Um frio aterrorizante e uma escuridão absoluta. O tintilar de metal se chocando. Uma figura trajando uma armadura negra. E a sensação de ser queimado vivo. Foram essas coisas que dominaram meus pesadelos naquela primeira noite juntos.
Eram umas quatro da madrugada quando acordei, suando e ofegante. Me sentei na cama e observei meu reflexo no espelho a frente. O quarto estava na penumbra, iluminado apenas pela vaga luz que chegava da rua através da janela. No espelho estava o meu reflexo. Tal qual sempre esteve. Só que algo estava diferente. Fora do lugar. Novo.
A princípio, tentei ignorar aquele sentimento de estranheza. Sabia que não ia voltar a dormir, então optei por um banho frio para acordar. Minha mente estava turva, mas a forma como meus músculos doloridos se retraíram sob a água gelada era prova o bastante de que a noite passada foi real e não só outro pesadelo.
Com as ruas ainda escuras do lado de fora eu me sentei no sofá e encarei o teto.
"Você tá aí não tá?"
"Sim."
Era estranho. Sabe quando você imagina um objeto e enxerga ele? Você enxerga com a mente, não com os olhos. Era como isso, mas com uma voz.
"O que é você?" Minha pergunta foi recebida com silêncio, nenhuma palavra foi dita, e nem era necessário. Eu podia sentir. "Você… não sabe?"
"Sozinho, perdido, eu era um. Agora sou novo, sou nós."
"O que você quer de mim?" Berrei irritado levando as mãos à cabeça.
"Sobreviver."
"Você precisa de um hospedeiro… é uma parasita."
"Parasita não!" A voz protestou irritada e ruminou por um momento no qual pude senti-la procurando uma palavra em minhas memórias. "Mutualismo… simbionte."
Ponderei por algum tempo antes de responder. Ele não estava mentindo. O que experimentei naquela noite – a força aumentada, os sentidos aguçados, a suavidade com a qual a lâmina dançava através da carne – nós éramos capazes de muitas coisas juntos.
"Você matou aquelas pessoas." Falei em voz alta, não sei se pra ele ou pra mim mesmo.
"Nós matamos eles." A voz retrucou na minha cabeça e não tive coragem de responder. Ainda podia sentir meu sangue fervendo. Era um sentimento antigo, que eu já conhecia bem, era nostálgico e… acolhedor.
…
Algo que a maioria dos meus amigos sabe é que eu não sou novaiorquino. Na verdade eu nasci em São Francisco e mudei pra grande maçã quando comecei o ensino médio. Só que nunca contei pra eles o porquê de eu ter me mudado sozinho.
Meu pai era um ítalo-americano, daí veio meu sobrenome, Bacchi, mas minha mãe era latina e tendo puxado ela eu não me parecia em nada com as outras crianças de North Beach. Se você acha que crianças brancas são racistas, imagina as que têm sangue de europeu. Na rua e na escola minha vida era um inferno. Não se passava uma única semana sem que eu tivesse que brigar com quatro ou cinco crianças maiores do que eu. É óbvio que eu tava sempre machucado, mas nunca revidava porque sabia que isso seria ruim pra imagem da nossa família, mesmo que não fosse pra família daqueles escrotos.
Tudo piorou quando meu pai morreu e nossa situação financeira apertou. Ele sempre tentava me proteger e integrar nossa família com a comunidade, mas sem ele do nosso falado toda a falsa simpatia das pessoas acabou. Os adultos esnobavam minha mãe e as crianças me atacavam fisicamente.
Foi quando eu explodi.
Um dos moleques do bairro me encurralou sozinho em um beco, bem perto de casa. Em seguida, tudo ficou vermelho, tal qual noite passada. A raiva reprimida de anos tomou conta. Meu corpo tremia e ardia em chamas. Quando tudo acabou, minhas mãos estavam completamente vermelhas, assim como o rosto do garoto.
Nós mudamos menos de uma semana depois disso.
Minha mãe me mandou para um internato especial aqui em Nova York. Os anos passaram e consegui ficar longe de problemas, e entrei pra Universidade Empire State. Só que aquele dia, aquela sensação de adrenalina e o calor da batalha nunca me deixou.
…
De pé, em frente ao espelho do quarto, observei enquanto a massa escura do simbionte saía pelos meus poros e cobria meu corpo naquele uniforme escuro.
"Tinha outra pessoa lá noite passada."
"Quê?" Ele respondeu confuso.
"Uma mulher. Ela tava sendo atacada e você a salvou, não foi?" Perguntei sério.
"O cara só parecia ter gosto melhor."
"Nojento." Comentei com um riso fraco. "Mas sabe…" eu ponderei sobre a nossa imagem no espelho. "Juntos, acho que podemos encontrar um jeito… saudável de dar vazão aos nossos impulsos violentos."
