Segunda-feira. Dia mundial de voltar a rotina. Mas como você volta depois que uma espada alienígena caiu do céu e se misturou ao seu DNA e agora você tem uma voz na sua cabeça que quer comer pessoas (no sentido literal)?

Bem, você só volta porque não é como se você tivesse opção.

Assim eu fui para a Universidade Empire State, localizada no coração de Manhattan e umas das universidades mais prestigiadas do país. Quem diria que eu chegaria até aqui tendo chegado em Nova York como um delinquente que não conhecia ninguém.

A primeira aula do dia era de história medieval europeia com o professor Garrett. Não é meu tópico favorito, mas como assistente do professor ficaria bem feio faltar sem motivo. Por sorte não tive contratempos no caminho. Morar fora do campus não é muito conveniente, mas eu realmente prefiro ter meu próprio espaço longe dos outros.

O carinha na minha cabeça também tava quieto hoje. Preciso arrumar um apelido melhor pra ele, ou ela, não tenho certeza. Simbiontes não parecem ter um conceito de gênero. Ele meio que soa como um cara pra mim? Mas pode ser só porque eu sou um.

Chegando na sala de aula, o professor estava atrasado, e mesmo assim tinha alguém me esperando e guardando meu lugar. Uma mulher de pele clara e cabelos azuis na altura dos ombros. Uma jaqueta de motoqueiro preta emoldurava sua figura esbelta de ginasta (ela praticou durante uns 10 anos). O top curto deixava pouco pra imaginação e os coturnos pretos davam peso a sua figura. Ao seu lado na mesa estava um capacete de moto.

"Iae, Benio." Ela me cumprimentou pelo apelido com sua voz aveludada.

"Iae, Feh." Respondi ao me sentar do lado dela.

Essa é Felícia Hardy. Assim como eu, ela estuda arqueologia e já trabalhamos juntos em alguns projetos. Na verdade, nos conhecemos em uma situação curiosa. O Sanctum Sanctorum estava precisando de pessoas para analisar e catalogar alguns artefatos antigos (nenhum deles era mágico, apenas antiguidades) e nós dois acabamos sendo indicados. Não é todo dia que você recebe permissão pra conhecer o lar do mago supremo e espiar um pouco do que eles fazem por lá.

Foi uma oportunidade muito bacana, mas o trabalho foi bem puxado. Ao que parece, a última vez que alguém tinha mexido naquele acervo não-mágico foi por volta do século XVIII, então tivemos muito o que organizar. Acabou levando mais de um mês e ficamos juntos até tarde várias vezes. Nisso acabamos nos conhecendo bastante já que só tínhamos a companhia um do outro pra não endoidar.

Nos tornamos bons amigos depois disso, só que nenhum de nós pode mais chegar perto da rua Bleecker... Por quê? Então, parece que um pouco depois eles deram pela falta de um livro qualquer lá sobre truques mágicos e provavelmente ainda acham que foi um de nós, apesar de não poderem provar.

"Pelo jeito você teve um final de semana divertido né?"

Quando Felícia disse isso, eu congelei por um segundo. Do que ela tava falando? Ela sabia de alguma coisa? Como?

"Am? Como assim?" Perguntei tentando disfarçar o nervosismo.

"A sua repórter enxerida tava reclamando que você não respondia as mensagens dela desde sexta." Ela falava risonha.

"Ah, merda." Com toda essa coisa de parasita alienígena (Não sou um parasita!) e bancar o vigilante eu esqueci completamente de checar o celular.

Às pressas cacei por ele na mochila só pra achar ele completamente descarregado. Por sorte a Feh tinha um carregador pra me emprestar.

"Dar gelo pra atiçar a pessoa até é uma estratégia interessante de conquista, só que não combina com você, Benio." O tom de Felícia era sempre meio debochado e sarcástico.

"Não é nada disso, tá bom? Só fiquei ocupado com um projeto... E não tem nada de conquista."

"Sabe que não precisa mentir pra mim, docinho." Ela sussurrou chegando mais perto de mim.

Não se deixem enganar pelo jeito dela. Felícia é galante por natureza, uma sedutora irreparável, mas não tem nada entre a gente... Não mais pelo menos, mas isso é história pra outro dia.

"E também, vocês dois super combinam. Vai com tudo, tigrão." Ela fez um gesto de apoio com a mão.

"Afinal de quem ela tá falando?" Ouvi o simbionte perguntar na minha cabeça.

"Você precisa mesmo perguntar?" Respondi em pensamento. Por sorte não preciso falar em voz alta pra ele me ouvir, então não fico parecendo maluco pra ninguém.

"Tô tentando ser educado e não bisbilhotar suas memórias pessoais."

Essa resposta realmente me pegou desprevenida.

"Nossa, obrigado. Bem, ela tá falando da…"

"Bom dia, classe." Anunciou o professor Garrett chegando para iniciar a aula.

"Então, senhor Bacchi. Sabe alguma coisa sobre isso?" Perguntava o professor Garrett. Ele é um típico homem europeu de meia idade. Cabelo castanho bem arrumado, bigode farto, roupa social e suéter. E o pior de tudo? Ele é inglês.

A aula já havia acabado e estávamos só nós dois na sala. Sobre sua mesa estava a edição do dia do Clarim Diário cuja manchete dizia "Suposto meteoro cai e destrói parte da zona histórica de Nova York".

"Eu não controlo meteoros se é o que o senhor tá pensando." Retruquei irônico.

"O que?" Ele fez uma expressão genuinamente confusa. "Claro que não, quero saber se viu alguma coisa. Você estava lá nessa noite. Parece que quando as autoridades chegaram só encontraram a cratera." Ele tentava disfarçar o tom acusatório em sua voz sem sucesso. "Não acho que você faça o tipo gatuno, mas sei do incidente com o Sanctum Sanctorum no ano passado…".

"É sério? Vai começar a fazer acusações agora?"

"Não precisa ficar tão na defensiva, garoto."

Apesar de ser uma espécie de mentor pra mim, existe bastante atrito entre mim e o professor Garrett. Ele não confia tanto em mim, e eu acho ele meio sem noção às vezes.

"Eu já tinha ido embora quando isso aconteceu. Não vi nada, tá legal?" Respondi contendo a raiva pela acusação.

Felizmente ele não insistiu mais no assunto e eu pude ir embora. Ainda assim fiquei pensativo. Só agora me liguei que tinha o risco de alguém ter me visto naquela noite. Até porque eu não sei o que o simbionte ficou fazendo enquanto eu tava apagado.

"Ei, agora vai me acusar também?" A voz surgiu indignada.

"Olha eu ainda não sei o quanto posso confiar em você. Naquela noite você passou umas boas horas sozinho com meu corpo sem eu saber o que tava rolando."

"Não fiz nada de errado. Quando acordei tava… confuso, os sentidos não estavam batendo. Só corri por aí sem rumo tentando entender onde eu estava."

"E terminou comendo uma pessoa."

"Eu caí no beco e o cara tava armado, o que queria que eu fizesse?"

"Agora isso não importa mais, só espero que ninguém tenha te visto."

Voltando a realidade eu peguei meu celular que já estava carregado e dentre as mensagens não lidas a mais recente dizia "Me encontre hoje a tarde no Coffee Bean :3". Acho que meu coração pulou umas batidas na dúvida se isso era um convite ou uma ameaça. De qualquer forma, não sou besta e obedeci.

O lugar fica a uma quadra da universidade, e é o principal ponto de encontro dos estudantes. É uma cafeteria como qualquer outra e quando eu entro ela já está me esperando, sentada ao lado da janela.

Madeixas castanhas, claras como o dia, caíam como cascatas através do seu perfil. Seus olhos cor de avelã eram emoldurados por óculos redondos largos que quase escondiam as sardas que cruzam seu rosto e apontam para o piercing no septo…

"Ok, seu coração tá batendo mais rápido. Quem é essa?" Ouvi perguntar na minha cabeça.

Essa é Gwen Stacy, minha única amiga de infância, e também o meu primeiro amor, mesmo que ela não saiba disso. Nos conhecemos ainda em São Francisco quando crianças. Como nós dois éramos meio excluídos (ela por ser nerd e eu porque as crianças eram racistas) nos tornamos melhores amigos. Isso até aquele incidente que fez eu me mudar. Sim, ela sabe o que aconteceu, mas nunca ficou com medo de mim igual aos outros. Ela é a única pessoa, fora minha família, que sabe o que eu passei.

Quando me mudei, perdemos contato totalmente, mas por acaso acabamos nos reencontrando aqui na universidade e desde então nos falamos quase todo dia. O curso dela é diferente do meu, então não temos muitas oportunidades de nos encontrar durante as aulas. Nosso costume é nos encontrarmos aqui no Coffee Bean ou na biblioteca. Ela estuda jornalismo e trabalha como redatora Clarim Diário. Além disso, ela também tem um blog sobre super-heróis chamado Correspondente Super, um dos mais populares de Nova York. Esse é um tema pelo qual ela é obcecada, sabe tudo sobre os heróis e vigilantes da cidade e tá sempre atrás de um furo. Não vou mentir, talvez a minha ideia de virar herói tenha um pouquinho a ver com ela.

Ao me ver ela abriu um sorriso enorme e acenou frenética. Parecia animada como alguma coisa.

"Você tem sorte de eu ter notícias quentes pra contar, se não te daria uma bronca por não ter me respondido o final de semana inteiro." Ela me abordou assim que eu me sentei à mesa junto dela.

"Me desculpa mesmo, fiquei tão focado em um projeto pessoal que esqueci completamente do celular."

"Depois vou querer saber mais sobre esse seu projetinho secreto, viu?" Ela disse com o dedo na minha cara. "Agora, tenho que te contar, acho que encontrei meu grande furo. Tava nesse fórum sobre heróis no sábado e alguém postou várias fotos de uma figura estranha que apareceu no Queens." Já dá pra saber onde isso vai dar né? Quando ela virou o celular eu vi nossas fotos lutando com aqueles marginais da outra noite. Como? Tem menos de 3 dias que isso começou ela já tá sabendo? COMO ISSO É POSSÍVEL? Eu sabia que ela era uma boa repórter mas puta que pariu. "Ainda não dá pra saber se ele é um vilão ou vigilante, mas eu apostaria no primeiro pela roupa assustadora, e porque ele parece não ligar pra matar pessoas."

"Ela é boa." Esse foi o comentário extremamente pertinente do meu parasita.

"Eu não teria tanta certeza." Respondi pra ela nervoso. "A gente sabe o tipo de gente que existe nessa cidade, uma abordagem mais… letal, não é de todo injustificável."

"É, eu sei. Devia esperar uma resposta dessas de alguém que é fã do Cavaleiro da Lua de todos os heróis." Gwen riu.

"Qualé, ele é maneiro. Tem uma capa descolada e poderes de um deus egípcio. O que mais alguém poderia querer?" Retruquei rindo também.

"Ok ok, mas se o cara novo for um herói ele precisa mesmo dar uma melhorada no uniforme".

"Nisso você tem razão." Prioridade número um na lista de tarefas do herói: mudar o uniforme. Também precisamos de um nome, mas vai ter que ficar pra depois.

"De qualquer forma, se você vir ele pelo Queens ou ouvir algum rumor por favor me conta na hora. Tô de olho em todos os lugares, preciso conseguir um bom furo que faça o Jameson me dar uma chance de verdade. Já tô cansada de ficar escrevendo colunas bestas sobre culinária e cotidiano." A expressão dela tava bem emburrada enquanto reclamava.

"Só cuidado onde você se mete, tá legal? Sabe que a cidade é perigosa e eu me preocupo com você." Evitei encarar os olhos dela enquanto falava.

"Tô sempre esperta, não se preocupa." Ela respondeu confiante e logo desviou o assunto. "Mas olha, eu não precisaria fazer isso se você me arrumasse aquela exclusiva com seu amigo celebridade." Dessa vez ela me encarou com um cara pidona e eu suspirei.

"Faço de tudo pra te ajudar mas sabe que o Harry não gosta de aparecer publicamente, e não vai mudar isso por minha causa."

"Mas vocês são melhores amigos!"

"Não é pra tanto vai, ele tem vários amigos celebridades importantes. Outro dia ele tava jantando com a Katty Perry."

"E mesmo assim ele sempre te procura, não é?"

A Gwen não tava errada. Mesmo vivendo em mundos muito diferentes, eu e o Harry nunca perdemos contato. A propósito, sim, estamos falando daquele Harry, o filho do magnata Norman Osborn. Estudamos no mesmo internato durante o ensino médio e somos grandes amigos. Desde que se formou e começou a trabalhar de perto junto com o pai, ele sumiu um pouco da vida pública, e tem andando um meio escuso. Pelo que me contou, o pai tá trabalhando em algum projeto secreto bem grande.

Daí nossa conversa seguiu pelo restante da tarde, variando para assuntos menos importantes. Ao voltar pra casa decidi que é hora de de trabalhar na minha identidade de herói, e em um novo uniforme.