Uma das áreas de atuação de um arqueólogo é a curadoria de museus, e uma característica consistente de professores universitários é jogar todo o trabalho pra cima dos seus assistentes. Junte dois mais dois e vai saber porquê estou na Sociedade Histórica de Nova York, ajudando a organizar uma exposição sobre a história dos cavaleiros medievais. O meu professor, Nathan Garrett, é quem deveria estar aqui fazendo isso, já que ele é um dos curadores do museu, mas parece que ele tem algum compromisso suuuuper importante e por isso me mandou cuidar das preparações finais. Como sempre, sobra pro estagiário.

Não é um trabalho difícil, afinal a parte divertida, definir o tema da exposição e selecionar as obras já foi feita, o que sobrou pra mim é coordenar a montagem e organização do salão, conferir se as peças estão certas, essas coisas. Só que é tanta coisa! E os funcionários do museu não são dos melhores. Um deles esbarrou numa armadura com mais de meio milênio de idade que se espatifou no chão. Eu precisei remontar ela inteira. Você tem ideia de quanto tempo isso demorou? Ter que vestir um manequim com uma armadura de metal mega pesada? Enquanto tem um demônio na sua cabeça reclamando sem parar sobre como está entediado?

O mais estranho é que um dos itens principais da exposição era uma rédea de cavalo. Pelo que o que estava escrito no texto de exposição, ela pertencerá ao lendário rei Arthur e teria sido tecida pelo próprio Merlin utilizando magia para garantir o poder de domar qualquer criatura. Isso já é mais fantasia que história. Eu sei que magia existe, mas o rei Arthur e o Merlim? Aí já é um assunto mais controverso.

Talvez esteja dando um tiro no próprio pé ao falar isso, afinal eu deveria ser a última pessoa a questionar a relevância de algum posicionamento histórico. Vocês já devem ter reparado que a minha relação com o professor Garrett não é das melhores. O velho é meio folgado e vive jogando trabalho pra mim. Então por que eu sou assistente dele né? Acontece que assim como ele é considerado controverso por estudar as lendas arturianas, eu sou considerado controverso por estudar história pré-diluviana e Atlântida. Ele acabou sendo o único professor que aceitou endossar a minha pesquisa, mesmo que nossos campos estejam tão distantes.

De volta a exposição, já eram quase dez da noite quando finalmente terminamos de arrumar tudo. Modéstia à parte o resultado ficou ótimo. Os itens estavam dispostos em ordem cronológica e cada pequena sessão estava bem organizada. O que só serviu pra me deixar mais irritado quando aquele desgraçado entrou pelo teto e caiu estraçalhando um dos mostruários.

"Finalmente alguma diversão." O simbionte comemorou.

"Não temam, vassalos. Este nobre cavaleiro da vossa majestade Pendragon não fará mal a nenhum de vós, relés inocentes. Deixeis de imediato este aposento e vossas vidas serão poupadas."

O sotaque dele era muito forte e insistia em usar o vós de forma quase cacofônica. De fato ele se vestia como um cavaleiro. Seu corpo estava recoberto por uma cota de malha, uma peitoral, luvas, botas e até uma capa pretos. Fechando o visual ele tinha um capacete em formato de balde com uma espécie de visor que destruía qualquer possibilidade de precisão histórica no uniforme. Como último acessório ele carregava uma grande lança dourada com um painel digital no meio (que também não ajudava na precisão histórica).

Como era de se esperar, todos os funcionários do museu saíram correndo desesperados. Eu corri também, só que dando a volta no salão e entrando pela outra porta como Barbárie. Nessa altura eu tava tão sem paciência que saltei com uma voadora direto nas costas dele. Graças a velocidade de simbionte ele nem me viu chegando e voou quebrando outra vitrine.

"Merda, tenho que tomar cuidado porque eu que vou ter que limpar essa bagunça." Pensei comigo mesmo.

"Quem és tu, vil criatura?" O cavaleiro perguntou exaltado.

"Don Barbárie de la Mancha." Fiz uma reverência. "E tu, serias o cavaleiro cabeça de balde?" Respondi imitando sarcasticamente o sotaque dele.

"Que ultraje! Sou o mais nobre de todos os cavaleiros da Távola Redonda. Herdeiro do grande Sir Percy da Escandinávia. Eu sou O Cavaleiro Negro." Mesmo depois de ser jogado contra a parede ele não perdia a pompa.

"Não importa se seus parentes estão sendo expostos, tá legal? Você ainda precisa comprar ingresso igual todo mundo."

"Ultraje!" Berrou com todo o ar de seus pulmões. "Morra por sua blasfêmia!"

O cavaleiro apertou um botão no painel da lança e apontou ela na minha direção disparando um tiro laser do qual desviei saltando no ar. Puxei minha espada e avancei. Pensei que a melhor ideia seria desarmar ele primeiro, por isso mirei na lança para destruí-la. Com outro apertar botão, um campo de força se projetou ao redor dele, a partir da lança. Quando minha lâmina acertou o campo de força, a energia reverberou e nós fomos lançados pra longe, destruindo MAIS UMA VITRINE.

"Isso é patrimônio público, sabia? Vai ficar feio na sua ficha." Tentar manter o bom humor era difícil, mesmo o simbionte revestindo meu corpo ainda podia sentir alguns cacos de vidro atravessando minha pele.

Olhando pro chão ao meu redor haviam lá vários itens espalhados, inclusive uma dos manequins de armadura. Eu realmente não devia fazer isso, mas com os tentáculos de simbionte agarrei o manequim e joguei com tudo pra cima dele. Claro que o campo de força protegeu ele e a armadura ficou muito danificada, mas foi a distração que eu precisava. Saltamos contra a parede do salão e com um impulso das pernas nos atiramos na direção do cavaleiro. No meio do ar aumentando nossa massa virando uma enorme bala de canhão. Podíamos não passar pelo campo de força, porém acertando o chão conseguimos causar um tremor que derrubou o cavaleiro e o fez largar a lança, desativando o campo de força.

O Cavaleiro Negro era ágil e rapidamente se esticou para recuperar sua lança. Nós pegamos um das espadas da exposição no chá e atiramos como um dardo que entrou em seu caminho, ficando-se no chão, e afastou a lança. Então fomos surpreendidos. Ao invés de continuar tentando correr até a lança, ele agarrou a espada e assumiu posição de combate. Estava nos desafiando.

Com a espada simbionte de novo em mão, entramos em um combate de esgrima a curta distância. Mesmo como uma espada comum, que não experimentava o calor da batalha há muito tempo, o cavaleiro foi capaz de aparar nossos ataques com maestria. Ficamos em um impasse. As lâminas se colidiam fervorosamente e nenhum de todos cedia.

Infelizmente, eu cometi um erro grave. Estava tão focado na batalha, nas lâminas, na sensação do meu espírito fervendo e na adrenalina subindo, que não reparei que ele estava fazendo nos aproximarmos da lança. Quando pensei que acertaria um golpe perfeito, fatiando sua barriga, o cavaleiro rolou e recuperou sua arma original. Mais um apertar de botão e ele disparou novamente na nossa direção, e dessa vez foi um raio sônico.

Senti meu outro se retrair, era tarde demais. Fomos atingidos por som estridente. Levei minhas mãos aos ouvidos instintivamente, mas não era o bastante. O raio me deixava desnorteado, mas o que fez com o simbionte foi pior. Seus gritos não estavam só na minha cabeça, podiam ser ouvidos pelos outros também. Era um lamento de dor excruciante. Ele lutava para não desgrudar de mim e tive que virar o rosto para garantir que não seria exposto. Sem conseguir me mexer pra escapar por causa do simbionte enrijecido, não aguentei muito tempo e logo desmaiei.

Quando acordei estava numa maca, ainda no museu, com um paramédico cuidando de mim. Não estava mais vestido como herói, mas por sorte parece que ninguém viu quando aconteceu. Meu corpo tinha vários cortes que foram tratados, e foi difícil ficar de pé logo em seguida. Os paramédicos quiseram me levar pro hospital, pra conferir se estava tudo certo dentro de mim, mas me recusei. Todos achavam que eu tinha sido pego no meio da luta enquanto tentava proteger os artefatos. Que idiota. Qualquer colega ficaria furioso se soubesse que eu estraguei uma armadura de cavaleiro secular. O professor Garrett vai me matar.

A polícia ainda me segurou ali um tempo, pedindo por depoimentos, pois as câmeras haviam sido destruídas no combate. Logo que todos foram embora, decide caminhar pelo Central Park, logo ali do lado, pra espairecer.

"O que foi aquilo, hein? Aquele ataque dele acabou completamente com a gente." Confuso, eu perguntei ao outro eu.

"Devia ter te explicado isso melhor antes mas minha raça tem duas grandes fraquezas, som e fogo. Esses dois em dose intensa são o bastante pra matar um de nós."

"Isso foi o que aconteceu quando a gente se uniu, né? Lembro de ouvir a buzina de um caminhão." Os acontecimentos do nosso primeiro dia voltaram de supetão.

"Sim." A voz dele parecia carregada de pesar. "Sou mais resistente que outros da minha raça, mas fomos pegos desprevenidos dessa vez." Entre cada palavra havia um silêncio que parecia durar uma eternidade. Senti nossos sentimentos se misturando, raiva e mágoa para com nós mesmo. "Eu fiquei… assustado."

Sua confissão pesou no meu peito. Tem quase um mês que estamos juntos, o que pode não parecer muito, só que quando você divide, literalmente, cada segundo com outro ser, e até o mesmo corpo, não tem como não criar um vínculo muito forte. Nós já somos um só. E hoje nós falhamos. Pela primeira vez, Barbárie perdeu.

Longe dali, onde os olhos do herói já não alcançavam, o chamado Cavaleiro Negro retornava triunfante para sua morada. Uma mansão preservada há séculos em Manhattan, um verdadeiro monumento à cidade de Nova York. Ainda assim, apesar de ricamente decorada, a casa era vazia e escura.

Caminhando a passos lentos, como se não tivesse um única preocupação no mundo, o homem atravessava os corredores sombrios até sua biblioteca. Era um cômodo elegante e claramente bem cuidado, sem um único grão de poeira sobre os livros. Parando diante de uma das estantes, ele puxou um livro, uma edição antiga mas muito bem conservado do Mabinogion.

O livro ativou um mecanismo, a estante começou a se mover e um elevador foi revelado atrás dela. Enquanto descia muitos andares, o homem tirou o capacete de sua cabeça e ajeitou seu cabelo. Madeixas castanhas curtas e bem cortadas. Seu olhar era sério e a expressão rígida. Em seu rosto se destacava o farto e bem cuidado bigode, um dos maiores orgulho daquele homem, que usava o título de seu ancestral para esconder sua verdadeira identidade, a do professor Nathan Garrett.

As portas do elevador se abriram para um corredor negro, iluminado por luzes de neon azul. Com apenas alguns passos, Nathan chegou ao seu arsenal. Espadas, lanças e maças, material o bastante para armar um exército de cavaleiros. Algo, porém, estava fora do comum. O centro da sala era ocupado por uma jaula enorme feita de nada menos que adamantium. Dentro dela uma fera diabólica bufava. Seus olhos vermelhos incandescentes escrutinaram o homem ao entrar.

"Demorou pra caralho, hein?" Quem reclamava não era o animal, mas o caçador. Se levantando de onde estava sentado mantendo guarda, a figura excêntrica coberta por peles de animais falava.

"Peço perdão, senhor Kravinoff. Um pequeno imprevisto apareceu em meu caminho, mas já foi tudo resolvido." A voz do homem era grave, e seus maneirismos estavam completamente diferentes de quando utilizava a máscara. "Não se preocupe, receberá um generoso bônus pela paciência."

O caçador pareceu aceitar bem a situação, estava ciente de que dinheiro não era problema para aquele homem. Logo seu olhar recaiu sobre o objeto que ele trazia em mãos.

"É isso que você foi buscar?" Seu tom era jocoso.

"As Rédeas Áureas de Arthur." Nathan anunciou exibindo a peça ao seu convidado.

"Não acho que essa coisinha de pano vai segurar a fera ali dentro."

"Apenas observe, caro caçador."

Com passos calculados ele deu a volta na jaula até uma escada que dava para sua parte superior e um alçapão que levava para dentro da jaula. Originalmente aquela abertura deveria servir para alimentação e coisas do tipo, mas agora era uma entrada. Nathan pulou dentro sem pensar duas vezes e parou de pé com a postura ereta.

Menos que um momento se passou antes que a fera avançasse. Olhos vermelhos sedentos. O barulho de seus cascos contra o chão era estrondoso e a crina negra balançava de forma selvagem. Um cavalo do inferno, capaz de atravessar terra, fogo e ar. A montaria perfeita para o Cavaleiro Negro.

Mesmo ainda trajando seu peitoral, e com a cota de malha por baixo, Nathan podia sentir a pressão da mandíbula da criatura quando esta amassou sua armadura com uma mordida. Entretanto, não se abalou. Suas mãos rapidamente agarram a crina do animal, segurando-o no lugar, e agilmente o forçou a vestir as rédeas. O demônio relincou e saltou, mas logo parou, dominado pela magia daquele item.

Um sorriso maquiavélico tomou conta do rosto de Nathan que acolheu em seus braços a cabeça de seu novo parceiro.

"Meu nobre alazão. Tu agora te chamarás Helhest."