinha um aluguel a pagar. O piano bar em que trabalhava tinha atrações culturais todas as semanas, de sexta a domingo. Na maior parte das vezes cantores faziam apresentações no piano bar, mas havia também noites com comediantes. O evento mais disputado na história aquele restaurante foi quando a grande Shelby Corcoran fez um setlist de uma hora e 15 minutos para três dias de apresentação. As reservas foram fechadas 30 dias antes. Às vezes, o piano bar não conseguia fechar nenhuma atração para o domingo. Quando isso acontecia, Rachel preenchia o espaço fazendo um setlist de meia hora. Nessas ocasiões, ela fazia questão de enviar lembretes a todas as pessoas que conhecia, sem a menor distinção.

Ao chegar ao trabalho, foi diretamente para o pequeno vestiário. Rachel não era obrigada a servir mesas no dia em que cantava, a não ser que ela estivesse disposta a fazer um pouco mais de dinheiro com as gorjetas. O uniforme condizia com o nível do lugar: camisa branca embaixo de um colete preto, e calças pretas. O uniforme também contava com um avental pequeno, com um bolso grande para ser colocados os materiais usuais: caderneta para os pedidos, caneta e outras coisas pertinentes. Rachel preferia pensar que o uniforme fosse um figurino de uma peça que ela desempenhava quase todas as noites. Quando ela cantava, apenas retirava o avental e fazia o setlist combinado previamente com Brad, o pianista do restaurante. O sucesso ou não da intervenção artística, por assim dizer, dependia muito do público do dia.

O restaurante não estava com lotação máxima naquele domingo. O público também era um dos difíceis de conquistar. Rachel foi chamada ao piano depois de quase duas horas servindo mesas. Ela tirou o avental e o entregou nas mãos de Zach, o gerente do restaurante. Ergueu a cabeça, passou por de trás do piano, ficando próxima a Brad. Esperou Gina a apresenta-la aos clientes ali presentes e recebeu aplausos tímidos. Rachel e Brad combinaram um setlist de standards para aquela noite. Combinaram apresentar sete músicas, entre elas My Man e Body and Soul. Rachel gostava de um repertório mais pop, porém era no jazz que ela podia mostrar melhor as nuances das técnicas vocais que ela desenvolvia desde criança.

Não havia ninguém conhecido no restaurante naquele dia. Quer dizer, nenhum amigo dela foi prestigiar, nem mesmo o namorado. Finn odiava perder a partida de futebol de domingo à noite; Kurt ia dormir com o namorado; os demais sempre arrumavam alguma coisa a fazer ou alguma desculpa. Rachel já estava habituada com uma plateia sem rostos conhecidos.

"Vão todos pro inferno." Rachel disse entre os dentes, camuflada pelo sorriso falso ao receber parcos aplausos depois do fim da canção. Aquele domingo não estava como ela havia imaginado. Mesmo com o vocal perfeito, ela não arrebatou a atenção de que só queria comer um bife terrivelmente caro, ou beber o vinho que a excelente adega do piano bar poderia oferecer.

Rachel voltou a colocar o avental e a servir as mesas. Se a noite não foi um sucesso de público ou de aplausos, ao menos as gorjetas costumavam ser um pouco melhores depois que ela cantava.

"Eu não vejo a hora de deixar esse lugar." Rachel resmungou no pequeno vestiário, já trocando a roupa para ir embora.

"Sair daqui é simples. É só pedir as contas." Jane revirou os olhos. Ela detestava a colega de trabalho e não fazia a menor questão de esconder.

"Esse dia chegará em breve para mim, Jane. Talvez nem tanto para você."

O ouvido perfeito de Rachel captou quando Jane sussurrou "bitch" nas costas dela. Bom, Rachel tinha lá seus problemas de insegurança, mas a vida lhe ensinou como se defender.

Defesa foi uma palavra que bem marcou os anos de adolescência dela. Rachel foi o alvo favorito do grupo de líderes de torcida da escola, porque ela namorava o quarterback. E também porque a personalidade egocêntrica dela contribuiu de forma substanciosa, mas Rachel não colocaria isso na equação. Ela preferia pensar que todos tinham inveja do talento imenso dela. O ponto é que anos de bullying a fez criar casca grossa. Mesmo com novas figuras fazendo tal papel em sua vida, como Jane, Santana e até mesmo Mercedes, Rachel se mantinha com a cabeça erguida.

Saiu do restaurante acompanhada de Gina e Brad. Os três sempre pegavam o metrô juntos, e isso era uma segurança e um conforto. Gina e Brad desciam primeiro, uma vez que eles eram praticamente vizinhos. Rachel deixava o metrô duas estações depois. Geralmente não havia problemas dentro do vagão, mas o mesmo não se poderia dizer nas ruas. Rachel olhava para os lados quando descia na estação para identificar possíveis ameaças. Ela colocava a mochila na frente do corpo, abraçava o objeto e andava depressa. O apartamento não ficava longe da estação, tão pouco ela morava em um bairro considerado perigoso. Ainda assim, aquela era uma cidade grande, e todo cuidado era pouco no início da madrugada.

Rachel olhou para a rua esvaziada assim que subiu as escadas, e não sentiu perigo. Ela atravessou a avenida e caminhou depressa para o prédio em que morava. De repente, ela sentiu uma presença estranha, e quando menos percebeu, ela estava no chão.